[Nesta semana em que comemorámos a solenidade de Cristo Rei, com a qual a Igreja finda o seu ano litúrgico e inicia a preparação de um novo ciclo de celebrações, publico com alegria este precioso texto sobre o Reinado de Nosso Senhor, gentilmente enviado pelo Bruno Borgarelli, a quem agradeço. Que em meio às trevas desta pós-modernidade desvairada nós nos esforcemos com denodo para que Cristo possa reinar — no pequeno mundo de nossas almas, no mundo mais amplo de nossas famílias e no vasto espaço das sociedades. Viva Cristo Rei!]
SOLENIDADE DE NOSSO SENHOR JESUS CRISTO, REI DO UNIVERSO
Bruno de Ávila Borgarelli
De todo o esplendor da Encíclica Quas Primas, de S.S. Pio XI, instituição da Solenidade de Cristo, Rei do Universo, deve o jurista atentar-se ao trecho respeitante à “pusilanimidade de certos católicos”, que vão esquecendo o Direito de Cristo sobre todas as coisas.
Sua Santidade nota essa tibieza, oportunamente operada sob a veste laicista, já em 1925.
Tanto mais notamo-la hoje, volvido quase um século, passada a Segunda Guerra, passadas as perturbações do violento século XX, e afinal abandonado o próprio estudo do Direito Natural em prol do odioso e protorrevolucionário “constitucionalismo contemporâneo”, insistente em achar princípios desgarrados da lei moral (como fosse isso possível).
Não espanta que sob o signo desse constitucionalismo os homens tenham dado foros de legitimidade ao que de mais repugnante existe, de que a ideologia de gênero é apenas um exemplo.
Sob este mesmo aporte, derivado da mesma negação de Cristo, advém a crise moral das instituições, transformado que fica o Estado em um mecanismo contínuo e eficiente de opressão e combate ao que ainda resta de cristão no mundo, na guerra aberta que opõe as “maiorias” à natural constituição da sociedade.
A participação da lei eterna na criatura racional, ou seja, a lei natural (“participatio legis aeternae in rationali creatura lex naturalis dicitur”; Summa Th., I-II, q.91, a.2) é o alvo por excelência de todos os combates desse ilegítimo “estado constitucional”.
Sabendo muito bem que a razão apreende a lei natural por conaturalidade, os revolucionários precisam ou usar a força para suprimir a mesma razão – e, assim, permitir que aflorem e sejam patrocinadas pelo Estado todas as tendências contrárias à natureza – como de fato ocorre; ou, melhor ainda, precisam tutelar o relativismo moral e os positivismos, frutos podres da mesma diabólica árvore.
Séculos de racionalismo laicista paralisaram a força do “justo”, petrificando-o em leis e códigos. Outros séculos de historicismo subtraíram, especialmente ao Direito Civil, o contato com a normatividade objetiva extraível da natureza humana.
O resultado pérfido veio, como fora arquitetado. Uma paralisia, uma inação, uma permissividade generalizada.
Olvidando, sob a pressão desses movimentos de brutal negação da objetividade, que as leis humanas positivas são meios de explicitação da lei natural, e de garantir sua eficácia, chega-se ao império não mais da lei, mas da corrupção das leis (pois, como diz Santo Tomás, “si vero in aliquo a lege naturali discordet, iam nom erit lex sed legis corruptio”).
Mandam os códigos, governa a obsessão das leis, pouco relevando sua iniquidade, sua discordância relativamente à justiça, aos preceitos da lex naturalis. O Direito Civil, primaz na regulamentação das instituições ligadas à natureza humana, perdeu a autoridade, como recorda Galvão de Sousa, que é então ocupada pelo “poder criador das assembleias”, restando a tecnocracia em lugar da constituição natural da sociedade (in “O Direito Civil entre o ‘ius naturale’ e a tecnocracia”).
E a sobrevivência das “instituições democráticas”, tomadas como fim em si, vale mais que a razão natural, vale mais que o culto público a Deus – que é mandamento, e não solicitação.
O credo fanático no legalismo, no laicismo, a idolatria da lei positiva humana, tudo isso decorre da tentativa de destronar Cristo, o que se epitomiza em certos fatores políticos e jurídicos, dentre os quais M. Bigotte Chorão identifica a Revolução Francesa, o Estado Liberal, os regimes comunistas etc.
Esse fanatismo já ninguém o pode negar. Oprime, amedronta, e se revela com maior ferocidade no acanhamento dos cristãos, que é justamente o que sublinha S.S. Pio XI na Quas Primas, identificando a “indolência e timidez dos bons que se abstêm de toda resistência, ou resistem com moleza, donde provém, nos adversários da Igreja, novo acréscimo de pretensões e de audácia”.
E não só se pode dizer que os católicos não exercem, na sociedade civil, a autoridade que conviria aos apologistas da fé, como observa Sua Santidade. Até exercem, eventualmente.
Mas a realidade é que as instituições se recheiam de pessoas que se anunciam como católicas, metem uma tímida imagem ao canto do gabinete, esboçam (nunca em público) o sinal da cruz, murmuram uma qualquer parte da Santa Doutrina – apenas quando a conveniência dos salões o permite -, e até frequentam os Sacramentos, mas não vivem a Verdade do Reino de Cristo.
E não a vivem na medida em que não trabalham para a efetiva instituição desse Reinado, porque já as contaminou o veneno do conformismo, da acomodação: “que faria eu, pobre cristão, para reverter a marcha do tal historicismo, do tal positivismo, do tal constitucionalismo?”
E tecem contas de orações por sua sobrevivência profissional, pensando assim: “exercerei em nome de Cristo esta função institucional que me foi confiada, e, quando detiver maior poder, estrategicamente, ajudarei a arrumar a sociedade, fazendo-a voltar aos princípios da lei natural”.
Estratégias, estratégias, estratégias!
Creem ser possível justificar que se dê às leis humanas civis, ainda por um instante, um valor em si, e não uma autoridade relativa, que somente se verifica na medida – na exata medida – em que respeitam a lei natural.
E creem em tal coisa porque calculam que é mais válido não enfrentar, neste momento, a “autoridade” da lei civil, afinal, “quem sou eu para bater de frente com o laicismo, a esta altura da história? Melhor é aceitar esse estado de coisas e ir lutando para mudar o que é possível”.
Mentira! Mero oportunismo, e não prudência.
Cálculos, cálculos, cálculos!
Essa ideia – tão bem “calculada” – é fruto do medo, do zelo excessivo de si, do receio de perder a reputação perante os homens. Cria-se uma pletora de justificativas para a pior das ações: a negação objetiva de Cristo, a quem cabe toda honra e toda a glória.
Esquecem-se, contudo, que o homem não se pode justificar a si mesmo contra Deus. Pois o homem que se justifica a si julga a Deus, negando sua autoridade (Rom 3,19). Jesus Nosso Senhor, puríssimo e sem mácula, não entrou a justificar-se perante Pilatos e a multidão. Ora então, quem é o homem para assacar argumentos contra Deus? (Jo 9, 14).
Esquecem-se do que diz S.S. Pio XII, na Alocução “Ci Riesce”: aquilo que não responde à lei moral não tem nenhum direito à existência, nem à propaganda, nem à ação. Sua Santidade não faz ressalvas: àquilo que está em desacordo com a lei moral não é dado direito algum, sequer de ser propagandeado.
Esquecem-se que a ninguém Deus deu licença de pecar (Eclo 15, 20).
Esquecem-se, enfim, que o dia de amanhã não foi prometido a ninguém. “Hodie non cras!”.
E nesses esquecimentos, sinais da covardia, vai-se esvaindo a potência para o bem, vai desmoronando a ordem (i.e., a disposição das coisas segundo seus fins), vai-se consumindo a força da catolicidade, pois quem adia o Reinado de Cristo, já negou Sua Divindade sobre todas as coisas.
Cai-se daí facilmente nos respeitos humanos. Afinal, tendo-se convencido de que é possível acumular poder nas coisas do mundo e só depois agir publicamente em nome de Cristo, parece oportuno, a tais pessoas, não criar desgastes com esta ou aquela autoridade, nem figurar sob a pecha de fanatismo (que os modernos atribuem ao verdadeiro católico).
E avançam nessa miserável vida de enganos, suportando no coração – decerto – o peso desse pecado, que conhecem bem, e que consiste em negar Deus.
Que infelizes não serão! Que sofrimento experimentam já, o qual, sem o arrependimento, se tornará danação eterna.
Afinal, a recompensa da Coroa só virá para os que praticam a verdade, e não para os que a pregam ou ouvem (Venerável Fulton Sheen). Muito menos virá tal recompensa para os que apenas murmuram a verdade, quando é conveniente, e quando as altas rodas não reprimem a exposição pública da fé.
Que terror não causa também o pensar que estamos todos nós, na provação que consiste em viver nesta época, igualmente sujeitos a tal desgraça.
A desgraça de julgar conforme nossos propósitos, de olvidar a Lei de Deus, de cair nos respeitos humanos, de zelar por nossos cargos, de amar nossas reputações, de encorajar nos outros essa mesma paixão desordenada – ou de não a desencorajar, em fraternal correção, quando assim agem – de ocultar a fé para ingressar nos círculos de mando da sociedade, de oferecer justificativas para nós mesmos.
Que Nosso Senhor nos ensine a continuamente rejeitar o mundo e suas falsas benesses, e a resgatar verdadeiramente – sem pusilanimidade e tibieza – sua Lei.
Que Ele nos conceda sabedoria para nos humilharmos diante de sua Majestade e Poder.
De joelhos, hoje, na Festa instituída em recordação ao Reinado de Cristo sobre todo o Universo, brademos como está Escrito:
“Levanta-te, ó Deus, e julgue toda a Terra, porque a ti pertencem todas as nações!” (Sm 82, 8)
Viva Cristo Rei!
Bruno de Ávila Borgarelli
São Paulo, 24.XI.2019