E o vinho acabou…

Tenho conversado com algumas pessoas sobre a assim chamada “Lei Seca”, que estabelece punições para os motoristas que forem flagrados dirigindo após consumir qualquer quantidade de álcool. E, para a minha grande decepção, muita gente concorda piamente com a tal lei!

Antes que me entendam mal: não se trata de “acobertar” os irresponsáveis que provocam acidentes nas estradas, e nem de negar que o consumo de álcool aumenta o risco de que ocorram tragédias no volante. A questão é que a situação não é passível de simplificações extremas como as que foram utilizadas na elaboração das novas punições! Um sujeito não pode ser classificado simplesmente como “apto” ou “inapto” para dirigir com base somente em quantidades ínfimas de álcool no sangue. A Lei 11.705 estabelece o seguinte:

Art. 5o  A Lei no 9.503, de 23 de setembro de 1997, passa a vigorar com as seguintes modificações:

[…]

II – o caput do art. 165 passa a vigorar com a seguinte redação:

“Art. 165.  Dirigir sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência:

Infração – gravíssima;

Penalidade – multa (cinco vezes) e suspensão do direito de dirigir por 12 (doze) meses;

Medida Administrativa – retenção do veículo até a apresentação de condutor habilitado e recolhimento do documento de habilitação.

………………………………………………………………………..” (NR)

III – o art. 276 passa a vigorar com a seguinte redação:

“Art. 276.  Qualquer concentração de álcool por litro de sangue sujeita o condutor às penalidades previstas no art. 165 deste Código.

Parágrafo único.  Órgão do Poder Executivo federal disciplinará as margens de tolerância para casos específicos.” (NR)

Procurei em vários lugares sobre o limite de tolerância que vem sendo noticiado, que é o de 0,2 gramas de álcool por litro de sangue (neste caso, “somente” multa; acima de 0,6g/l, é cadeia). Não o encontrei em nenhum lugar (a lei, ao contrário, diz taxativamente que qualquer quantidade de álcool no sangue é suficiente para que o “infrator” esteja sujeito às penas estabelecidas). Procurando um pouco mais, para a minha surpresa e horror, descobri que 0,2 g/l é a margem de erro do bafômetro!! Ou seja: o limite real é ZERO mesmo, e concentrações inferiores a 0,2g/l estão sendo toleradas simplesmente por incapacidade técnica de serem aferidas corretamente!

Já que as coisas são assim, então, no final das contas, o quê, exatamente, é permitido beber? Há a maior confusão do mundo nas reportagens que estão publicadas na internet e, na prática, o resultado é que ninguém pode beber nada mesmo (até porque o 0,2 g/l se atinge com uma latinha de cerveja, e ninguém bebe “meia latinha”). Veja-se:

Quanto tempo esperar para assumir o volante? 1 copo de cerveja (200 ml) ou 1 taça de vinho (100 ml) : entre 1h e 2h. (G1)

“Uma taça de vinho demora cerca de 3 horas para ser eliminada pelo organismo. Uma lata de cerveja, cerca de 4 horas”. (ESTADÃO)

“Um copo de cerveja demora cerca de seis horas para ser eliminado pelo organismo. Uma dose de uísque, que é bem mais forte do que a cerveja, demora mais tempo do que isso. O mais garantido é que o motorista possa dirigir depois de 24 horas”. (G1)

“De maneira geral, um copo de cerveja ou um cálice de vinho demora cerca de seis horas para ser eliminado pelo organismo – já uma dose de uísque leva mais tempo”. (VEJA)

“Única forma segura de driblar bafômetro é não beber, alertam especialistas”. (G1)

1- Quanto de álcool é permitido beber antes de dirigir com a mudança?
Nada.
Júlia Greve, médica fisiatra do Departamento de Álcool e Drogas da Associação Brasileira de Medicina de Tráfego (Abramet), em G1.

Diante de tantas informações contraditórias, só resta ao indivíduo não beber mesmo, cumprindo o “tolerância zero” que a Lei estabelece; e o limite (irrisório) que havia sido conseguido devido às limitações do bafômetro, perde-se devido à avalanche de informações contraditórias às quais têm acesso o cidadão.

Não dá para acreditar na seriedade de pessoas que tenham inventado uma lei assim. Há pelo menos duas perguntas que precisavam ser respondidas para que tal medida se justificasse, e eu não vi em lugar nenhum nem uma palavra sobre o assunto. Primeira pergunta: dentre os acidentes provocados por consumo de álcool, em quantos estão envolvidos pessoas com concentração de álcool no sangue de somente 0,2g/l? Segunda pergunta: dos acidentes de trânsitos fatais nos quais o consumo de álcool está envolvido, quantos acontecem dentro de perímetro urbano? Entender melhor a situação é fundamental para que se possa atacar com mais precisão o problema. Afinal, é razoável que um sujeito seja impedido de dirigir numa BR após ter tomado cerveja. Mas, do jeito que a lei foi feita, há muitas coisas que não são razoáveis.

Não é razoável que eu não possa tomar um Chopp numa pizzaria com amigos, e voltar pra casa de carro. Não é razoável que eu não possa oferecer uma taça de vinho a um amigo que me veio visitar, em casa. Não é razoável que enólogos tenham medo de dirigir após uma degustação de vinhos – que é, afinal, o trabalho deles. Não é razoável que padres tenham dificuldades para cumprir com seus compromissos após celebrar missa, ou precisem deixar de tomar o Sangue de Cristo no Altar (aqui, aqui, aqui). Pelo contrário, tudo isso é autoritário e ofensivo, e prenuncia ainda maiores intromissões do Estado na vida dos indivíduos. É como o conhecido poema que diz:

Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem;
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz, e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.

(No caminho com Maiakóvski)

No fundo, o problema é ideológico, porque não há outra explicação. O alvo é a Moral judaico-cristã, duplamente atacada: permitindo o que é contrário a ela [aborto, divórcio, preservativos] e criminalizando coisas que são geralmente neutras [armas de fogo, cigarros, álcool]. Não adianta o Tarso Genro aparecer com a cara mais cínica do mundo para dizer que “é razoável que um padre saia da missa e diga ao agente público que tomou um gole de vinho”, quando isto – embora, realmente, tenha a possibilidade estabelecida pela lei 11.705 – não tem (ainda) disposição legal alguma e é o mesmo Ministro da Justiça a “garanti[r] que não haverá iniciativa do governo para abrandar a norma”. Isto só atesta a farsa, pois as coisas no Brasil não são “razoáveis” e a própria existência desta lei o mostra com a clareza de uma evidência. Não permita Deus que, quando as pessoas resolverem enfim acordar, seja já tarde demais.

7 comentários em “E o vinho acabou…”

  1. A lei é de uma imbecilidade única, típica de seu ator, da casa que a aprovou, do senhor que a sancionou e de todos que a louvam.

    Esta lei acaba com a proporcionalidade entre delito e pena, o que vai contra o direito.

    Equipara um cidadão que tomou uma taça de vinho a um criminoso, o que vai contra a justiça.

    Alega ser incapaz de dirigir quem tomou qualquer dose de álcool, o que vai contra a ciência.

    É só mais uma intentona do socialismo, da maçonaria aobática de robotizar os brasileiros.

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