A tortura na Inquisição – João Bernardino Gonzaga

Conforme atestam inúmeros documentos, a antiga Igreja sempre foi radicalmente hostil à utilização de violências nas investigações criminais. Muito citada é a carta que o papa Nicolau I escreveu, no ano 866, a Bóris, príncipe da Bulgária: “Eu sei que, após haver capturado um ladrão, vós o exasperais com torturas, até que ele confesse, mas nenhuma lei divina ou humana poderia permiti-lo. A confissão deve ser espontânea, não arrancada”; e advertiu: “Se o paciente se confessa culpado sem o ser, sobre quem recairá o pecado?”

No século XIII, porém, em meio ao calor da luta contra heresias fortemente daninhas, que cumpria combater com rigor, ingressou a tortura nos domínios da Justiça religiosa. Autorizou-a o papa Inocêncio IV, em 1252, através da bula Ad extirpanda. Esse recurso já se tornara usual no Direito comum, de sorte que, observou-se, seria injustificável conceder tratamento privilegiado aos hereges. Se, ponderou o Papa, tal medida se aplica aos ladrões e aos assassinos, o mesmo deverá ocorrer com os hereges, que não passam de ladrões e assassinos da alma. Igual permissão foi dada por outros atos pontifícios posteriores, notadamente de Alexandre IV, em 1259, e de Clemente IV, em 1265.

Daí por diante, o Direito Canônico acolheu pois a tortura, mas algumas cautelas foram prescritas: ela não deveria pôr em perigo a vida e a integridade física do paciente; vedade era a efusão de sangue; um médico devia estar presente; somente podia ser aplicada uma vez, jamais reiterada; a confissão por meio dela obtida apenas valeria se depois livremente confirmada. Condições muito mais suaves, portanto, do que as vigorantes na Justiça secular. O sofrimento assim produzido devia ser facilmente suportável por pessoas normais; mas seguramente terá havido excessos, por parte de juízes zelosos demais.

O fato da aceitação da tortura é inegavelmente desconcertante, embora seja forçoso reconhecer que a atitude da Igreja possui fortes circunstâncias atenuantes.

Durante muitos séculos, após a queda do Império Romano, o Direito laico desconheceu os suplícios como instituição oficial, o que não significa sinal de brandura. Ninguém negará que as práticas punitivas dos povos chamados “bárbaros” fossem violentas, e outro tanto terá ocorrido no regime feudal onde, excetuadas as castas superiores, o homem comum ficava inteiramente entregue aos caprichos do seu senhor, sem forma nem figura de Juízo. Dentro desse antigo Direito, tosco e empírico, apenas inexistia a tortura institucionalizada, mas os métodos repressivos eram brutais.

A partir do século XII, no entanto, quando os Estados se foram organizando melhor e adotaram o sistema processual inquisitivo, em que avultava a importância da confissão do réu, já sabemos que os tormentos entraram plenamente nas lides judiciárias seculares. Por influência do Direito romano, eles se tornaram um expediente normal, banal, previsto e disciplinado nas leis. Conforme expusemos no Capítulo I, a tortura passou a ser encarada com absoluta naturalidade, como algo indispensável à boa ministração da Justiça e à tutela do bem comum. Ninguém a impugnava, os mais prestigiosos jurisconsultos a defendiam e a recomendavam. Os juízes, as classes cultas, o inteiro povo a aceitava pacificamente, como legítima, e ela era ademais compatível com a severidade das penas e com as rudes condições de vida então existentes.

Diante desse panorama e preocupada com o alastramento de heresias, a Igreja se deixou influenciar. Enquanto sociedade de homens, ela fica sujeita aos costumes vigentes, naquilo que não contrariem as verdades essenciais da doutrina cristã (2). Afinal, seus membros estão imersos no mundo em que vivem e forçosamente adotam seus sentimentos e seus hábitos. A par disso, o problema com que se defrontava a Igreja tornou-se muito sério: por mandato divino, cabia-lhe o dever de lutar pela salvação eterna do seu rebanho, defendendo-o contra erros que, apesar de perniciosos, eram, por vezes, muito atraentes. Animava-a a absoluta fé nessa missão. Heresias tenazes entretanto se infiltravam sorrateiramente, minando a autoridade eclesial e dissolvendo a unidade religiosa do povo. Como advertira Santo Tomás de Aquino, os hereges são como os delinqüentes que passam moeda falsa.

O herege procura ser sempre astuto, não revela o seu desvio, e este se torna geralmente difícil de descobrir, porque escondido no íntimo da pessoa. Imperioso era pois a Justiça obter a confissão. Difícil se torna para nós hoje decidir retroativamente, dentro da formação mental daquela época, como caberia ao dever de caridade resolver este dilema: deixar o herege impune, para que continuasse a disseminar o mal, e, com essa omissão, arriscar-se a perder incontáveis cristãos; ou extorquir-lhe pela força o reconhecimento do seu crime, a fim de tentar corrigi-lo, e, se isso não fosse possível, eliminá-lo para o bem do povo.

Não nos olvidemos outrossim que no Direito Processual comum da época vigorava o princípio da presunção de culpa (Cap. III, nº 3): o réu, só pelo fato de ser réu, era tido como culpado, enquanto não sobreviesse uma eventual decisão absolutória. Os tribunais eclesiásticos, portanto, seguindo a mesma regra, ao lidarem com algum acusado de heresia partiam do pressuposto de ser verdadeira essa imputação. Logo, ficava mais fácil admitir que esse homem podia ser levado à tortura, visando a confissão, mesmo porque o sofrimento assim infligido era insignificante diante da brutal pena que seria depois imposta pelas autoridades civis, a de morte na fogueira.

[…]

Aqui está, pois, o ambiente jurídico em que nasceu e atuou a Inquisição: religião oficial, apoiada pelo Estado; conseqüentemente, existência, no Direito Penal comum, de crimes consistentes em ofensas à religião ou à Igreja; competência concorrente, dos tribunais seculares e dos eclesiásticos, para perseguirem os autores de tais crimes; métodos processuais e penais rigorosíssimos.

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(2) É o que sucedeu também com a escravatura, que existiu sempre, desde os mais remotos tempos, só vindo a desaparecer recentemente, quase em nossos dias. Sendo uma instituição tradicional, comum, que se reputava indispensável, a Igreja a tolerou. De São Paulo, por exemplo, cfr. Ef 6, 6-9; Col 3, 22-25; Flm. Os apóstolos mais se importaram com a servidão espiritual ou moral do que com a física. Cabe porém dizer que o cristianismo estabeleceu princípios que fatalmente eliminariam a escravidão.

João Bernardino Gonzaga,
“A Inquisição em seu mundo”
pp. 87-91
Ed. Saraiva – 4ª Edição, 1993

Publicado por

Jorge Ferraz (admin)

Católico Apostólico Romano, por graça de Deus e clemência da Virgem Santíssima; pecador miserável, a despeito dos muitos favores recebidos do Alto; filho de Deus e da Santa Madre Igreja, com desejo sincero de consumir a vida para a maior glória de Deus.

19 comentários em “A tortura na Inquisição – João Bernardino Gonzaga”

  1. Agora que li este texto acho que realmente a igreja católica estava certa. Torturar e matar “hereges”, e considerar que eles são culpados até que provem o contrário com o pequeno detalhe de que, para provar que não eram hereges só após tortura seguida de morte. Pelo menos não iam pra fogueira. Inclusive, considerando a infalibilidade papal com certeza só de o papa/padre/bispo/monge imaginar que alguém que ele não foi com a cara é herege significa que ele fez isso “guiado pelo espírito santo” e não poderia errar. Como essa igreja católica é e sempre foi boazinha e caridosa, “seguidora” oficial dos ensinamentos de Jesus… devíamos voltar ao tempo da inquisição, aí sim eu ia querer ver esses “hereges” aprenderem a ser católicos.

  2. Releia o texto, Paulo. Você não entendeu nada. E releia também um catecismo qualquer para aprender que só o Papa é infalível (e não padres e bispos), e mesmo assim só em questões de Fé e Moral (não em matéria de suspeitas e de decisões jurídicas).

  3. Paulo, tu tens certeza de que és alfabetizado?

    Que parte de “no Direito Processual comum da época” tu não entendeste?

    Onde foi que tu leste que “para provar que não eram hereges só após tortura seguida de morte”?

    E em que parte dos processos do Santo Ofício consta que “alguém que ele [o “papa/padre/bispo/monge ” (!!)] não foi com a cara é herege”?

    Vem cá, só uma perguntinha: se tu não consegues entender nem mesmo um texto didático de um livro de história escrito por um professor, quem foi que mentiu para ti dizendo que serias capaz de entender as Escrituras Sagradas?

    – Jorge

  4. “O fato da aceitação da tortura é inegavelmente desconcertante, embora seja forçoso reconhecer que a atitude da Igreja possui fortes circunstâncias atenuantes.”

    Jorge

    Entendi este texto como uma “justificativa” para a inquisição, mostrando que a igreja não estava de todo errada, à partir do momento que li a frase em epígrafe.

    OBS: Acabei de ler seu outro comentário sobre “a porta da rua ser serventia da casa”, entendo que “já vou tarde” mas já estou de saída, só deixo este último comentário como saideira e pra que você saiba o motivo de eu não aparecer mais por aqui, pela minha pouco sutil expulsão(hehe). Mas, quem sabe um dia nos encontramos de novo em outro fórum mais sociável e com pessoas mais dispostas a receber opiniões contrárias sem necessidade de agressões “pessoais” nas respostas, o tipo de coisa que foi muito comum acontecer por aqui.

    De qualquer forma aprendi bastante por aqui, muitas coisas foram negativas mas algumas foram positivas também (tipo o tópico sobre ana&mia que foi o que me trouxe pra cá), você não até que não é de todo ruim :-P.

    Tirando as brincadeiras, peço desculpas pelas ofensas, apesar de saber que a recíproca por parte de alguns participantes deste site não será verdadeira.

    Até quando Deus quiser!

  5. Sr. Paulo,

    Do texto em epígrafe não decorre nenhuma das loucuras que tu disseste no comentário anterior. Nem respondeste às minhas perguntas, nem retificaste as tuas declarações – isso é típico teu e já está ficando cansativo.

    Também não houve nenhuma “expulsão”, não te venhas fazer de vítima. Disseste que ias sair, e eu simplesmente disse que, se quisesses, podias sair. O teu problema é que, quando apertado, pedes para sair… fazer o quê?

    E uma última coisa eu garanto: tu não irás encontrar liberdade de expressão semelhante à que tens aqui no Deus lo Vult! em nenhum outro lugar de “opiniões contrárias”.

    Abraços,
    Jorge

  6. Irmão em Cristo Jesus e na verdadeira Igreja

    Em acabo de discutir com um homem no blog “flagelo russo” que comparava nossa amada Igreja com o stanilismo. É assustador a disisformação das pessoas. Conhecer a verdadeira história do cristianismo e ter que ouvir e ler as bobagens que se fala chega a me dar, como católico, uma tristeza infinita. Precisam ensinar essas coisas no catecismo.

  7. Não entendo, que atenuantes são esses? Cristo não disse para torturar ninguém, Ele foi bem claro, amar como eu te amei. Dê a outra face.A Inquisição foi um absurdo. Não bate em nada com os ensinamentos de Cristo. A igreja se tornou na época, pior que os romanos ou o faraó.Só porque a pessoa não gostava da igreja , era submetido a tortura e ia para o fogo se confirmasse. Quem é a igreja para julgar alguém, ou dar regras para julgamento??? Cristo falou, não JULGarás ninguém. A igreja sempre apoiou a escravatura, outro absurdo. Ah, não tem que se preocupar com o corpo? Então porque é contra o abuso do corpo. A igreja estragou tudo, está corrompida. Deus os julgará no final a todos os que concordam ou concordaram com estas práticas absurdas em nome do SENHOR.

  8. Deixa de ser ridiculo, Fábio!
    Vai estudar, rapaz!
    “Só porque a pessoa não gostava da igreja , era submetido a tortura e ia para o fogo se confirmasse”.
    Que gracinha! Ele acha que a Igreja chegava e perguntava ao herege: “Você gosta de mim?” O herege respondia: “Não!”. Aí a Igreja respondia: “Então vai ser torturado e queimado!”
    Mas é o cúmulo da ignorância! E da contradição. Ele diz que a Igreja não tem o direiro de julgar porque Cristo teria falado “não JULGarás ninguém”. Mas ele, que se acha acima da Igreja e de Cristo, pode julgar a Igreja: “A igreja estragou tudo, está corrompida”.
    Corrompido está seu cérebro, Fábio!

  9. Vc que tem abrir o seu cérebro, sr Carlos, ó criatura cega. Você foi ao pé da letra, mas entendeu muito bem o que eu quiz dizer. Vc sabe que a igreja errou. SE ela não tivesse errado o PAPA João Paulo não tinha pedido perdão sobre aqueles que forma queimados na Santa Inquisição. O texto diz claramente ” …dentro da formação mental daquela época, como caberia ao dever de caridade resolver este dilema: deixar o herege impune, para que continuasse a disseminar o mal, e, com essa omissão, arriscar-se a perder incontáveis cristãos; ou extorquir-lhe pela força o reconhecimento do seu crime, a fim de tentar corrigi-lo, e, se isso não fosse possível, ELIMINÁ-LO para o bem do povo.” jESUS TE ENSINOU ELIMINAR ALGUEM??? PERSEGUIR ALGUÉM??ELE NÃO ENSINOU NADA DISTO QUE FOI FEITO.APRENDA INTERPRETAR TEXTOS.A igreja errou feio…

  10. A maior desgraça que já ocorreu na humanidade foi a época da inquisição superando no nazismo e todas outras já ocorridas em nossa humanidade que infelizmente foi rensponsável uma certa “santa igreja que diz ser a UNICA IGRAJA santa” a unica com autoridade para interpletar a biblia ela é a unica igreja santa, santa só se for do pau OCO …. TÁ MAIS PRA LOBO DESFARÇADO DE OVELHA

  11. Por debaixo da mais absurda falta de proporções, das afirmações descabidas e das invectivas gratuitas substituindo os argumentos, do mais completo vazio de conteúdo e dos impressionantes erros de português… pra quê é que serve este comentário? Para um anti-clerical babar peçonha contra a Igreja de Cristo? Meu caro, vá se tratar. O senhor tá mais pra analfabeto.

    – Jorge

  12. sai dela povo meu,para não serdes cumplices em seus pacados e para no participardes dos seus flagelos;apoc;18,4 ”entedam como quiser estar bem clara…”

  13. Se espera que a gente saia da Igreja, vá sonhando… Pelo jeito você deve ser um protestante. Fique sabendo que os membros da tua igrejola também têm muitos pecados… Porque também houve a Inquisição Protestante. Ou nunca ouviu falar do que Calvino fez com Miguel Servet?

  14. Vá estudar história, caro Fábio. Quem tem que abrir o cérebro aqui é você. Não se pode julgar fatos históricos ocorridos naquela época, em um mundo tão distante e tão diferente do nosso, como se tivessem ocorrido hoje. Até porque o povo da Idade Média tinha uma cultura e padrões morais completamente diferentes dos nossos, então é um erro crasso julgar o passado com a mentalidade de hoje. Duvido que você tenha lido se quer um livro sério sobre Inquisição. Estude mais, se informe mais, não fique dando opinião sobre o que não sabe. Se o Papa João Paulo II pediu perdão, foi pelos abusos cometidos durante a Inquisição, não pela Inquisição em si. E essa mensagem do Papa João Paulo II não serve como fonte histórica, vá estudar história de verdade, vá ler obras de historiadores de verdade.

  15. Crime é crime em qualquer época minha filha. E se uma mensagem do Papa não servir com fonte histórica, servirá a de quem? De você?

  16. “Tratava-se de crenças exóticas, fantasiosas, improvisadas sem qualquer base cultural séria; algumas imorais, outras anárquicas, violentas e perigosas para o bom e equilibrado desenvolvimento social”, “Não passando de elucubrações arbitrárias de homens ‘iluminados’, pretensiosos, tais crenças não podiam em nada se equiparar à sólida, equilibrada, serena e culta formação do catolicismo”. É isso que o autor diz na obra, e agora um grupo de idiotas em pleno século XXI tenta justificar o injustificável….

  17. Não entendi nada.

    É isso que o autor diz na obra, e agora um grupo de idiotas em pleno século XXI tenta justificar o injustificável….

    Que autor? Que obra? Que «grupo de idiotas»? O que é «injustificável»? Quem está tentando «justificar»?

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