Dizem que nós passamos por cinco estágios quando experimentamos uma perda. Na última segunda-feira, dia de Nossa Senhora de Lourdes, quando acordei e soube que o Papa havia renunciado, pude entender isso um pouco melhor.
Praticamente não tive tempo de passar pelo estágio da negação: a internet é implacável. O Papa renunciou: a gente encontra a notícia num comentário do blog, no instante seguinte chega à nota em português da Rádio Vaticana (cujo site – pensamos ainda! – pode ter sido hackeado…), vai no Google e vê o mesmo dito no site da Santa Sé (com um vídeo inclusive), abre o email e percebe que está todo mundo falando disso. Não dá tempo de negar: sim, é verdade, é terrivelmente verdade. Não leva um mísero minuto para o confirmar em definitivo. Neste momento difícil, nem mesmo à dúvida nós temos direito.
Aqui é difícil organizar as idéias. No estágio da raiva, eu provavelmente seria injusto se escrevesse alguma coisa aqui. Afinal, há seiscentos anos que um Papa não renunciava e, obviamente, há alguma boa razão para isso: como apontou muito pertinazmente um amigo por email, o Papa é o Pai dos católicos, e um pai não renuncia jamais. Muitos Papas deixaram-se morrer Papas, e seria mesquinho imaginar que eles não passaram pelas agruras da idade avançada que, hoje, Bento XVI invoca como razão para apresentar a Grã Renúncia. Os Papas morrem Papas, e isso não é por acaso: a figura paterna neles encarnada não é objeto de escambo, de vil utilitarismo impessoal como se a Igreja fosse simplesmente uma grande máquina cujas engrenagens podem ser intercambiadas sem prejuízo do seu funcionamento.
E ainda há tanto por fazer! Não é justo interromper agora a obra de restauração da Igreja de Deus; o Altíssimo é Aquele que não deixa inacabadas as Suas obras e, portanto, não deveria ser lícito ao Seu maior servo fazer aquilo que o seu Senhor é conhecido precisamente por não fazer. Ainda há muito por ser feito, e a convocação de um conclave agora introduz um risco de ruptura no governo da Igreja do qual, no meio da guerra, nós não estamos em condições de nos dar ao luxo. João Paulo II foi Papa por vinte e sete anos, até o último esgar de dor, até a última respiração sôfrega; Bento XVI não está nem perto disso. Poderia perfeitamente ficar por mais tempo.
À fase da raiva segue-se a da barganha, que aqui se transforma meramente em auto-repreensão: eu devia ter rezado mais, ter jejuado com mais constância, ter feito maiores penitências, ter passado mais tempo de joelhos diante de Nosso Senhor Sacramentado; em suma, eu devia ter feito alguma coisa porque, se eu o tivesse feito, Deus teria me ouvido e o Papa ainda seria Papa. Bento XVI pediu-me expressamente para que eu rezasse por ele, a fim de que ele não fugisse por medo dos lobos: eu não rezei e, por minha culpa, propter peccata mea, agora ele está fugindo e nos abandonando.
Abandonando-nos! O declive da auto-repreensão à depressão é óbvio e por ele se vai em um átimo. Aqui não convém demorar-se, que é pecado contra a virtude teologal da Esperança. Apenas registro a sensação de abandono, a impressão de que tudo está perdido, o sabor amargo da derrota que já se pode entrever sob o vão da porta, a dor de ter sido tudo em vão.
Mas Deus é o dono da Sua Igreja e, portanto, não pode ter sido tudo em vão. Aqui a aceitação começa a desabrochar, aqui a dor já começa a dar lugar à serenidade. O Papa não está nos abandonando; na verdade, ele fez tudo o que poderia fazer, e ninguém tem envergadura moral para lhe interpelar e dizer-lhe que retome a cruz sobre seus ombros e continue a subida do Gólgota até o Calvário definitivo. Porque, na verdade, a Cruz sempre esteve em seus ombros, e é somente a nossa miopia sobrenatural que nos impede de perceber esta obviedade.
Lembro-me do último conclave, do primeiro conclave dos meus vinte e muitos anos. Estava na faculdade, e a televisão ligada mostrava a fumaça branca saindo da chaminé da Capela Sistina. Esperei um pouco para ver o anúncio do novo Pontífice, e logo após ouvi pela primeira vez o “Eminentissimum ac Reverendissimum Dominum, Dominum Sanctae Romanae Ecclesiae Cardinalem Ratzinger” que me fez vibrar tão profundamente já então e pelos próximos oito anos. Lembro-me com clareza das palavras do Pontífice recém-eleito: un semplice e umile lavoratore nella vigna del Signore. Lembro-me, inclusive, do que pensei à época: claro que era falsa modéstia, claro que ele estava proferindo meramente um discurso protocolar, claro que ele estava só repetindo o que as pessoas esperavam que um Papa dissesse.
Os anos se encarregaram de mostrar que eu estava enganado, terrivelmente enganado, e hoje não me é permitido ter nenhuma dúvida de que o velho Joseph Ratzinger sempre se considerou, verdadeiramente, um simples e humilde trabalhador da vinha do Senhor, que ele parece não ter a menor consciência da própria genialidade absolutamente insubstituível. A verdade é que o professor de teologia não queria outra coisa que não lecionar na obscuridade incógnita de alguma sala de aula empoeirada.
E eu penso entendê-lo. Li em algum lugar esta excelente metáfora: Ratzinger só queria dar aulas, mas Deus quis que o mundo inteiro fosse a sua sala de aula. Penso que talvez ao velho professor alemão incomode a sua autoridade pontifícia, como penso que deve incomodar a qualquer professor outra obrigatoriedade de ouvi-lo que não a da própria verdade que ele deseja ensinar. Mas ele engoliu o seu incômodo e ensinou-nos; por oito anos nos ensinou a amar a Cristo! Isto é um sacrifício quotidiano que não se pode olvidar.
Li muitas coisas ao longo da semana, e talvez um dos textos que mais me tocou foi este aqui. Há uma sua tradução para o português no Facebook, da qual me utilizo para a seguinte citação:
Mas agora sei, senhor Ratzinger, que vivo em um mundo que vai sentir falta do senhor. Em um mundo que não leu seus livros, nem suas encíclicas, mas que em 50 anos se lembrará como, com um simples gesto de humildade, um homem foi Papa, e quando viu que havia algo melhor no horizonte, decidiu partir por amor à sua Igreja. Vá morrer tranquilo senhor Ratzinger. Sem homenagens pomposas, sem um corpo exibido em São Pedro, sem milhares aclamando aguardando que a luz de seu quarto seja apagada. Vá morrer, como viveu mesmo sendo Papa: humildemente.
E percebo que é verdade. Alguém classificou Bento XVI como o Papa do básico da Fé Cristã, e a análise não é injusta. Estive com o Papa na última JMJ. Do discurso que ele não pronunciou em Cuatro Vientos por causa da chuva, recolho esta simples sentença que, pra mim, resume muito o pontificado do Papa teólogo:
Queridos jovens, não vos conformeis com nada menos do que a Verdade e o Amor, não vos conformeis com nada menos do que Cristo.
Simples e básico, mas nem por isso menos verdadeiro. Nem por isso menos importante. De repente, percebo que as pessoas não precisam ser extraordinárias para serem insubstituíveis, e o que vai fazer mais falta ao mundo será o jeito sereno e didático de Bento XVI falar as verdades mais básicas, das quais o mundo moderno anda ensandecidamente esquecido. De repente, percebo que a renúncia do Papa não tem nada de inusitada, muito pelo contrário até: está perfeitamente de acordo com o estilo do professor da Baviera, cuja genialidade noto decorrer precisamente da pouca conta em que ele tem a si próprio.
Sim, o velho alemão não subiu ao sólio pontifício para ser nosso Rei: apenas sentou-se na cátedra de Pedro para nos dar uma lição de amor a Deus. E levanta-se dela agora que a aula está terminada exatamente porque sabe que a lição é mais importante do que o professor, e não pode correr o risco de que os seus alunos se esqueçam disso. Na verdade, esta renúncia final é parte integrante do seu ensinamento, sem a qual ele não estaria completo. Por mais que Bento XVI seja grande, Aquele de quem o Papa é vigário é muito maior do que ele. Afinal, maldito é o homem que confia no homem, mesmo que este homem seja Joseph Ratzinger. À luz de tudo isso, é claro que o Sumo Pontífice não está fugindo de sua missão, antes a está consumando com uma fidelidade perturbadora. O Papa não deita a cruz ao chão para que outro a carregue, muito pelo contrário: acrescenta-lhe o peso da incompreensão e do ostracismo. Impossível negar o valor sobrenatural deste último sacrifício.
O referido modelo de Kübler-Ross termina no estágio da aceitação, mas a Fé Cristã nos impele a transcender este caminho natural. Ouso ir além e proclamar um outro estágio, talvez incompreensível para os homens modernos, mas que o Cristianismo chega a exigir: o estágio da gratidão. Impossível não volver os olhos para o velho Papa dessa maneira.
Obrigado, Santo Padre, por nos ter aceitado como seus alunos. Obrigado por ter consumido os últimos anos na luta quotidiana contra a sua natureza introspectiva, a fim de ser para nós o que Deus o chamava a ser. Obrigado por nos ter falado de Deus mais do que merecíamos escutar, e com a simplicidade insistente que mesmo a nossa cegueira era capaz de entrever. Obrigado por ter tantas vezes escondido a própria excelência, a fim de que a Fé resplandecesse com mais vigor. Obrigado, ainda, por nos deixar, a fim de que revigoremos a nossa Esperança; obrigado por passar a férula papal, a fim de que seja conhecido Quem, afinal, é o verdadeiro Guia da Igreja de Cristo. Obrigado, enfim, por toda uma vida dedicada a Deus e à Sua Santa Igreja, em agradecimento pela qual a tristeza que hoje nos provoca a sua renúncia é talvez o testemunho mais sincero que podemos prestar.
Obrigado, Bento XVI. O incomensurável bem realizado por Vossa Santidade ao longo dos últimos oito anos já reverbera na Eternidade, à cuja Luz eu rogo à Virgem Santíssima que não o cesse de conduzir jamais.
Belíssimo texto,caro Jorge.
Parabéns!
Faço meu, este teu texto que eu não saberia fazer.
Muito bom!!!
Descobri este blog ao procurar pelo livro “La vera storia dell’Inquisizione”.
Sei que fizeram a tradução deste livro.
Como a posso obter?
Muito obrigado
Jorge, ou qualquer um que possa me responder, quando o Papa Bento XVI vier a falecer (que esperemos que ele viva mais alguns anos de vida para auxiliar o novo Papa que estar por vir, sobre tudo quando este se dirigir ao atual Papa Bento XVI), ele não terá um funeral de Papa, como foi a de João Paulo II, João Paulo I, Paulo VI e todos os papas anteriores a ele?.