Confesso que me deixou desconcertado a notícia – estampada nos meios de comunicação seculares – de que o Papa Francisco «destitui[u] [um] bispo do Paraguai por acobertar casos de pedofilia». Trata-se do bispo de Ciudad del Este, no Paraguai, Dom Rogelio Livieres, cuja diocese passou recentemente por uma intervenção pontifícia; há não muito, comentei o assunto aqui.
Comentei no Facebook que o exercício do poder soberano e ilimitado do Sucessor de São Pedro era terrível e assustava. E isso por pelo menos três razões. Primeiro, não recordo a última vez em que uma determinação pontifícia foi executada assim, de maneira tão unilateral e implacável; dir-se-ia quase draconiana. Segundo, parece haver uma certa desproporcionalidade entre o delito e a pena; afinal de contas, o pe. Urrutigoity (em que pese a por mim já deplorada imprudência de ter sido ele recentemente alçado a cargos de confiança e destaque na Diocese) estava no Paraguai há quase dez anos, ao longo dos quais (até onde me conste) não houve quaisquer acusações contra a sua conduta. Em terceiro, por fim, há uma certa desarmonia entre o que está sendo divulgado pela mídia laica e pelos órgãos oficiais da Santa Sé.
Quanto à primeira, registre-se que o Papa é monarca plenipotenciário por direito divino, autoridade soberaníssima acima da qual não se encontra senão o próprio Deus. Ele é completamente livre para, a seu dispôr, criar e destruir dioceses; distribuir excomunhões, interditos e intervenções; sagrar, nomear e exonerar Bispos. Tal poder ilimitadíssimo, contudo, caíra em um certo desuso com o passar do tempo: não me recordo, como falei, da última vez em que um bispo foi assim sumariamente destituído.
Impossível não enxergar o aspecto positivo dessa atitude. Significa que o Bispo de Roma conhece e reconhece as suas próprias prerrogativas de Vigário de Cristo, e não hesita em empregá-las para aquilo que considera o bem da Igreja. O Pontífice que abriu mão dos sapatos vermelhos e da mozzetta papal – ditos símbolos de um poder anacrônico e que não encontrava mais lugar no mundo moderno – não se despiu, contudo, da sua autoridade soberana, e soube invocar o peso do supremo munus regendi da Igreja para governar, com mão férrea, a Barca de Pedro. Abdicando dos símbolos mas empregando sem pejo o poder neles simbolizados, o Papa Francisco, por incrível que pareça, termina por fortalecer o papado e empoderar aos olhos do mundo a figura do humilde bispo de Roma – que recusa as benesses materiais mas não abre mão das prerrogativas que o seu alto cargo lhe proporciona. É somente quando ouvimos o som tonitruante dos trovões que nos lembramos de que, afinal de contas, o Céu é capaz de trovejar. Roma ruge; o Papa é monarca.
Quanto à segunda, encontra-se aqui a parte mais dolorosa que essa situação enseja. Não parece que esteja muito bem um bom bispo ser, assim, laconicamente destituído da sua Diocese; um bispo que, ao que consta, jamais resistiu a nenhuma das disposições da Santa Sé, sempre colaborou com tanto quanto a Igreja de Roma lhe determinara, que nunca se envolveu em escândalos e cuja atuação pastoral nesses anos à frente de Ciudad del Este tem se mostrado, até onde se pode averiguar, profícua. Parece haver algo de exagerado na pena, o que desconcerta e provoca perplexidade.
No entanto, o Papa é o Papa é o Papa. Ele é o Monarca absoluto, a quem compete a guarda da Igreja Santa de Deus; em princípio, o Sumo Pontífice tem todo o direito de impôr o degredo a Santo Atanásio ou o trancafiamento a S. Pio de Pietrelcina. E às ordens legítimas dos superiores cumpre obedecer, ainda que nos pareçam injustas. É o conselho unânime dos mestres de formação espiritual; para ficar num só exemplo, medite-se neste primeiro ponto do décimo terceiro capítulo d’A Imitação de Cristo:
Aquele que não se sujeita pronta e de boa mente a seu superior, mostra que sua carne não lhe obedece ainda prontamente, mas muitas vezes se revolta e resmunga. Aprende, pois, a sujeitar-te prontamente a teu superior, se queres subjugar a própria carne, porque facilmente se vence o inimigo exterior quando o homem interior não está assolado. Pior inimigo e mais perigoso não tem a alma, que tu mesmo, quando não obedeces ao espírito. Se queres vencer a carne e o sangue, deves compenetrar-te do sincero e absoluto desprezo de ti mesmo. Mas porque ainda te amas desordenadamente, por isso te repugna sujeitar-te de todo à vontade dos outros.
Alguém comentava no Facebook que as pessoas confundiam a legitimidade da ordem com a sua justiça e, do fato de ser ordem legítima, concluíam erroneamente que era também necessariamente boa, santa e justa. De fato, essa confusão existe e cumpre ser sanada. Mas existe uma outra confusão que é muito mais daninha: trata-se do raciocínio inverso, i.e., o de quem, por não considerar a ordem justa, santa ou boa, conclui que por causa disso ela é ilegítima. E este caso é muito pior do que o primeiro, porque aquele conduz no máximo a um erro de valoração a respeito de uma situação de fato e, este, desloca todo o eixo da relação do fiel católico com a hierarquia eclesiástica para o subjetivismo individualista por cujo crivo tudo precisa passar. Não se discutem ordens: obedece-se-lhes. Se todo mundo estivesse autorizado a ponderar as determinações dos superiores para só aquiescer àquelas que lhe parecessem razoáveis, acabar-se-ia com a própria razão de ser da autoridade hierárquica.
Sim, certas ordens vaticanas podem nos parecer injustas e dolorosas, e talvez até o sejam de verdade; contudo, mesmo quanto a essas importa seguir o sábio exemplo do ex-bispo de Ciudad del Este (esta carta merece a leitura na íntegra):
Como filho obediente da Igreja, aceito, contudo, esta decisão, por mais que a considere infundada e arbitrária, pela qual o Papa terá que prestar contas a Deus e não a mim.
Gravem-se estas palavras em pedra, estampem-se-lhes nos frontispícios de nossos templos religiosos – é assim que se reconhece o valor de um Sucessor dos Apóstolos.
Por fim, quanto à terceira, diferentemente do que saiu nos meios de comunicação seculares (e do que eu próprio comentei aqui, da outra vez), a questão das acusações de pedofilia contra o padre Urrutigoity parece que não foi aludida nas informações oficiais que nos chegaram. A nota da Sala de Imprensa da Santa Sé diz simplesmente que «[a] árdua decisão da Santa Sé, determinada por sérias razões pastorais, obedece ao bem maior da unidade da Igreja de Ciudad del Este e da comunhão episcopal no Paraguai». O comunicado de imprensa da Diocese de Ciudad del Este fala em «falta de unidade na comunhão com os outros bispos do Paraguai». Na já citada carta de D. Livieres, o prelado fala abertamente em «oposição e perseguição ideológica». Parece que o problema não é o que parece, e isso – mais uma vez – nos choca e atordoa.
No entanto, repita-se quantas vezes forem necessárias, estamos diante do Papa, e do Papa empregando a sua autoridade pontifícia de um modo muito mais duro do que tem sido o habitual nos tempos que correm…! Não é possível tergiversar. Aquele adágio sobre Roma locuta, causa finita tem um significado maior do que a mera afirmação da infalibilidade da Prima Sedes em questões doutrinárias: denota também a necessidade de uma comunhão efetiva mesmo naquelas decisões de governo sobre as quais não cabe falar em infalibilidade. Papas houve que mudaram a sede do Papado para a França, que negociaram o ultrajante armistício cristero, que dissolveram a ordem dos jesuítas, que permitiram a César executar os cavaleiros da Ordem do Templo; a Igreja, ainda assim, permanece sem mácula e ruga, indefectível esposa de Cristo – e quem não consegue entender isso é porque não entendeu ainda o que significa a indefectibilidade católica. Rezemos pelo Papa, rezemos por D. Rogelio, rezemos pela Igreja Santa de Deus. Afinal de contas, tudo coopera para o bem dos que O amam; passarão pela História Bispos e Papas, e essas palavras não hão de passar.
Caro Jorge Ferraz…
Perfeito post.
Na encíclica “Ut unum Sint” o papa João Paulo II deixava claro que entendia a dificuldade da aceitação do Bispo de Roma para a união de todos os Cristãos, mas também deixou claro que sem o Bispo de Roma a unidade jamais existiria.
A compreensão que apenas os católicos já tem de que independente da qualidade do Bispo de Roma, a ausência dele seria, não apenas pior, mas um fim definitivo da unidade e dá fé católica.
Agora alguns “católicos” acreditam que foram chamados a julgar a decisão do papa e acreditam que agindo assim podem salvar a Igreja católica. Alguns Bispos pretendem decidir SE Roma tem ou não razão, e aqui, todos os que “vão escolher como roma deve agir, já não fazem parte da fé católica e comentam apenas como “estrangeiros”.
Que medo passa pela cabeça de alguns, medo de que o Espírito santo permita que esta igreja desabe, e de repente não seja esta a Igreja fundada por Cristo ou que Cristo não seja bem o que acreditamos ser?
” … Creio no Espírito Santo. Na Santa Igreja Católica, na comunhão dos santos, …”
Amigos! Cada um que carrega consigo a fé na força do Espírito santo, não se sente abalado nem pela ameaça de um papa tirano, nem pela morte, nem pela vida de sacrifícios, nem pela doença, nem pela solidão. Há uma alegria que vaza pelos poros. Rezemos pelo papa é muito bom para nós.
A responsabilidade que nós católicos temos é de não deixar alguém que esteja no erro sem um alerta, na perda do nosso próximo, nosso silêncio nos condenaria. O Espirito Santo escolherá se for necessário quem, quando e como será feita a correção do sucessor de Pedro. Agora se alguém se acha mais competente, podemos ouvir.
Prezado Jorge,
Concordo com o José Carneiro que explicou muito bem a própria posição e a dos debatedores anteriores.
Parece ser possível concluir que:
a) todos concordam que o ato contra o bispo paraguaio foi injusto;
b) todos concordam que um Papa agir como um Papa é algo bom;
c) um Para tem o poder imediato sobre toda a Igreja;
d) um católico TEM que obedecer ao Papa, mesmo quando o peso do seu poder supremo recai sobre nossa cabeça;
Mas…
Pelo andado se conhece o bêbado, e pelos atos o herege.
O que todo mundo vê e poucos sugerem é que nesse ato como em outros é possível inferir que o “Papa” comunga com hereges mas quer destruir quem guarda a fé católica: Franciscanos da Imaculada, bispo paraguaio,… quem será o próximo? Não é a injustiça que assombra, é saber da ligação da injustiça com a heresia.
Isso tem que ser discutido nas redes sociais. O quanto já possível saber que este Papa Francisco não professa a fé católica, antes a odeia, e quer continuar a obra de destruição da Igreja comungando com todo o tipo de hereges e até pagãos e ateus. Há pelo menos dúvida plausível? Se sim, ele que faça antes uma séria e severa Profissão de Fé católica e reitere a doutrina católica de cima dos telhados para que saibamos que ele é de fato o Papa da Igreja Católica. Se eu fosse Dom Livierres, não entregaria nunca a diocese. Pelo bem das almas a ele confiadas.
Jorge, acho que você está certo em quase tudo, em defender os princípios corretos. Mas erra em não reconhecer que paira dúvida série sobre a pureza da fé católica deste cidadão. Motivo alegado da deposição do Bispo: falta de comunhão com o episcopado. Ora, pois que falte, e se o Papa o depõe por isso, é porque comunga com o episcopado comunista do paraguai. Logo,… é herege, e não Papa.
Parabéns a todos que enxergam a gravidade desta situação.
Que Deus tenha piedade de nós nesses tempos de crise na Igreja (que se fosse em outro tempo, sob um verdadeiro e insuspeito papa, seria beira de heresia dizer isso).
Em JMJ,
Flávio Mamede
Suas posições são radicalmente legalistas, isso esconde um olhar mais aprofundado sobre a situação vexatória da Igreja:
Até quando se tapará o sol com a peneira?
http://blogonicus.blogspot.com.br/2014/09/dom-rogelio-removido.html
Caro Jorge,
Compreendi sua argumentação, o papa é monarca, ponto!
Porém eu estou incomodado, assim como alguns comentaristas, pelo fato do papa ser duro com conservadores e indulgente com hereges. Como católico, aceito tais decisões do papa, apesar de não me parecerem, nem justas, nem um bem para a Igreja.
O Papa não é um monarca absoluto, Jorge. Monarcas absolutos são contrários a tudo que a Igreja sempre ensinou em matéria de política e, desse modo, o seu próprio Chefe visível não poderia ser o primeiro a contrastar com tal orientação. O Papa não é um monarca absoluto porque seu poder está limitado pela Revelação e pelas próprias leis que ele cria ou a que jura se submeter (é verdade que ele pode mudá-las, mas até que isso ocorra, também se submete às mesmas – de outro modo não haveria segurança jurídica na vida eclesial).
“Sofrer uma injusta aplicação da lei é preferível a viver em uma terra sem lei. Um monarca agindo com arbitrariedade ao menos lembra ao mundo que é monarca; muito pior é a coroa inerte e apática, paulatinamente transformada em reles figura decorativa. Esse simbolismo é eloquente demais para que o deixemos passar em branco sob a revolta excessivamente materialista com o mérito da decisão.”
Supondo que o ato seja injusto, não teríamos nada de positivo nele. Quando a suprema autoridade passa anos sem se mexer como deveria e, de repente, sai da letargia para aplicar o peso da espada sem atentar para a justiça, o que temos é um ato desmoralizante, que só atiça o desejo de revolta e a desconfiança.