A festa da Imaculada Conceição da Virgem celebra-se no dia 08 de dezembro. Nove meses depois – hoje, dia 08 de setembro -, comemora-se o aniversário de Nossa Senhora, a festa do nascimento da Virgem Maria, a natividade da Mãe de Deus. Que Ela seja em nosso favor!
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SERMÃO DO NASCIMENTO DA VIRGEM MARIA
DEBAIXO DA INVOCAÇÃO DE N. SENHORA DA LUZ,
TÍTULO DA IGREJA E COLÉGIO DA COMPANHIA DE JESUS,
NA CIDADE DE S. LUÍS DO MARANHÃO.
ANO DE 1657
De qua natus est Jesus.
Pe. Antônio Vieira [download aqui de seus sermões]
Celebramos hoje o nascimento; mas que nascimento celebramos? Se o perguntarmos à Igreja, responde que o nascimento de Maria; se consultarmos o Evangelho, lemos nele o nascimento de Jesus: De qua natus est Jesus. Assim temos encontrados nas mesmas palavras que propus, o texto com o mistério, o tema com o sermão, e um nascimento com outro. Se a Igreja celebrara neste dia o nascimento glorioso de Cristo, muito acomodado Evangelho nos mandava ler; mas o dia e o nascimento que festejamos não é o do Filho, é o da Mãe. Pois se ainda hoje nasce a Mãe, como nos mostra já a igreja e o Evangelho não a Mãe, senão o Filho nascido: De qua natus est Jesus? Só no dia de Nossa Senhora da Luz se pudera responder cabalmente a esta dúvida. O sol, se bem advertirdes, tem dois nascimentos: um nascimento com que nasce quando nasce, e outro nascimento com que nasce antes de nascer. Aquela primeira luz da manhã que apaga ou acende as sombras da noite, cuja luz é? É luz do sol. E esse sol então está já nascido? Não e sim. Não, porque ainda não está nascido em si mesmo. Sim, porque já está nascido na sua luz. De sorte que naturalmente vêem os nossos olhos ao sol duas vezes nascido: nascido quando nasce, e nascido antes de nascer.
Grande prova temos desta filosofia na mesma história evangélica, e é um dos mais aparentes encontros que se acham em toda ela. Partiram as Marias ao sepulcro na manhã do terceiro dia, e referindo o evangelista, S. Marcos a hora a que chegaram, diz assim: Valde mane una subbatorum veniunt ad monumentum orto jam sole: Ao domingo muito de madrugada chegaram ao sepulcro sendo já o sol nascido (Mc. 16,2). Notável dizer! Se era já o sol nascido: Orto jam sole, como era muito de madrugada: Valde mane? E se era muito de madrugada; Valde mane, como era já o sol nascido: Orto jam sole? Tudo era e tudo podia ser, diz Santo Agostinho, porque era o sol nascido antes de nascer. Ora vede. O tempo em que vieram as Marias ao sepulcro era muito de madrugada: Valde mane, diz S. Marcos; Valde diluculo, diz S. Lucas (Lc. 24,2). Era muito de madrugada: Valde mane? Logo já havia alguma luz que isso quer dizer dilúculo. Havia luz? Logo, já o sol estava nascido: Orto jam sole. Provo a conseqüência, porque o sol, como dizíamos, tem dois nascimentos: um nascimento quando vem arraiando aquela primeira luz da manhã a que chamamos aurora; outro nascimento quando o sol descobre, ou acaba de desaparecer em si mesmo. E como o sol não só nasce quando nasce em si mesmo, senão também quando nasce na sua luz, por isso disse o evangelista com toda a verdade, que era de madrugada e que era o sol nascido, Nenhuma destas palavras é minha; todas são da glosa de Lirano seguindo a Santo Agostinho: Valde mane, orto jam soIe: Sol enim potest oriri dupliciter: uno modo perfecte, quando primo egreditur et apparet super terram; alio modo, quando lur ejus incipit apparerere, scilicet in aurora, et sic accipitur hic ortus solis. Não o podia dizer mais em português. De maneira que àquela primeira luz com que se rompem as trevas da noite, chamou S. Marcos nascimento do sol, porque em todo o rigor da verdade evangélica, não só nasce o sol quando nasce em si mesmo, senão quando nasce na sua luz. Um nascimento do sol é quando nasce em si mesmo e aparece sobre a terra: Quando primo egreditur et apparet super terram; o outro nascimento é antes de nascer em si mesmo, quando nasce e aparece a sua luz: Quando lux ejus incipit apparere. É o que estamos vendo neste dia, e o que nos está pregando a Igreja neste Evangelho. O dia mostra-nos nascida a luz, o Evangelho mostra-nos nascido o sol, e tudo é. Não é o dia em que o sol apareceu nascido sobre a terra: Quando primo egreditur et apparet super terram, mas é o dia em que aparece nascido na luz da sua aurora: Quando lux eius incipit apparere, scilicet in aurora: porque, se o sol não está ainda nascido em si mesmo, já está nascido na luz de que há de nascer: De qua natus est Jesus.
Estava dito. Mas porque parecerá novidade dar dois nascimentos e dois dias de nascimentos a Cristo, saibam os curiosos que não é novidade nova senão mui antiga, e uma das mais bem retratadas verdades que o Criador do mundo nos pintou no princípio dele. No primeiro dia do mundo criou Deus a luz, no quarto dia criou o sol. Sobre estes dois dias e estas duas criações há grande batalha entre os doutores, porque se o sol é a fonte da luz, que luz é esta que foi criada antes do sol? Ou é a mesma luz do sol, ou é outra luz diferente? Se é a mesma, por que não foi criada no mesmo dia? E se é diferente, que luz é, ou que luz pode haver diferente da luz do sol? Santo Tomás, e com ele o sentir mais comum dos teólogos, resolve que a luz que Deus criou o primeiro dia foi a mesma luz de que formou o sol ao dia quarto. De modo que em ambos estes dias e em ambas estas criações foi criado o sol. No primeiro dia foi criado o sol informe; no quarto dia foi criado o sol formado. São os termos de que usa Santo Tomás. No primeiro dia foi criado o sol informe, porque foi criado em forma de luz; no quarto dia foi criado o sol formado, porque foi criado em forma de sol. Em conclusão, que entre todas as criaturas só o sol teve dois dias de nascimento: o primeiro dia e o quarto dia. O quarto dia em que nasceu em si mesmo, e o primeiro em que nasceu na sua luz. O quarto dia em que nasceu sol formado, e o primeiro em que nasceu na luz de que se formou. Pode haver propriedade mais própria? Agora pergunto eu, se alguém me não entendeu ainda: quem é este sol duas vezes nascido? E quem é esta luz de que se formou este sol? O sol é Jesus, a luz é Maria, diz Alberto Magno. E não era necessário que ele o dissesse. Assim como o sol nasceu duas vezes, e teve dois dias de nascimento; assim como o sol nasceu uma vez quando nascido e outra antes de nascer; assim como o sol uma vez nasceu em si mesmo, e outra na sua luz; assim, nem mais nem menos, o sol Divino, Cristo, nasceu duas vezes e teve dois dias de nascimento. Um dia em que nasceu em Belém, outro em que nasceu em Nazaré. Um dia em que nasceu quando nascido, que foi em vinte e cinco de dezembro, e outro dia em que nasceu antes de nascer, que foi neste venturoso dia. Um dia em que nasceu de sua Mãe, outro dia em que nasceu com ela. Um dia em que nasceu em si mesmo, outro dia em que nasceu naquela de quem nasceu: De qua natus est Jesus.
[…]
Ora, cristãos, suposto que aquela soberana luz é tão apressada e diligente para nosso remédio, suposto que é tão universal para todos e para tudo, suposto que é tão piedosa e benigna para nos querer fazer bem, suposto que é tão privilegiada e favorecida por graça e benignidade do mesmo sol, metamo-nos todos hoje debaixo das asas desta soberana protetora para que nos faça sombra e nos dê luz, para que nos faça sombra e nos defenda dos raios do Sol de justiça, que tão merecidos temos por nossos pecados, e para que nos dê luz para sair deles, pois é Senhora da Luz. Aquela mulher prodigiosa do Apocalipse, que S. João viu com as asas estendidas, toda a Igreja reconhece que era a Virgem Maria. E nós podemos acrescentar que era a Virgem debaixo do nome e invocação de Senhora da Luz. A mesma luz o dizia e o mostrava, que da peanha até a coroa toda era luzes: a peanha lua, o vestido sol, a coroa estrelas; toda luzes e toda luz. E pois a Senhora da Luz está com as asas abertas; metamo-nos debaixo delas, e muito dentro delas, para que sejamos filhos da luz. Dum lucem habetis, credite in lucem ut filii lucis sitis, diz Cristo (Jo. 12,36). Enquanto se vos oferece a luz, crede na luz, para que sejais filhos da luz. Sabeis, cristãos, por que não acabamos de ser filhos da luz? É porque não acabamos de crer na luz. Creiamos na luz, e creiamos que não há maior bem no mundo que a luz, e ajudem-nos a esta fé os nossos mesmos sentidos.
Por que estimam os homens o ouro e a prata, mais que os outros metais? Porque têm alguma coisa de luz. Por que estimam os diamantes e as pedras preciosas mais que as outras pedras? Porque têm alguma coisa de luz. Por que estimam mais as sedas que as lãs? Porque têm alguma coisa de luz. Pela luz avaliam os homens a estimação das coisas, e avaliam bem, porque quanto mais têm de luz, mais têm de perfeição. Vede o que notou Santo Tomás: Neste mundo visível, umas coisas são imperfeitas, outras perfeitas, outras perfeitíssimas; e nota ele com sutileza e advertência angélica, que as perfeitíssimas têm luz, e dão luz; as perfeitas não têm luz mas recebem luz; as imperfeitas nem têm luz, nem a recebem. Os planetas, as estrelas e o elemento do fogo, que são criaturas sublimes e perfeitíssimas, têm luz e dão luz; o elemento do ar e o da água, que são criaturas diáfanas e perfeitas, não têm luz mas recebem luz; a terra e todos os corpos terrestres, que são criaturas imperfeitas e grosseiras, nem têm luz, nem recebem luz, antes a rebatem e deitam de si. Ora, não sejamos terrestres, já que Deus nos deu uma alma celestial; recebamos a luz, amemos a luz, busquemos a luz, e conheçamos que nem temos, nem podemos, nem Deus nos pode dar bem nenhum que seja verdadeiro bem, sem luz. Ouvi umas palavras admiráveis do apóstolo S. Tiago na sua epístola:
Omne datum optim um, et omne donum perfectum de sursum est, descendens a Patre luminum (Tg. 1,17): Toda dádiva boa, e todo dom perfeito descende do Pai dos lumes. Notável dizer! De maneira que quando Deus nos dá um bem que seja verdadeiramente bom, quando Deus nos dá um bem que seja verdadeiramente perfeito, não se chama Deus pai de misericórdias, nem fonte das liberalidades: chama-se pai dos lumes e fonte da luz, porque no lume e na luz, que Deus nos dá com os bens, consiste a bondade e a perfeição deles. Muitos dos que nós chamamos bens de Deus, sem luz são verdadeiramente males, e muitos dos que nós chamamos males, com luz são verdadeiros bens. Os favores sem luz são castigos, e os castigos com luz são favores; as felicidades sem luz são desgraças, e as desgraças com luz são felicidades; as riquezas sem luz são pobreza, e a pobreza com luz são as maiores riquezas; a saúde sem luz é doença, e a doença com luz é saúde. Enfim na luz ou falta de luz consiste todo o bem ou mal desta vida, e todo o da outra. Porque cuidais que foram santos os santos, senão porque tiveram a luz que a nós nos falta? Eles desprezaram o que nós estimamos, eles fugiram do que nós buscamos, eles meteram debaixo dos pés o que nós trazemos sobre a cabeça, porque viam as coisas com diferente luz do que nós as vemos. Por isso Davi em todos os salmos, por isso os profetas em todas suas orações, e a Igreja nas suas, não cessam de pedir a Deus luz e mais luz.
Esse é o dia, cristãos, de despachar estas petições. Peçamos hoje luz para nossas trevas, peçamos luz para nossas escuridades, peçamos luz para nossas cegueiras, luz com que conheçamos a Deus, luz com que conheçamos o mundo, e luz com que nos conheçamos a nós. Abramos as portas à luz para que alumie nossas casas; abramos os olhos à luz, para que alumie nossos corações; abramos os corações à luz, para que more perpetuamente neles. Venhamos, venhamos a buscar luz a esta fonte de luz, e levemos daqui cheias de luz nossas almas. Com esta luz saberemos por onde havemos de ir; com esta luz conheceremos donde nos havemos de guardar; com esta luz, enfim, chegaremos àquela luz onde mora Deus, a que o apóstolo chamou luz inacessível: Qui lucem inhabitat inaccessibilem (I Tim. 6,16), que só por meio da luz que hoje nasce, se pode chegar à vista do sol que dela nasceu: De qua natus est Jesus.