Foi com horror que tomei conhecimento do projeto de lei aprovado pela Câmara dos Deputados – e que ainda vai à votação no Senado – sobre a reserva de 50% (isso mesmo, metade!) do número de vagas das universidades federais para alunos que cursaram o Ensino Médio na rede pública de ensino. O Ensino Superior brasileiro certamente não é a melhor coisa do mundo, mas esta idéia estúpida vai ser a destruição daquilo que ainda há de bom nele.
Não tenho simpatia alguma por cotas. Acho-as toscas e irracionais. Sempre é possível a utilização de retóricas mil a fim de mostrar como os resultados alcançados a médio e longo prazo vão ser positivos para o conjunto da população brasileira e blá blá blá, mas isso não muda o erro radical no qual esta visão ideologizada tacanha se baseia para propôr e aprovar semelhantes disparates: o igualitarismo.
Na Universidade, no mês passado, fui obrigado a assistir algumas aulas toscas – fazem parte do círculo de cadeiras obrigatórias do mestrado – nas quais muito se debateu sobre as profundas desigualdades regionais existentes no Brasil. Concordo que elas existam e certamente concordo que algumas delas bem podem e devem ser mitigadas, mas a concepção geral do problema e as políticas adotadas para “resolvê-lo” são repletas de estupidez. Por exemplo, disse-se que as regiões mais desenvolvidas do sudeste têm uma “dívida histórica” para com as demais regiões do território brasileiro. O que me deixou mais perplexo foi que a professora tinha uma visão correta do desenrolar histórico que fez com que as desigualdades surgissem, mas paradoxalmente teimava em falar nas inventadas “dívidas históricas”.
Que dívidas históricas são essas, afinal de contas? Ah, quando a Família Real veio ao Brasil, instalou-se no Rio de Janeiro, o que fez com que os esforços das pessoas – capazes de provocar desenvolvimento – concentrassem-se naquela região em detrimento de outras. Ah, quando foram construídas as primeiras estradas de ferro, houve uma guerra entre fazendas para saber onde os trilhos iam passar – e as cidadas vencedoras deste confronto, por terem acesso a mais tecnologia, tiveram um maior nível de desenvolvimento, deixando na “marginalidade” as outras pelas quais não passava o trem a vapor. E outras coisas do gênero.
Depois de todo o exposto, uma pessoa sensata pode muito bem perguntar: acaso pode existir alguma coisa mais natural do que isso? Ora bolas, quando a Família Real veio para o Brasil, era óbvio que ela precisava se hospedar em algum lugar, não podendo “distribuir-se igualitariamente” por todo o território nacional. Uma vez que o lugar escolhido foi o Rio de Janeiro (e ainda que fosse Fortaleza, Recife ou Salvador), ninguém pode impedir as pessoas de se instalarem próximas àquilo que julgavam ser mais vantajoso para elas. Para quê um fabricante de um produto qualquer necessário à corte portuguesa iria construir as suas instalações no interior do Amazonas, quando o consumidor dos seus produtos estava no Rio de Janeiro? Se ele fizesse isso, ia falir. Ao contrário, a presença de alguém – no caso, da Família Real – que tenha algumas demandas faz, naturalmente, com que se desenvolvam as tecnologias necessárias para que tais demandas sejam supridas. É, portanto, a coisa mais natural do mundo que, devido a alguns fatores históricos, certas regiões tenham se desenvolvido mais do que outras – e não poderia ser diferente.
O mesmo vale com relação às estradas de ferro. Elas evidentemente precisavam passar por algum lugar (a malha ferroviária não tinha condições de ser um “xadrez de trilhos” igualitariamente acessível a todos os pontos do Brasil), e o lugar pelo qual elas passavam teria naturalmente melhores condições e maiores facilidades para se desenvolver. Isto é tão natural que até me espanta alguém falar em “dívida histórica”. Mas por quê “dívida”? Simplesmente porque a corte portuguesa veio ao Rio de Janeiro, ao invés de ficar em Recife? E daí? Se, porventura, ela tivesse se instalado em Recife, a única coisa que iria mudar era o lado nos quais estariam as regiões mais desenvolvidas. A desigualdade iria permanecer, porque ela é natural. E isto não implica em nenhuma “dívida” de ninguém.
Há uma outra lei estúpida (esta, já em vigor) que eu descobri na faculdade: das verbas federais de financiamento a projetos de pesquisa, um terço destina-se aos projetos das regiões norte e nordeste. Trocando em miúdos, se existirem 90 bolsas para serem distribuídas e 300 projetos quaisquer concorrendo a elas, se estes projetos forem 30 de recife e 270 de São Paulo, todos os projetos de Recife receberão financiamento e os 270 de São Paulo terão que concorrer pelas 60 bolsas restantes. Mesmo que os projetos do sudeste sejam melhores e tenham mais condições de obter resultados úteis. A professora alardeava isso como uma vitória; eu, no entanto, tinha vergonha. Os pesquisadores nordestinos deviam pleitear bolsas por terem bons projetos; não simplesmente por serem nordestinos.
A estúpida idéia de financiar projetos de pesquisa só por eles serem da região x ou y apresenta a mesma estupidez da idéia de custear os estudos de fulano ou sicrano só por eles serem da classe w ou z. As coisas passam a ser valorizadas não por méritos [por quão inteligente seja um aluno, no caso das vagas universitárias; por quão relevante e promissor seja um projeto de pesquisa, no caso das bolsas de financiamento], mas sim por algum outro critério ideológico, míope e tacanho, que impedem o desenvolvimento natural da sociedade. Provavelmente nós nunca saberemos quantas tecnologias úteis deixaram de ser desenvolvidas porque o financiamento que poderia ser delas foi redirecionado para algum projeto de pouca relevância da Universidade Federal de Pernambuco. Mas, provavelmente, nós saberemos a desgraça na qual vão se transformar as universidades públicas quando metade do corpo discente for composto por pessoas que não tinham condições de estar ali.
O ensino básico público brasileiro é uma grande porcaria. Os alunos que, a despeito da deseducação básica nas escolas públicas, esforçam-se e conseguem uma aprovação no vestibular são – estes sim! – pessoas com grande probabilidade de terem sucesso em sua vida universitária. Os que não tiveram acesso senão a uma educação básica tosca e deficiente, se forem “jogados” no ensino superior, evidentemente não conseguirão acompanhar os estudos. Daí – o que é uma desgraça, mas é muitíssimo provável – o ensino ministrado precisará ser nivelado por baixo, sob pena de metade dos alunos serem incapazes de o absorver. Os bons alunos serão prejudicados, e aí a universidade vai fingir que ensina para alunos que fingem aprender. E – como muito argutamente apontou um amigo meu – depois, quando o mercado rejeitar os frutos desta caricatura de formação superior, o Governo é bem capaz de exigir às empresas que tenham, no seu quadro de funcionários, tantos por cento de empregados que fizeram a sua graduação graças ao “oba-oba” igualitário. É, em suma, uma série catastrófica de problemas.
O acesso aos níveis superiores de instrução precisa ser concedido por mérito – coisa óbvia, mas esquerdismo faz mal ao cérebro, e a visão igualitarista de mundo do desgoverno atual o impede de enxergar aquilo que é mais evidente. Ao que parece, não satisfeito com deixar a educação brasileira ir lentamente ao fundo do poço, o Governo quer acelerar a sua morte dando-lhe este golpe fatal. Tenho pena dos futuros universitários! Três anos atrás, a UNICAMP já reclamava destas cotas, quando a reforma universitária era discutida. Não adiantou nada, e nunca vai adiantar nada enquanto a mentalidade igualitária que está na raiz de todos esses problemas não for extirpada de uma vez por todas. Só que o estrago acumulado ao longo do tempo torna cada vez mais utópica uma solução.