Comentando o artigo de Dom Fisichella

Gostaria de acrescentar mais alguns ligeiros comentários ao artigo de Sua Excelência Reverendíssima Dom Rino Fisichella, publicado na edição de ontem de L’Osservatore Romano e aqui reproduzido. Em seu artigo, o presidente da Pontifícia Academia para a Vida fez alguns comentários sobre o caso do aborto em Recife e das declarações do Arcebispo local.

Antes de qualquer coisa é preciso deixar bem claro que ninguém – absolutamente ninguém – negou a existência do cân. 1398 do Código de Direito Canônico que diz que “[q]uem provoca aborto, seguindo-se o efeito, incorre em excomunhão latae sententiae”. Ora, este é o cerne das declarações do Arcebispo de Olinda e Recife; de onde se pode inferir que, no essencial, ninguém discorda de Dom José Cardoso e nem pode discordar, porque seria discordar do Código de Direito Canônico da Igreja. Todos os “católicos” que chiaram contra a pena nos últimos dias, que consideraram um absurdo medieval a existência da excomunhão, que lançaram ao Arcebispo a pecha infamante de “Inquisidor” e coisas parecidas, no final das contas era contra a Igreja – ainda que não o soubessem – que dirigiam a sua fúria descabida. Quanto a este ponto, não cabe discussão.

No entanto, há a possibilidade – e é aqui que se insere o artigo de Dom Fisichella – de se questionar não o cânon em si (o que seria impossível), mas a atitude do Arcebispo de Olinda e Recife de anunciar publicamente a sua existência em meio ao drama (o que, diga-se de passagem, é inoportuno e imprudente – mas, vá lá!). A quantidade de matizes que esta modalidade de crítica pode admitir é virtualmente infinita, indo desde o questionamento sobre a existência, no caso concreto, de atenunantes que poderiam livrar da excomunhão os envolvidos no aborto, até a afirmação peremptória de que foi inoportuna a declaração do Arcebispo. O artigo de Dom Fisichella consegue cobrir estes dois extremos.

Ele critica abertamente a postura de Dom José Cardoso, ao afirmar, por exemplo, que o assassinato das duas crianças inocentes [“É verdade, Carmen trazia dentro de si outras vidas inocentes como a sua, também frutos da violência, e foram suprimidas“; grifos meus] não é – pasmem! – motivo suficiente para se falar na excomunhão [“não basta para emitir um julgamento que pesa como um machado”; grifos meus novamente]! Oras, Excelência, data venia, se o assassinato de duas crianças inocentes, que V. Excia. admite existir, “não basta” para emitir o “julgamento que pesa como um machado”, então o que é que bastaria para emiti-lo? O que é que está faltando? Se a existência de fato de um delito não é suficiente para se falar na pena em que incorre quem comete este delito… então quando é que poderemos falar nesta pena? Nunca…?

Donde se vê que a argumentação simplesmente não procede. Diz Sua Excelência que a existência do aborto não é o bastante para falar na excomunhão, mas esquece-se de dizer o que seria o bastante. Caímos, neste caso, em um “raciocínio” semelhante ao encontrado nas declarações do Secretário Geral da CNBB: nunca poderíamos falar sobre o assunto. Os inimigos da Igreja certamente iriam gostar deste silêncio que raia à cumplicidade; no entanto, nós, católicos, temos sempre a obrigação de falar. Podemos sempre repetir com o Apóstolo: “ai de mim, se eu não anunciar o Evangelho” (1Cor 9,16)!

A outra parte da crítica de Dom Fisichella refere-se à existência da excomunhão em si, no caso concreto deste aborto ocorrido em Recife. Infere-se a sua simpatia pelos médicos em pelo menos dois trechos do seu artigo: quando ele fala que “não se pode consentir que se faça um juízo negativo, sem primeiro ter considerado o conflito que se criou em seu [do médico] íntimo”, e – pior ainda! – quando diz, dirigindo-se à menor, que “[s]ão outros que merecem a excomunhão e o nosso perdão, não os que te permitiram viver”. Aqui, peca Sua Excelência por desinformação: não houve “conflito” algum no “íntimo” dos médicos, porque são abortistas militantes. Em nenhum momento eles titubearam; não se tratou, sob nenhuma ótica, de uma decisão tomada sob a pressão de ter diante de si uma vida que se esvaía e pela qual era necessário urgentemente fazer alguma coisa, porque a menina não corria nenhum risco de vida imediato. Outrossim, o que significa a frase misteriosa do final do artigo? Não são os médicos carniceiros que merecem a excomunhão? Quem são os “outros” aos quais Sua Excelência se refere? Por que Dom Fisichella não expõe claramente as suas opiniões sobre o assunto, ao invés de ficar com estas sentenças soltas e frases genéricas que ninguém sabe ao certo o que significam?

O artigo do presidente da Pontifícia Academia para a Vida aborda aspectos corretos dos problema (e talvez isso explique a sua publicação no L’Osservatore), porque, afinal, é certamente necessário dar apoio humano à menor violentada e é obviamente necessário levar em consideração os aspectos subjetivos que, num caso concreto, delimitam as fronteiras entre o erro de boa fé (que exime da pena) e a malícia do ato (que faz nela incorrer); no entanto, ele é duplamente injusto. É injusto com Dom José Cardoso, retratado como um insensível, e é injusto com os médicos promotores do aborto, virtualmente apresentados como cristãos exemplares atravessando dramas de consciência. Uma completa inversão de papéis! É de se lamentar que – mais uma vez – um Sucessor dos Apóstolos venha a ser usado pelos inimigos da Igreja para atacá-La e humilhá-La. Não, Dom Fisichella, a Igreja – definitivamente – não precisava disso.

13 comentários em “Comentando o artigo de Dom Fisichella”

  1. E então, senhores católicos?

    Como fica agora quando a própria cúpula da sua Igreja se revolta contra a atitude do Bispo Cardoso???

    http://mallmal.blogspot.com/2009/03/e-nao-e-que-igrejinha-resolveu-se.html#links

    http://ceticismo.net/2009/03/16/icar-muda-de-ideia-e-critica-excomunhao-no-caso-da-menor-gravida/

    http://lablogatorios.com.br/eccemedicus/2009/03/16/sera/

    Ou leiam na íntegra no site do L´Osservatore Romano, que se não me engano é publicado no próprio Vaticano…

  2. “Não, Dom Fisichella, a Igreja – definitivamente – não precisava disso.” (2)

    Parabéns Jorge. Com respeito e inteligência soube dissecar a declaração do bispo italiano, que no meu entender foi muito infeliz.

    ” Oras, Excelência, data venia, se o assassinato de duas crianças inocentes, que V. Excia. admite existir, “não basta” para emitir o “julgamento que pesa como um machado”, então o que é que bastaria para emiti-lo? O que é que está faltando? Se a existência de fato de um delito não é suficiente para se falar na pena em que incorre quem comete este delito… então quando é que poderemos falar nesta pena? Nunca…?”

    Ness parágrafo você coloca para mim o que é mais preocupante, a hesitação e confusão de lideranças católicas frente ao terrível crime do aborto. Parece que a falta de clareza, faz com que muitos prefiram o silêncio dando campo aos adversários da Santa Igreja, como em um jogo de xadrez.

    Dom José fez um contra-ataque inesperado para muitos. Colocou em Xeque não só os maus médicos, como também mos maus católicos. Para mim sua firmeza, não se limitou a incomodar essas pessoas, mas também aos pastores que diante de situações semelhantes não tiveram a ousadia desse servo do Senhor.

    Dom José viu com auxílio da graça divina, que essa situação não podia continuar. Não tenho dúvidas em afirmar que sua atitude em médio e longo prazo trará um grande benefício para a Igreja no Brasil, quiçá, no mundo.

    Paz e Bem .

    Luciano

  3. Sr. Mallmal,

    Como fica agora quando a própria cúpula da sua Igreja se revolta contra a atitude do Bispo Cardoso???

    Leia este post daqui. Qual foi a parte que o senhor não entendeu?

    – Jorge

  4. “É injusto com Dom José Cardoso, retratado como um insensível, e é injusto com os médicos promotores do aborto, virtualmente apresentados como cristãos exemplares atravessando dramas de consciência. Uma completa inversão de papéis!”

    De fato, Dom José Cardoso, foi retratado como um insensível e os médicos promotores do aborto, virtualmente apresentados como cristãos exemplares atravessando dramas de consciência. Sim, verdadeiramente uma completa inversão de papéis!!!
    No artigo, Dom Fisichella diz que haveria, primeiramente, necessidade de dar apoio humano à menor violentada. Mas quem disse que não foi dado esse apoio, pois quem realmente apoiou essa mãe foi Dom José Cardoso, quando de sua luta em defesa da vida da mãe e de seus dois filhos, pois não há prova de amor maior do que este. Dom José foi quem de fato, demonstrou maior amor por estas três crianças inocentes. Eu me sinto também amado por este homem de Deus, sucessor dos Apóstolos de Nosso Senhor Jesus Cristo, pois ele não demostrou somente um ENORME AMOR por estas três inocentes crianças, mas demostrou amor para com todos nós católicos do mundo inteiro, a Jesus e a Santa Igreja Católica. Ele não foi inoportuno ao declarar a excomunhão automática dos envolvidos no nefasto aborto/assassinato dessas crianças, ele foi deverás oportuno, pois é assim que se comporta um verdadeiro Apóstolo. Ele foi e é fiel ao mandato de Nosso Senhor.

    “Aquele que tem os meus mandamentos e os guarda, esse é que me ama. E aquele que me ama será amado por meu Pai, e eu o amarei e manifestar-me-ei a ele”. (Jo 14,21)

    “Respondeu-lhe Jesus: Se alguém me ama, guardará a minha palavra e meu Pai o amará, e nós viremos a ele e nele faremos nossa morada”. (Jo 14,23)

    “Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a sua vida por seus amigos”. (Jo 15,13)

  5. Jorge,

    Porque você não envia um protesto ao jornal italiano ? (sabe italiano ?)Informando o que verdadeiramente ocorreu em Pernambuco .

    Forte abraço.

    Luciano

  6. Luciano,

    Primo, io non parlo italiano… :-)

    Consigo ler muito mal; não me atrevo a escrever.

    Segundo, não se preocupe; nós temos quem proteste ao L’Osservatore. O assunto voltará à tona. Reze pela Igreja.

    Abraços,
    Jorge

  7. Ué, Jorge! O Fisichella, que é fortemente ligado ao Bento, criticou a atitude do bispo Cardoso.

    Você explicitou as suas opiniões sobre o Fisichella, só. Negar o desabono velado do Vaticano pode até ser sua posição, mas ele não deixa de existir por isso… :)

  8. Mallmal,

    Em primeiro lugar, nem mesmo dom Fisichella negou – e nem poderia negar, como eu disse – a existência de excomunhão automática para quem realiza aborto.

    Em segundo lugar… que parte de “artigos de bispos publicados em jornais não são posicionamentos do Vaticano” tu ainda não entendeste?

    Abraços,
    Jorge

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