[Publico um texto do João Pereira Coutinho, que um amigo fez a gentileza de me enviar por email – acredito que só esteja disponível na internet para assinantes – e que é muito valioso. A despeito do tom debochado do articulista em alguns trechos, ele evoca um misto de nostalgia e de tristeza, de admiração e de frustração: salta aos olhos na leitura do texto a enorme quantidade de coisas que foram perdidas no intervalo de uma geração, a ponto do Coutinho precisar dizer que a sua infância – o tempo onde a Semana Santa era vivida realmente em Portugal – é um “território distante”.
O quanto distante? Quinze anos, vinte, trinta anos? Como o meu amigo que enviou-me o texto, não sei a idade do Coutinho. Mas não pode ser muito mais do que isso, e é de se espantar que, em tão pouco tempo, tanto de costumes e de tradições tenha sido perdido! A narrativa que faz o autor da Semana Santa da sua infância contrasta fortemente com a última frase do artigo: “uma cadência de festa que anuncia a ressurreição de Cristo a homens que dormem”. Cristo ressuscita, e ninguém parece se importar: os homens dormem. É triste, muito triste. Que Nossa Senhora de Fátima Se compadeça de Portugal, e que Deus tenha misericórdia de nós todos.]
Lisboa amanhece
A minha infância é um território distante. E os rostos desse passado são apenas memórias
ESCREVO NO domingo de Páscoa, minutos depois de perder o compasso. Adormeci. Quando acordei, o compasso já tinha passado.
Não sei se os brasileiros conhecem o termo. “Compasso”. A simples palavra evoca uma infância inteira sob educação católica no Portugal do pós-25 de Abril. O compasso era o momento em que um padre e quatro ou cinco ajudantes entravam nas casas da cidade, anunciando que Jesus ressuscitara.
Lembro-me: acordava cedo, vestia-me, esperava. E quando se ouvia um sino nas proximidades, a casa vestia-se com flores à porta. O compasso chegava. A família, então alargada a primos, avós e tios, recebia o grupo e beijava o corpo de Cristo na cruz. Eu, hipocondríaco desde tenra idade, sempre alimentei reservas sanitárias sobre o ato. E se aquilo transmitisse doenças? E quantas bocas já tinham beijado Jesus? E se a nossa vizinha, uma repugnante dona Mafalda (com bigode), beijara o crucifixo antes de mim?
Cheguei a partilhar estas inquietações heréticas com o meu avô, e ele, um liberal com humor intocável, dizia que a ideia era inconcebível porque o corpo de Cristo fazia milagres e exterminava qualquer doença.
A tese nunca me convenceu. Procurei, como sempre procuro, uma segunda opinião. Falei com a minha tia Estefânia, mulher devota, e disse que só beijaria Jesus se o padre usasse crucifixos descartáveis e rigorosamente esterilizados. Pobre tia. Foi a primeira vez que vi alguém desmaiar à minha frente.
Mas a Páscoa não era apenas o compasso. A Páscoa começava na Quarta-Feira de Cinzas, depois do Carnaval. Todas as sextas eram dias de jejum. Não de jejum em sentido rigoroso. Apenas em sentido lato: nenhuma carne. Só peixe. E ovos?
Iniciava-se novo debate teológico na família. A tia Estefânia dizia que os ovos estavam rigorosamente excluídos. “A galinha nasce do ovo”, dizia ela, benzendo-se. “Galinha é carne, menino.” O meu avô, sempre ele, entrava em cena e disc ordava. “É precisamente o contrário: o ovo é que nasce da galinha”. O concílio durava algumas horas: quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha? Chegava-se a um consenso: eu poderia comer a clara, mas não a gema. Ou vice-versa, não sei bem.
E eu comia. Clara, gema. E, às vezes, por esquecimento, uma fatia de presunto ao lanche. Mastigava tudo. E quando me lembrava da transgressão, fazia-se um nó no estômago e eu corria em busca de absolvição. Na pessoa do meu avô, claro. Ele ouvia tudo e, quase sem disfarçar o riso, perguntava: “Mas esse presunto tinha sabor a peixe, certo?” Eu, de tão confuso, dizia que sim. Ele declarava-me absolvido e eu regressava, de cabeça limpa, às brincadeiras do pátio.
Que terminavam na Sexta-Feira Santa. Dia sério. Na rádio, música fúnebre de manhã à noite: a marcha de Chopin, o “Réquiem” de Mozart, as sete últimas palavras de Cristo, por Haydn. A televisão acompanhava o espírito e aparecia inundada com filmes bíblicos que eu via e revia com reverência cinéfila. Um “biopic” de Franco Zefirelli, “Jesus de Nazaré”, iniciava as hostilidades todos os anos. Seguiam-se “Os Dez Mandamentos” e o monumental “Ben-Hur”, com sua corrida de bigas. Charlton Heston, para mim, não era ator. Era santo.
E, às três da tarde, um minuto de silêncio. Na rádio. Na televisão. Em casa. No mundo. Tudo parava. Jesus morria na Cruz, dizia-se. O tempo do verbo era tudo: “morria”, não “morreu”. Era presente, não passado. Era notícia, não história. Naquele momento, no Gólgota revisitado, Jesus entregava-se, uma vez mais, nas mãos do Pai para remissão de todos os pecados. E quando eu levantava nova questão teológica (“Mas Jesus está sempre a morrer e a viver como os vampiros?”), nem o meu avô me salvava de um tapa.
A minha infância é um território distante. E os rostos desse passado são apenas memórias felizes. Memórias que serão rapidamente esquecidas na sucessão dos meus dias. Mas não já, não agora. Agora, domingo de Páscoa, há apenas saudade, essa palavra sem tradução exata que os portugueses inventaram para dar nome a uma tristeza sem nome.
Levanto-me da cama, abro a janela e saio para o balcão. Lisboa amanhece. Um dia cinzento e frio, com chuva pequena, quase de choro. Ao fundo da rua, vislumbro o compasso: quatro figuras indiferentemente vestidas, que passam por portas indiferentemente fechadas. Não há crentes no bairro. Só o sino é o mesmo: uma cadência de festa que anuncia a ressurreição de Cristo a homens que dormem.
Jorge,
Há uma clara referência à data em que se passam esses fatos: a revolução dos Cravos (25 de abril) que foi em 1974.
Infelizmente, os portugueses vem cada vez mais querendo ser “europeus”, e por isso não dão mais valor à religião.
Mas, caro Lampedusa, o texto não traz “pós-25 de abril”?
Deduzimos que a lembrança do Coutinho remonta a uma época após a revolução dos Cravos, porém ainda sem sabermos exatamente qual seria.
De todo modo, considerações cronológicas à parte, digo que também me deu uma tristeza ao ler esse texto. O Pedro foi muito, muito feliz em observar que essa mudança do povo português nada mais é do que uma aproximação com o secularismo que já toma boa parte dos países europeus.
Destaco, ainda, uma figura empregada por Coutinho: estes dias de descrença, de indiferença religiosa combinam direitinho com um dia cinzento e frio.
Eduardo,
Sim, você tem razão. A referência à Revolução dos Cravos (aliás, estive ontem com um amigo – professor do ITA – que fugiu de Portugal para o Brasil aos 14 anos de idade justamente por causa dessa revolução) apenas delimita a antiguidade do tempo a que se refere o artigo.
E quanto ao seu comentário do dia cinzento e frio, há, também, uma frase de outro português ilustre – Fernando Pessoa – que afirma (não me recordo a frase literal) que não há ninguem completamente triste em um dia ensolarado e nem ninguem completamente alegre em um dia cinzento :)
Ai, Jorge,
Quantas vezes me senti assim, eu que já caminho em direção ao meu quadragésimo-quinto aniversário, não só em relação às discussões teológico-familiares do jejum e da abstinência, mas também em relação à Missa do Galo, aos presépios, às musicas de Natal de cunho realmente religioso…
Chorei lendo este texto, porque percebi que minha infância é também território distante…
Beijo carinhoso a todos e em cada um. Que voltemos a dias melhores e as gerações que nos sucederem possam ter Páscoas e Natais mais santos.
Sue
João Pereira Coutinho é de 1976… Como tanta coisa pode ter mudado em tão pouco tempo?
E o Brasil também não fica atrás… Para se ter uma idéia, Sexta-Feira Santa na Bahia é um dos dias em que mais se come e mais de bebe… Tudo menos carne: caruru, vatapá, moqueca de peixe, feijão fradinho, farofa e muita, mas muita galinha! Fazer o quê? O povo não é catequizado e o clero não dá exemplo…
Tem lugares em que o pessoal coloca o som nas alturas e ainda dança de forma imoral um pagode desses bem ralé e de péssimo gosto…
Às vezes me dá uma vontade de fazer as malas e ir para as cidades históricas de Minas Gerais ou mesmo Monte Santo, aqui no interior da Bahia para se sentir imerso na sacralidade da Sexta Feira da Paixão…
Mas sei que a Providência Divina não desampara sua Igreja! Rezemos por Portugal e pelo Brasil!
Os tempos são maus. A fé anda claudicante, mas ainda existe a centelha e esta pode e deve ser inflamada de novo.
Cada um de nós pode contribuir para isto, comecemos ao nosso redor, tendo por princípio a oração constante e o exemplo.
Abraços