Cap. 37 – Do mal dos pecadores Deus extrai um bem
Por conseguinte, se todas as naturezas conservassem o modo, a espécie e a ordem que lhes são próprios, não haveria o mal; mas, se alguém quer abusar desses bens, nem por isso vencerá a vontade de Deus, o qual sabe como fazer entrar, de maneira justa, os pecadores na ordem universal, de sorte que, se eles pela perversidade da sua vontade abusarem dos bens da natureza, Ele, pela justiça do seu poder, extrairá bens dos males, ordenando retamente com penas os que se desordenaram pelos pecados.
Cap.38 – O fogo eterno, que atormenta os maus, não é um mal
E eis que nem sequer o próprio fogo eterno, que atormentará os réprobos, é em si uma natureza má, porque também tem o seu modo, a sua espécie e a sua ordem, e não foi corrompido por nenhuma iniqüidade. Mas o tormento é um mal para os condenados, que mereceram pelos seus pecados. A própria luz atormenta os que têm olhos enfermos, sem todavia ser uma natureza má.
Cap. 39 – Diz-se que o fogo é eterno não porque o seja como Deus, mas porque não tem fim.
O fogo é eterno, mas não do mesmo modo como o é Deus; pois, conquanto não acabe nunca, teve porém princípio, e Deus não o teve. Além do mais, a sua natureza está sujeita à mudança, apesar de ter sido destinado a servir de castigo perpétuo para os pecadores. A verdadeira eternidade é a verdadeira imortalidade, ou seja, a suprema imutabilidade, que é atributo exclusivo de Deus, o qual é absolutamente imutável.
Uma coisa é não mudar, apesar da possibilidade de mudança, e outra, muito diferente, é não poder mudar. Diz-se, assim, que um homem é bom, conquanto não como a bondade de Deus, de Quem se disse: “ninguém é bom senão Deus só” (Mc X, 18); e diz-se que a nossa alma é imortal, mas não como o é Deus, de Quem se disse: “é o único que possui a imortalidade” (1Tm VI, 16); e diz-se que o homem é sábio, mas não como o é Deus, de Quem se disse: “a Deus, que é só o sábio” (Rm XVI, 27) – e também se diz que o fogo do inferno é eterno, mas não como o é Deus, cuja imortalidade é a verdadeira eternidade.
Cap. 40 – Não se pode causar dano a Deus, nem a nenhuma criatura sem a justa ordenação de Deus
Assim sendo, a Fé Católica, e a Sã Doutrina, e a Verdade bem compreendida, proclamam que ninguém pode causar dano à natureza de Deus, e que a natureza de Deus não aflige mal injusto a ninguém, e que Ele não permite que nenhuma injustiça fique sem castigo. “Aquele, pois, que cometer injustiça”, diz o Apóstolo, “receberá segundo o que fez injustamente: e não há acepção de pessoas diante de Deus” (Col III, 25).
Santo Agostinho, “A Natureza do Bem”, pp. 49-53. 2ª Edição, Sétimo Selo, Rio de Janeiro, 2006
Uma punição infinita para uma violação finita é justa?
Mallmal,
A violação é infinita, e é exatamente por isso que o inferno é eterno ;).
A magnitude de uma agressão é proporcional ao ofendido. Assim, se (p.ex.) eu desse um murro em você, Mallmal, eu teria uma certa culpa por esta atitude. Se, ao invés de você, meu murro fosse dado em uma mulher, a culpa seria maior. Se, além de mulher, fosse uma velha, a culpa seria ainda maior. Se além de velha, fosse a minha mãe, a culpa seria maior ainda. A mesma agressão é mais ou menos grave, dependendo de a quem ela se dirige.
No pecado, o ofendido é Deus, que é infinito. Portanto a magnitude do pecado é infinita.
Aliás, isso está no cerne do Cristianismo, porque Nosso Senhor Jesus Cristo é Deus e Homem exatamente porque somente Ele, sendo Deus, poderia oferecer à Trindade Santa uma reparação infinita [porque só Deus é infinito] em favor dos homens. Esta é a mais extraordinária demonstração do amor de Deus, porque a Sua Justiça exige uma reparação infinita que os homens finitos não podem dar e, querendo que os homens sejam perdoados, Ele se faz homem para que possa Ele mesmo oferecer o que é necessário que os homens ofereçam, sem o poderem. Jesus une a necessidade humana à possibilidade divina.
Abraços,
Jorge
Caríssimo e estimado Jorge!!!
Excelente explicação!! Sucinta, simples, direta e muito… muita clara sua explanação sobre a Economia da Salvação da Sã Doutrina Católica.
Parabéns!!!
Abraços e até mais ‘ver’.
André Víctor
Adorei a explicação, Jorge!
Coincidentemente saiu hoje no jornal O Estado de SP um artigo assinado por Denis Lerrer Rosenfield (que eu julgava ser judeu), intitulado “Santo Agostinho e a liberdade” que versa sobre a teologia/antropologia de Santo Agostinho e a usa para analisar o fenômeno político moderno, principalmente o papel do Estado. Está ralmente muito bom e vale a leitura.
http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20090608/not_imp383942,0.php
Jorge, eu já conhecia a explicação, só fiz a pergunta para iniciar o tema.
Você afirma que a punição é proporcional ao ofendido. A punição não deveria ser baseada no ofensor também?
Usando as suas metáforas de espancamento:
Se eu sou “espancado” por uma criança de dois anos, no máximo ela deve ficar de castigo.
Se sou agredido por um adolescente, devem ser tomadas medidas correcionais.
Se sou agredido por um adulto saudável, este sim deve receber uma pena de detenção.
Além disso, se Deus é infinita misericórdia e bondade, como pode condenar sua criação imperfeita e finita a uma pena infinita? Esse problema do inferno eu não consigo assimilar. Eu acho de uma injustiça atroz!
Abraços!
Malmall,
Mas se a criatura não deseja o seu Criador… porque deveria, pois, o Criador obrigá-la a deseja-Lo?
Onde ficaria a liberdade?
o amor necessita de liberdade.
Também muito bem explicado caríssimo senhor R. B. Canônico!!!
Apesar de parecer bastante óbvio para os fieis Católicos, não é impressionante existir pessoas que não conseguem compreender a relação entre a liberdade do ser humano com a justiça Divina?? (Sic!)
Parabéns senhor R. B. Canônico!
Abraços e até mais ‘ver’.
André Víctor
Mallmal,
Exatamente, a punição é baseada no ofensor também [e, aliás, também na ofensa]. É por isso que uma criança que não tenha atingido a idade da razão não peca, uma que já o tenha peca menos que um adulto, que por sua vez peca menos que um sacerdote, que peca por sua vez menos que um anjo. É por isso que existem “gradações” nas penas do Inferno.
E a condenação da “criação imperfeita e finita a uma pena infinita” é exigida pela liberdade humana. E, se não houvesse liberdade, não poderia haver pena mas também não poderia haver mérito. Deus faz de tudo para salvar a sua criação imperfeita e finita, Mallmal, não tenha dúvidas disso. Deus chegou ao cúmulo de fazer-Se homem, imperfeito e finito, padecer e morrer para salvar a Sua criação. A única coisa que Ele não faz é destruir a liberdade humana, porque essa destruição acabaria também com a possibilidade de mérito e, portanto, não haveria condenação mas também não haveria glorificação.
Abraços,
Jorge
Tinha esquecido desse post, sinto muito pela demora da resposta!
“mas também não poderia haver mérito.”
Que mérito há em coadunar com o ser que o criou?
Há mérito em ser um cachorro leal, que apesar de espancado, lambe a mão que o alimenta?
“Deus faz de tudo para salvar a sua criação imperfeita e finita”
Ele não é totipotente? Por que motivo não aparece e se revela ao invés de mandar recados? Além disso, esperar milhares de anos pra mandar o seu diplomata (numa época em que não havia condições para as adequadas constatações e contestações de seus alegados miracolos) não me parece “fazer tudo”…
Mallmal,
Para quem não QUER entender, nenhuma explicação resolve. Você colocou a sua vontade acima da sua razão. Não é que você não acredite em Deus. Você não quer que Deus exista e pronto. E você é capaz de tudo para defender esse fanatismo. Ái de você que chama o doce de amargo e o amargo de doce…
Definitivamente, Mallmal, você é do MAL.
Carlos.
Mallmal,
Há mérito, sim, em voltarmo-nos para Deus exatamente porque não somos cachorros e temos a possibilidade de O rejeitar. E, se escolhemos livremente amá-Lo e servi-Lo, isso é meritório.
Deus apareceu e Se revelou. Uma pessoa que não acredita no Cristianismo não acreditaria em absolutamente mais nada, por mais que fosse feito. Leia o décimo sexto capítulo do Evangelho de São Lucas, dos versículos vinte e sete ao trinta e um inclusive.
Abraços,
Jorge
Tá bom, entendo seu ponto de vista.
Ainda assim, como um índio de uma aldeia isolada poderia exercer esse mérito? Ou uma pessoa que nascesse em um país islâmico radical ou com ateísmo institucional?
Jorge, há pessoas que são cristãs e depois mudam de religião. Talvez a revelação do seu Deus tenha sido suficiente para você e para a maior parte dos frequentadores do seu blog, mas certamente não o foi para 99% da população mundial, que pratica outras religiões (ou nenhuma) ou mantém-se num catolicismo de fachada.
Abraço!
De que livro foi tirado essas frases?
Gustavo, a referência está ao final do próprio texto:
Santo Agostinho,
“A Natureza do Bem”, pp. 49-53.
2ª Edição, Sétimo Selo,
Rio de Janeiro, 2006