Existem alguns escritores geniais. Tolkien é um deles. Após ter lido (tardiamente, reconheço) os três volumes d’O Senhor dos Anéis, estou terminando O Silmarillion agora. Especificamente, acabei de ler ainda há pouco Akallabêth, que trata sobre a queda de Númenor; para quem ainda quiser ler o conto – na edição da Martins Fontes, tem apenas 35 páginas -, aviso desde já que ESTE TEXTO CONTÉM SPOILERS.
Númenor é o nome do reino próspero dos homens, entre a Terra Média e o Reino Abençoado. Lá, eles eram amigos dos Valar, espécie de semi-deuses que eram senhores do mundo e serviam a Ilúvatar, o Deus Criador e Providente, a Quem também adoravam os númenorianos. Havia em Númenor um templo erigido a Ilúvatar, onde os homens sempre Lhe ofereciam “os primeiros frutos”. E viviam em paz e harmonia.
Com o tempo, porém, os homens começaram a sentir inveja de imortalidade de Valinor, o Reino Abençoado, onde viviam, sem conhecer a morte, os Valar e os elfos. E os homens começaram a murmurar entre si, acusando os Valar de negarem aos homens a dádiva de serem imortais. E romperam as suas boas relações com os Valar. Quando isso aconteceu, Sauron (sim, o mesmo d’O Senhor dos Anéis), inimigo dos Valar, instigou os homens a se mostrarem cada vez mais auto-suficientes e a se apresentarem cada vez mais hostis aos Valar. E, seguindo os conselhos malignos de Sauron, os homens foram se afastando cada vez mais dos Valar e, por conseguinte, degradando-se cada vez mais.
Duas coisas são bem interessantes nesta narrativa. A primeira delas é que os númenorianos, seguindo os maus conselhos de Sauron, abandonaram o culto a Ilúvatar e passaram a adorar o “Senhor do Escuro”, Melkor, que no princípio havia sido um Vala mas, depois, decaíra e, devido às suas maldades, havia sido expulso da terra e trancado no Vazio que fica além do mundo.
Os homens de Númenor abandonaram o culto a Ilúvatar para adorar a Melkor! Somente o fato deste assunto ser já conhecido e re-conhecido por todos nós impede-nos, à primeira vista, de dizer que a metáfora é genial; no entanto, é exatamente nesta insistência, nesta repetição, que consiste a sua genialidade: não importa onde nem quando, se nos judeus de Jerusalém à época do Rei Salomão, se em Númenor das fantasias de Tolkien ou se na vida particular de cada um de nós, os homens sempre fazem besteira. Sempre dão ouvidos a conselhos que não prestam. Sempre abandonam o Deus Verdadeiro para servir a Satanás.
A história de Númenor é, na verdade, uma paráfrase da história da humanidade e da história de cada um de nós, com um toque bastante interessante: não existem desculpas para os homens daqui, deste mundo, abandonarem a Deus. Porque não importa o quão diferente seja o mundo, mesmo que haja elfos e orcs, mesmo que os homens tenham vida longa e próspera, mesmo que eles falem face a face com os emissários dos Valar e contemplem, do litoral, as fronteiras do Reino Abençoado, mesmo assim, eles erram e se desviam do caminho. Adorar ao “senhor do Escuro” não é apanágio dos homens que vivem no claro-escuro no qual nós próprios vivemos – mesmo que vivêssemos em Númenor, não estaríamos imunes a esta tentação.
E a segunda coisa interessante na Akallabêth é sobre o progresso de Númenor após os homens terem abandonado os Valar: “Não obstante, por muito tempo pareceu aos númenorianos que eles prosperavam: e, se sua felicidade não era maior, eles ainda assim estavam mais fortes; e seus ricos, cada vez mais ricos. Pois, com o auxílio e os conselhos de Sauron, multiplicavam seus bens, inventavam engenhos e construíam naus cada vez maiores” [Tolkien, J. R. R., “O Silmarillion”, p. 349; Ed. Martins Fontes, 4ª Edição, São Paulo, 2009].
Prosperavam sem, no entanto, serem mais felizes: quem poderia ler um trecho desses sem pensar imediatamente no homem moderno que, enamorado cada vez mais do progresso e da técnica, e esquecido de Deus, consegue avanços cada vez maiores que, no entanto, não servem para lhe dar sentido à vida? Repito o que disse no início: há autores que são geniais, como Tolkien. Impressiona-me a maneira como ele consegue reescrever a história do mundo por meio de uma mitologia que a torna mais palatável, e na qual certos aspectos que ele deseja destacar aparecem com clareza. A Queda de Númenor faz as vezes de uma excelente parábola para os nossos tempos modernos, que bem poderíamos entender para que errássemos menos: na Akallabêth, Tolkien nos ensina que os homens erram ao se afastar de Deus, e nos ensina também que prosperidade nem sempre é sinônimo de felicidade.
Jorge…
Me surpreendi a ver um texto aqui em seu blog sobre Tolkien. Creio que todo católico deveria conhecer a obra do Professor e, sobretudo, a biografia do mesmo (Católico Apostólico Romano).
Confesso que sou fã do professor Tolkien e já devorei suas obras (relí SDA, Silma, CI e as Cartas de Tolkien nem sei quantas vezes (é uma obra que é sempre atual)… tenho os filmes SDA (embora P. Jackson tenha feito concessões (cinematográficas) e modificações que tiram o foco da obra).
SDA, bem como as outras obras de Tolkien, são catequese católica na literatura, embora haja uma base (também) mitológica (nórdica) que não macúla a intenção do autor (que sempre afirmou ser avesso à apologia).
SDA é a obra literária mais vendida no mundo depois da Bíblia!
Em Jesus e Maria!
Valdir A. C.
Engraçado que tem ateu que ama Senhor dos Anéis, porque é “ficção”, porque tem “efeitos especiais”, mas ataca até a última pedra possível no cristianismo.
P.S: já passou da hora de ler as obras de Tolkien.
Apenas para contribuir!
Gandalf diante do Balrog (demônio de fogo) na Ponte de khazad-dûm:
“Você não pode passar…
Sou um servidor do Fogo Secreto…
portador da Chama de Anor…
o Fogo Negro não será bom para você…
Chama de Udûn!
Você não pode passar!”
– Fogo Secreto = Espírito Santo;
– Chama de Anor (sol) = o Sopro do Espírito (Ato Criador)(preciso confirmar!);
– Fogo Negro = poder do inferno;
= Chama de Udûn = o fogo do inferno.
Em Jesus e Maria!
Jorge,
Eu sempre leio o seu blog, e gosto muito.
Como sou fanzaço de Tolkien, não podia deixar de comentar esse post, e indicar um texto muito bom do Professor, o texto “Athrabeth Finrod ah Andreth”, publicado na série The History of Middle-earth, inédita no Brasil.
O texto é escrito como um diágolo entre o elfo Finrod Felagund e a mulher-sábia Andreth. Ele trata sobre a mortalidade humana. Os comentários do autor são muito pertinentes. O interessante de ler textos de Tolkien desse tipo é que ele imaginava a Terra-média como um passado distante da Terra, então tudo o que ele fala sobre os homens da Terra-média revela sua visão sobre os homens “reais”.
Se você estiver interressado, pode encontrar o texto traduzido aqui:
http://www.valinor.com.br/artigos/textos-de-tolkien/athrabeth-finrod-ah-andreth/
Comentários de Tolkien sobre o texto:
http://www.valinor.com.br/artigos/textos-de-tolkien/comentario-sobre-o-athrabeth-finrod-ah-andreth/
Mas o texto mais interessante, na minha opinião, dos que acompanham o Athrabeth é este, “O Conto de Adanel”, que conta a queda dos homens:
http://www.valinor.com.br/artigos/textos-de-tolkien/comentario-sobre-o-athrabeth-finrod-ah-andreth/
São ótimos textos para quem está interressado na Terra-média ou simplesmente pra quem quer conhecer a visão de um autor genial.
Célio:
Vc também é membro da Valinor???
Quanto ao Athrabeth é um dos meus textos favoritos e cheguei (a tempos atrás) a ter muita discussão sobre ele em um grupo de tolkiendili!
Nesse texto se alude a uma profecia a respeito da incarnação de Erú-Ilúvatar (Aquele que É) como homem para redimí-los!
Deixei de participar de foruns de discussão, grupos e listas sobre Tolkien pq a avassaladora maioria dos membros eram por demais superficiais e, me parece, temiam se aprofundar nos significados das obras do professor… sem falar, é claro, do medo das raízea católicas e a fé do autor (esse sim um assunto proibido em muitas listas e foruns… não sei como está agora!?)!
Voltando ao post, sobre Númenor vale lembrar que Aragorn ( O último dos grandes reis)e também Arwen eram descendentes diretos e ininterrúptos de uma linhagem de homens (Beör, Úrim e Úor) e elfos (os Senhores Élficos – Moriquendi e Kalaquendi) desde os patriarcas dessas raças… ou seja; uma bela imagem da sucessão apostólica!
Em Jesus e Maria!
digo: encarnação!
Jorge!
Só um pequeno adendo sobre o Akallabêth:
Os Valar não eram semi-deuses, mas poderes! Visto que eram filhos de Erú e o poder que tinham não lhes pertenciam, pois lhes foram atribuídos por Erú (o Único – “Não há outro senão Erú-Ilúvatar”).
Um deus, ou semi-deus, não pode perder poder, pois o poder está na sua própria essência.
Em Jesus e Maria!
Valdir, participo da Valinor sim.
O problema do significado das obras de Tolkien é que as pessoas geralmente veem como alegoria, o que não é.
É a adaptação das crenças dele para o seu “mundo secundário”, como ele mesmo chamava.
Não lembro qual foi a atenção que dei a esse post quando ele fora publicado, se é que eu já acompanhava o blog. Mas, num dia desses, uma segunda postagem envolvendo o Tolkien chamou minha atenção. E fiquei lembrando dele.
Hoje, eu achei e assisti o programa “Confronto do Deuses — Tolkien”, na seção de vídeos do seuhistory.com; mais precisamente aqui. Eu estava catando algo interessante naquela coleção de vídeos. O programa provavelmente tem suas falhas, e pode até ter muitas ou algumas bem relevantes, não sei, mas me utilizei dele hoje e fiquei de vontade de compartilhar isso aqui.
nice post! \õ/