Alguns questionamentos surgiram aqui nos últimos dias, sobre a Doutrina Moral da Igreja, especificamente sobre qual seria a posição d’Ela caso a menina de Alagoinha corresse efetivamente risco de vida. Expondo de outra forma: é lícito o aborto se este for o único meio de salvar a vida da gestante?
A resposta é não, porque o aborto é a morte direta de um inocente, e não é lícito matar um inocente nem mesmo para salvar outra vida. Este é o entendimento de S.S. João Paulo II na Evangelium Vitae [grifos meus]:
É verdade que, muitas vezes, a opção de abortar reveste para a mãe um carácter dramático e doloroso: a decisão de se desfazer do fruto concebido não é tomada por razões puramente egoístas ou de comodidade, mas porque se quereriam salvaguardar alguns bens importantes como a própria saúde ou um nível de vida digno para os outros membros da família. Às vezes, temem-se para o nascituro condições de existência tais que levam a pensar que seria melhor para ele não nascer. Mas estas e outras razões semelhantes, por mais graves e dramáticas que sejam, nunca podem justificar a supressão deliberada de um ser humano inocente. [Evangelium Vitae, 58]
Este é o entendimento da Congregação para a Doutrina da Fé na Declaração sobre o aborto provocado [grifos meus]:
Não ignoramos estas grandes dificuldades: pode tratar-se de um grave problema de saúde, ou por vezes mesmo de vida ou de morte, para a mãe; pode ser o encargo que representa mais um filho, sobretudo quando existem boas razões para temer que ele virá a ser anormal ou gravemente defeituoso; pode ser, ainda, o peso de que se revestem, em diversos meios, as considerações de honra e de desonra, de baixar de nível social, etc. Mas deve-se afirmar de modo absoluto que jamais alguma destas razões poderá vir a conferir objectivamente o direito de dispor da vida de outrem, mesmo que esta esteja a começar; e, pelo que diz respeito à infelicidade futura da criança, ninguém, nem mesmo o pai ou a mãe, se podem substituir a ela, embora se encontre ainda no estado de embrião, para escolher, em seu nome, a morte de preferência à vida. Ela própria, na sua idade amadurecida, jamais virá a ter o direito de optar pelo suicídio; e enquanto não está ainda na idade de decidir por si própria menos ainda os seus próprios pais podem escolher para ela a morte. A vida é um bem demasiado fundamental, para poder ser posto assim em confronto com inconvenientes mesmo muito graves [Congregação para a Doutrina da Fé, Declaratio de abortu procurato, 14].
Este é o entendimento também de Del Greco, no seu reconhecido Compêndio de Teologia Moral [grifos meus]:
O abôrto pode ser a) terapêutico, se, por indicação médica, é provocado para salvar a vida da mãe; b) eugenético, se é provocado para impedir o nascimento de pessoas afetadas com doenças hereditárias; c) criminoso, se é provocado com fim perverso.
[…]
1. O aborto voluntário, diretamente provocado, é sempre gravemente ilícito
De fato, equivale ao assassínio direto do inocente, tomado como fim da ação.
[…]
É condenado, por conseguinte, não só o abôrto criminoso, como qualquer outro abôrto diretamente provocado.
[Del Greco, Compêndio de Teologia Moral, pág. 233]
Esta é a conclusão, enfim, dos princípios morais mais basilares, segundo os quais – ao contrário do que disse Maquiavel – os fins não justificam nunca os meios, sob nenhuma hipótese, e não é lícito praticar um ato mau nem mesmo para que, dele, provenha um resultado bom. Na sentença lapidar do Catecismo da Igreja Católica: “Não é permitido fazer o mal para que dele resulte um bem” (CIC 1756).
Uma outra coisa é o que se chama de causa com duplo efeito, em relação à qual recomendo enfaticamente a leitura deste texto do pe. Lodi que eu já citei aqui diversas outras vezes. A pergunta sobre a qual estamos tratando aqui, e cuja resposta é negativa, refere-se à licitude do aborto como meio para salvar a vida da gestante, e não como um segundo efeito de um ato bom. A leitura do texto acima mencionado é excelente para um correto entendimento dos conceitos aqui utilizados.
Sobre este último assunto, diz ainda Del Greco (op. cit., p. 234):
[O abôrto indireto] é somente permitido quando não há nenhuma conexão entre a gravidez e a doença da mãe, de modo que a mesma intervenção teria lugar mesmo se a mulher não estivesse grávida.
E exemplifica (id. ibid.):
De acôrdo com o parecer de muitos moralistas (Genicot-Salsmans, Vermeersch e outros) é lícito tirar o útero grávido canceroso de uma mulher, porque isso não constitui intervenção direta ao abôrto; ao contrário, é considerado abôrto direto expelir da trompa o feto ectópico.
Consideramos que isto resolve a questão.
Valeu, Jorge! Oportunamente oportuno esse post.
Jorge, cadê você, com esse post acabaram-se as dúvidas.
A paz de Cristo e o amor de Maria.
Continuo em casa recuperando da hérnia de disco, sem poder ficar muito tempo sentado. Obrigado.
Jorge,
Sobre estas questões morais tenho uma dúvida. É permitido mentir em casos em que o bem que resulte da pequena mentirinha seja muito superior do que quando falamos a verdade ?
Vou citar um exemplo clássico. Tenho na minha mente aquela cena final da “Noviça Rebelde” em que as irmãs de um convento na divisa da Austria com outro país (talvez Suíça?) dão guarita a Noviça e a sua nova família. Ao serem abordadas pelos Nazistas, as irmãs dizem que não viram a família von Trapp (ou então que foram em outra direção, também não me lembro direito). Ora, a mentirinha da irmã salvou a vida de uma família inteira, enquanto que se ela falasse a verdade teria condenados todos no mínimo a uma severa prisão.
Essa ação das irmãs é justificável ou não ? Por favor me auxilie.
Em Cristo,
Luciano
Muito bom o post, Jorge! Sempre a favor da vida e nunca pela morte dos inocentes!! Não se pode escolher a morte nunca.
Sou enfermeiro e sei que remover o útero canceroso é obviamente independente da gravidez, logo aplica-se o princípio do duplo efeito. Mas li que “ao contrário, é considerado abôrto direto expelir da trompa o feto ectópico.”
Numa gravidez ectópica, o nascituro desenvolve-se em outro local que não o útero (trompas – maioritariamente, ovário, etc…). A trompa não têm as características do útero para a nidação e desenvolvimento do bebé. Ao não se corrigir, além do bebé morrer, a mãe corre sériíssimos riscos de morrer por hemorragia quando houver a ruptura da trompa.
Na maior parte dos casos, ocorre aborto espontâneo.
Mas, se se desenvolver o bebé, a parede fina da trompa irá alargar provocando dores na região baixa do abdómen. Também poderá ocorrer sangramento vaginal nesta altura. Conforme a gravidez se desenvolve, a trompa pode romper-se, causando sangramento abdominal severo, dores e colapso.
Se a hemorragia for rápida, pode provocar uma baixa grave da tensão arterial e, inclusivamente, um choque hipovolémico que poderá resultar a morte. Tipicamente, por volta das 6 a 8 semanas, sente-se uma dor aguda e intensa na parte inferior do abdómen, seguida de um desmaio. Estes sintomas, habitualmente, indicam que a trompa se rompeu e, em consequência, que se produziu uma hemorragia intensa dentro do abdómen.
Geralmente entre a 12.ª e a 16.ª semanas de gravidez, esta rotura pode ser catastrófica, com uma maior taxa de mortalidade da mãe associada. O bebé, além dos sérios riscos para a mãe, a ter sobrevivido após a extracção, normalmente morre ao fim de poucas horas.
Pergunto se, será legítimo fazer passar a mãe por tão sérios riscos. Sempre pensei que, na gravidez ectópica, não se punha problemas éticos/morais na estracção do bebé. Mas Pensando bem, agora fiquei na dúvida… Por um lado, é uma vida que mata, com a extracção. Por outro é a grande chance de hemorragia e sérias complicações, até morte para a mãe, mas por outro, como enfermeiro isso parece-me tão severo para a mulher, que também isso devia ser evitado.
Pedia esclarecimento, para que não possa nunca agir ao serviço da morte, na minha vida e na minha profissão.
Um abraço de Portugal, Terra da Mãe do Autor da Vida!
“ao contrário, é considerado abôrto direto expelir da trompa o feto ectópico.”
Não acredito que li isso. Nenhuma gestação ectópica é viável e todas levam a risco de vida materno. Sem comentários…
Depois de alguma pesquisa, descobri um excerto que encontrei num artigo de um documento da FSSPX, sobre a moral católica nos procedimentos de saúde:
“It is never permitted to directly kill an infant (or any other person for that matter, with the exception of self defense, just war and capital punishment), and so consequently, it is immoral to perform an abortion in the case of an ectopic pregnancy, even to save the life of the mother. Since there are opinions on both sides of this question, both can be safely followed in conscience. Consequently, it is permissible to have surgery, provided that it is not a direct abortion, but the removal of invasive tissue, but it is never permissible to take medications to kill the live fetus.”
http://sspx.org/Catholic_FAQs/catholic_faqs__morality.htm#ectopicpregnancy
O que me parece, do que li, é que:
O que se remove, como num utero grávido e canceroso, é o tecido, que, neste caso leva consigo o feto. Não ocorre morte deliberada do bebé directamente, mas provocar aborto por medicamento (que é o metrotexato, em alternativa à cirurgia, em que o embrião morre, parando de crescer, evitando a ruptura das trompas, sendo expulso, tempos depois) não pode ser considerada aceite, porque actua directamente na criança, causando-lhe a morte directamente o que é um homicídio.
Agradeço os esclarecimentos e, caso disso, correcção.
Um abraço!
Falando nisso, ao entrar no site Pró-Vida Anápolis, aparece um banner com o texto:
“Parte do conteúdo deste sítio foi retirada do ar por intimação judicial recebida por correio no dia 20 de outubro de 2003.
DECISÃO INTERLOCUTÓRIA: …Isto posto, julgo ocorrentes os pressupostos legais necessários à concessão dos efeitos da tutela pretendida, para determinar aos Réus, que no prazo máximo de 24 horas, retirem de seu sítio na Internet http://www.providaanapolis.org.br todas e quaisquer referências à pessoa do Autor (inclusos textos, nomes, fotografias, “links” etc), sob pena de responsabilidade solidária pelo pagamento de multa diária de R$ 1.000,00 (um mil reais), além de incorrer o Primeiro Réu em crime de desobediência à ordem judicial (Art. 359, do CP)… ”
Os abortistas não brincam em serviço, já que conseguem até censurar um site. São uns fascistas.
E se retirar a trompa com o feto ectópico não seria o mesmo que retirar o útero grávido canceroso de uma mulher?, o que você tem a dizer sobre isto Jorge?.
Caríssimos,
A posição apresentada no post, sobre a gravidez ectópica, é de Del Greco. Pelo que eu entendi do site da FSSPX que o João trouxe, há divergência entre os teólogos morais sobre a questão, havendo alguns (embora o artigo não cite) que julgam lícita uma intervenção cirúrgica. Em resumo, se há gravidez ectópica,
a) se o feto está morto, é sempre lícito removê-lo cirurgicamente;
b) se o feto está vivo, nunca é lícito tomar medicamentos para provocar o aborto;
c) se o feto está vivo, discute-se se é lícito removê-lo cirurgicamente.
O único ponto em litígio é o ‘c’. Os argumentos são:
1) para a ilicitude, porque esta remoção mata diretamente o feto, o que não é lícito;
2) para a licitude, porque o que se está removendo é uma “massa de tecido” (a mass of tissue) que está no lugar errado, massa esta que contém a placenta e o feto, mas cuja remoção é justificável pelo mesmo motivo que é lícito a retirada de um útero canceroso.
Eu me inclino mais pela opção 1). Não sei a viabilidade técnica disso, mas julgo não haver problemas morais ou na correção da gravidez ectópica [no “transplante” do feto da trompa para o útero, a fim da gravidez poder continuar] ou em uma “cesária” seguida de transferência do feto para uma incubadora, mesmo que ele não sobrevivesse ao processo.
Mas, sinceramente, é um caso interessante – acho que vale uma consulta à Pro Doctrina Fidei… :)
Abraços,
Jorge
Luciano,
Não, não é lícito mentir nunca, mas é lícito fazer o que se convencionou chamar, em Teologia Moral, de “restrições mentais”. Grossíssimo modo, trata-se de dizer a coisa de maneira encoberta, vaga, de modo a não revelar uma verdade que o interlocutor exige saber sem ter direito.
Dom Estêvão tem uma matéria bem didática em uma das edições da Pergunta e Responderemos, mas não consigo lembrar agora qual é….
Abraços,
Jorge
Jorge,
Partindo do princípio de que seja ilícito o item c, qual seria a melhor conduta nesse caso na sua opinião?
Abraços,
Rodrigo
Sobre os casos de gravidez tubária e câncer de útero, sinceramente, eu não sei nem o que comentar. São duas situações muito difíceis.
Eu lembro de um caso em que os bebês expulsaram do útero parte do tumor cancerígeno da mãe. E ela levou a gestação adiante sem se submeter à quimio, sendo operada 4 semanas após o parto.
http://www.obrasileirinho.com.br/2008/02/milagre-da-vida-fetos-chutam-tumor-html.html
Esse caso aqui não é bem de gravidez tubária, mas o bebê se desenvolveu entre o útero e o estômago. Detalhe: a mãe tinha mais de 40 anos.
http://www.overbo.com.br/portal/2008/07/08/7606/
Achei esse caso aqui de gravidez ectópica: http://www.celgmed.com.br/noticias.asp?pub=197
No mais, fica aqui um aviso importante: Mulheres que usam Dispositivo Intra Uterino e contraceptivos de progesterona têm muito mais chances de apresentar uma gravidez tubária. E ainda não entendem por que a Igreja é contra os anticoncepcionais…
Pessoas atingidas (retirado do site http://www.conhecersaude.com/adultos/3095-gravidez-ectopica.html )
Há maior probabilidade de sofrer gravidez ectópica se:
– Tem dispositivo intra-uterino (DIU) porque é uma porta de entrada para infecções,
– Tem doenças inflamatórias, por exemplo infecção nas trompas,
– A pílula que está a usar é de progesterona porque diminui a mobilidade dos tecidos das trompas,
– Fez cirurgias na parte inferior do abdómen porque pode provocar aderências nos tecidos.
Rodrigo,
No meu entender, a conduta que seria inquestionavelmente lícita seria uma intervenção cirúrgica que intentasse “transferir” o embrião ou para o útero, ou (dependendo do estado de desenvolvimento) para uma incubadora.
Abraços,
Jorge
E jorge: no caso de um dia a ciência já estar desenvolvida a esse ponto, o que acharias se o embrião fosse transferido para um outro útero previamente preparado para recebê-lo (no caso do útero da mãe biológica não poder acomodá-lo)? Uma espécie de “barriga de aluguel”? Será que a Igreja consideraria isso lícito?
Perdão, é Jorge com maiúsculo… eheheh
Alien, isso me parece uma grande faca de dois gumes.
No caso de um “útero artificial” para salvar crianças (como no caso em questão, de uma gravidez ectópica), imagino que seja perfeitamente lícito, porque é a mesma coisa, em essência, de uma incubadora. A diferença é meramente de grau.
No entanto, se o tal “útero artificial” for utilizado para fazer todo o processo de desenvolvimento embrionário fora do corpo da mãe, ou por motivo fútil (porque a mulher “não quer engordar”) ou – pior ainda! – para fins de reprodução artificial, então é um grande mal que não seria lícito de forma alguma.
Abraços,
Jorge
Off topic
Jorge,
No caso que citei, não há espaços para respostas vagas, etc.
Ou se conta a verdade e os nazistas prendem ou matam a família von Trapp;
Ou se conta a mentirinha e se salva muitas vidas;
ou se cala e é preso, torturado, etc.
Não consigo ver outras alternativas.
O fato dos soldados não terem o direito de saber a verdade não daria a condição necessária para se contar a mentira ? Que nesse caso talvez deixasse de se classificar como mentira porque falta um destinatário legítimo ?
obs: Já ouviu falar em membros proeminentes da Igreja que teriam falsificado passaportes (ou mandado/autorizado falsificar) para salvar judeus na época de perseguição nazista ?
Paz.
Luciano
Sim, se é lícito matar em legítima defesa (as freirinhas poderiam ter montado um bunker e ter metraalhado todos os soldados nazistas, seria guerra justa) é lícito mentir em legítima defesa.
É até lícito o “ele não está” em relação a alguém que não queira atender uma ligação.
http://julio-lemos.blogspot.com/2007/08/means-major-koinage.html – leiam o último trecho.
Luciano disse:
“O fato dos soldados não terem o direito de saber a verdade não daria a condição necessária para se contar a mentira”
IT’S A BINGO! (hehehehe)
Eu acho que as adoráveis freiras fizeram muito bem em mentir para soldados assassinos e cruéis e com essa santa mentirinha,´salvaram muita gente, até crianças e olha que deu um dos melhores filmes que já vi, eu achei maravilhoso. viva as freiras e os Von Trapp e claro a Julie Andrews.
Que a Paz esteja com vocês!
Jorge,
Na pergunta “é lícito o aborto se este for o único meio de salvar a vida da gestante?”, a resposta dada foi não, porque o aborto é a morte direta de um inocente, e não é lícito matar um inocente nem mesmo para salvar outra vida.
Contudo, verifica-se na formulação da pergunta, de princípio, um vício de origem porque uma vez que o termo aborto utilizado é admitido, de princípio, como um ato doloso, por óbvio, a resposta não poderia ser diferente de não.
Isto posto, farei a substituição do termo “aborto” pela expressão “interrupção da gestação”, pois, com isso, passa a não conter, em si mesma, o dolo; outrossim, proponho a seguinte questão:
Suponhamos que só exista um único casal no mundo, o qual não possui filhos, contudo, a mulher encontra-se gestante, na 12ª semana; entretanto, involuntariamente e alheio à sua vontade e à de seu médico, surgem complicações que a coloca sob risco iminente de morte, constituindo-se a interrupção da gestação como único meio de salvaguardar a sua vida.
E, aí pergunto:
“É lícito a interrupção da gestação se este for o único meio de salvar a vida da gestante?”
Abraços,
Euripedes Costa.
Eurípedes,
Não.
“Interromper a gravidez” e “abortar” é a exacta mesma coisa.
No exemplo que tu deste no outro post (este), seria o caso de fazer uma cesariana. Isso seria pra salvar o bebê.
Como é que tu queres chamar pelo mesmo nome (“interrupção da gravidez”) dois procedimentos feitos em mulheres grávidas, um dos quais é para salvar a vida do bebê e, o outro, para matá-lo?
Percebe o que estás fazendo para tentar justificar o injustificável? Querendo dar o mesmo nome a coisas opostas?
No teu exemplo, se a “interrupção da gravidez” for uma cesariana para salvar o bebê, sim, é lícito. Se for uma solução salina para matar o bebê, não, não é lícito.
Abraços,
Jorge
LG [e Luciano],
A mentira é intrinsecamente má, é, “por sua natureza, condenável” (CIC 2485). Logo, ela não pode ser usada como meio para obtenção de um fim bom.
O que o Catecismo diz sobre casos do tipo que estamos discutindo é o seguinte:
“O bem e a segurança de outrem, o respeito pela vida privada e pelo bem comum, são razões suficientes para calar o que não deve ser conhecido ou para usar uma linguagem discreta. Muitas vezes, o dever de evitar o escândalo impõe uma estrita discrição. Ninguém é obrigado a revelar a verdade a quem não tem o direito de a conhecer” [CIC 2489].
“Calar” e/ou “usar uma linguagem discreta”. Mentir, não. A Teologia Moral chama isso de “restrição mental”. Del Greco expõe assim [op. cit.]:
E dá uns exemplos que, sinceramente, na minha opinião e d.m.v., bem poderiam ser discutidos:
Há alguns moralistas que equiparam a restrição mental à mentira mesmo, sempre. E, para resolverem as situações-limites, dizem que é lícito mentir quando há graves razões. Se alguém tiver Orkut, houve há algum tempo um debate sobre o assunto na comunidade “Apologética Católica”:
http://www.orkut.com.br/Main#CommMsgs?cmm=12901339&tid=5326751434163390760
Abraços,
Jorge
Ah, Luciano,
Eu não lembro exactamente da cena final da Noviça Rebelde, mas pode ser que se trate de um caso de restrição mental que, dadas as circunstâncias, seria perfeitamente justificável.
Aliás, se eu estivesse numa situação como essas, não teria dúvidas de mandar os fugitivos correrem para o lado contrário nem que fossem por dez metros e, depois, darem meia-volta e seguirem o caminho da fuga verdadeiro, só para poder encher o peito e dizer, com toda a tranqüilidade e até sob um detector de mentiras, “eles correram por ali” (apontando para o lado contrário) quando os perseguidores viessem perguntar, coisa que é perfeitamente verdadeira, sem dizer o “eles deram meia volta depois de dez metros”.
Sobre os documentos falsificados, eu acho perfeitamente lícito. É simplesmente um pedaço de papel.
Abraços,
Jorge
Jorge,
“Como é que tu queres chamar pelo mesmo nome (“interrupção da gravidez”) dois procedimentos feitos em mulheres grávidas, um dos quais é para salvar a vida do bebê e, o outro, para matá-lo?”
O problema está na inferência que fazes. Veja, o primeiro se salvaria, porque o médico provocaria a interrupção da gestação, em tempo, e com isso, salvaguardaria a vida do bebê, pois já gozava de aptidão para se subsistir; enquanto que noutro, a eventual morte seria decorrente da inaptidão do bebê para subsistir e da impossibilidade do médico de agir face à indisponibilidade de meios para que pudesse igualmente salvaguardar a vida do bebê.
Portanto, como considerar haver o médico atuado com dolo se sua inação é decorrente da ausência de meios para para salvá-lo?
Ante o exposto e a persistir o seu entendimento, a humanidade deixará de existir por você enxergar dolo onde não há! Triste fim para a humanidade! :)
Abraços,
Euripedes Costa.
Eurípedes,
No primeiro caso, o bebê se salvaria porque a intervenção cirúrgica seria feita de maneira tal que preserva a integridade da sua vida. Isso se chama “cesariana”.
No segundo caso, o bebê morreria porque a intervenção cirúrgica seria feita de maneira a esquartejar o bebê e fazer posterior curetagem. O nome disso é “aborto” (tecnicamente, “abortamento”).
Como o teu exemplo é perfeitamente absurdo (primeiro por não ser nada verossímil que um dia a humanidade se reduza a um casal e um médico com um hospital bem equipado a ponto de fazer um “aborto seguro”, e segundo porque não existe, medicamente, a situação na qual matar a criança é “a única forma” de salvar a vida da mãe), não existe nenhum problema nesta extinção da humanidade.
Mas vamos repetir tudo de novo:
a) se, neste casal do teu exemplo, a mulher têm um útero canceroso, é lícito fazer a histerectomia, porque se configura uma causa com duplo-efeito;
b) se, neste casal do teu exemplo, a mulher tem gravidez ectópica e o feto está morto, é lícito fazer a remoção cirúrgica do feto, porque não será esta a provocar-lhe a morte;
c) se, neste casal do teu exemplo, a mulher tem gravidez ectópica e o feto está vivo, há divergência entre os moralistas sobre se é lícito ou não fazer a remoção cirúrgica do feto;
d) se, neste casal do teu exemplo, o problema é de outra natureza e o médico quer injetar no útero da mulher uma solução salina para provocar a morte do feto, não é lícito fazê-lo, porque é matar diretamente um inocente.
e) se, neste caso do teu exemplo, o problema é de outra natureza e o médico quer abrir o útero da mulher, tirar a criança e jogá-la num balde de lixo até ela morrer, não é lícito fazê-lo, porque é matar diretamente um inocente.
f) se, neste caso do teu exemplo, o problema é de outra natureza e o médico quer abrir o útero da mulher, tirar a criança e colocá-la em uma incubadora, empenhando-se na preservação de ambas as vidas, sem negligência, mesmo que a criança venha a falecer, é lícito fazê-lo, porque respeitou-se a vida da criança e foi feito todo o possível para salvá-la.
Abraços,
Jorge
Caro Jorge,
Também já li sobre restrição mental, mas acho que nunca entendi bem isso.
Imagine que eu saiba que um pistoleiro foi contratado para me matar e anda à minha procura. Eu sei quem é ele mas ele não sabe quem sou eu. Um dia ele me encontra na rua e pergunta: “Você é o Carlos, filho de fulano e beltrana?” Eu, evidentemente, respondo: “Não!”. Nesse caso eu minto sem usar restrição mental. Mas acho que nesse caso não cometo pecado. Ou cometo?
Um abraço.
Carlos.
Que a Paz esteja com você!
Jorge,
Veja bem, vou fazer apenas três considerações:
a) Para o nascimento de qualquer ser humano faz-se necessário trazer o nascituro para ambiente extrauterino e efetuar o corte do cordão umbilical, e com isso, efetivar-se-á a interrupção da gestação. Tal procedimento pode acontecer de modo espontâneo ou provocado.
b) Uma coisa é o método e outra coisa é o ato em si de extração do nascituro e corte do cordão umbilical. Por exemplo, naquele primeiro caso, caberia tanto no método invasivo (a cesárea) para efetivar o ato extração do bebê do ventre materno, quanto o método não-invasivo (a administração de medicação) para a induzir contrações que acarretarão na expulsão do bebê e, em ambos os casos, o consequente corte do cordão umbilical.
c) Ué, a humanidade não se iniciou com um casal, Adão e Eva? Você já ouviu falar em questionamento radical da verdade?
Volto a repetir, a persistir o seu entendimento, adeus humanidade!
Abraços ;)
Euripedes Costa.
Prezado Carlos,
Eu não entendo exatamente como funciona a restrição mental porque não consigo entender até que ponto pode-se subentender coisas, para diferenciar entre o sentido lato e a estrito nos moldes que Del Greco diferencia. No teu exemplo, o “não” pode subentender – e, aliás, subentende de fato – “não é da sua conta”, “não lhe interessa”, “não quero lhe dizer isso”. Dito dessa maneira, eu não sei se é uma restrição mental estrita – que é a mesma coisa que uma mentira – ou uma lata, que a gravidade da situação torna lícita.
Mas, distinções morais à parte, num caso como este pode ser que tu não peques, mesmo mentindo, porque estás coagido. O pecado exige conhecimento e deliberação, e a tua vontade neste caso está sendo constrangida pela ameaça à própria vida. Ainda, no entanto, que seja pecado, é sem dúvidas venial.
O que é legal é tu usares, se a situação permitir, uma restrição mental fantástica que um santo – São Policarpo, ou outro da época, não sei certo; digamos que foi São Policarpo – usou e que Daniel-Rops conta no primeiro volume da História da Igreja de Cristo. É um caso muito parecido. Ele estava sendo procurado pelo Império Romano e foi encontrado em um bote por um grupo de soldados, que estavam à busca dele descendo o rio. Então eles perguntaram “ó velhinho, sabes onde está Policarpo?”, ao que o santo prontamente respondeu “não está longe daqui!” – e os soldados agradeceram e deixaram-no para trás, redobrando a velocidade do barco em sua perseguição equivocada.
Abraços,
Jorge
Sr. Eurípedes,
O senhor está chegando ao extremo de chamar “parto” de “interrupção da gestação”. Sinceramente, não consigo ver nenhum sentido – a não ser provocar confusão – em usar a mesma expressão para significar duas coisas tão gritantemente diferentes quanto um nascimento e um assassinato.
Acredito que os exemplos já foram citados à exaustão, e o ensino moral da Igreja já esteja claro o suficiente para qualquer pessoa que não deseje dar nó em pingo d’água.
Não sou obstetra, mas me parece que não existe parto prematuro – estou falando de parto no sentido corriqueiro do termo, e não na ressignificação que o senhor porventura deseje dar – provocado por Cytotec. Parece-me extremamente óbvio que o método por meio do qual o nascituro é trazido para o ambiente extra-uterino influencia, sim, na caracterização do que está sendo feito: se um assassinato ou um nascimento.
Existem dois pequenos “detalhes” aos quais o senhor não está atentando:
1. O que diferencia o “aborto direto” do “aborto indireto” não é a “intenção” do médico, e sim a natureza do ato. Uma ação cujo fim é a morte do feto, quer este fim seja desejado em si mesmo, quer seja desejado como meio para obtenção de um segundo fim, é um aborto direto e, por conseguinte, é sempre ilícita.
2. Não faz a menor diferença se existe um casal ou um bilhão de casais, porque uma coisa ser “intrinsecamente má” significa precisamente que ela é má em si mesma, independente das condições exteriores; o teu “questionamento radical da verdade”, no caso em pauta, é puro ad populum, uma vez que, do ponto de vista moral, é a exata mesma coisa ser o último casal do mundo ou ser um casal qualquer de periferia dos dias de hoje.
Abraços,
Jorge