[Sobre o problema de uma mãe que chegasse a salvar-se e visse o(s) seu(s) filho(s) condenado(s) ao inferno ou, de outra maneira, de um filho que se salvasse enquanto os seus pais caíssem em danação, trago as seguintes singelas palavras de Santa Catarina de Sena. Elas podem parecer duras, mas isto acontece apenas se as coisas não forem colocadas sob uma perspectiva sobrenatural. Deus é Deus, é a resposta última a todos os anseios dos homens e, por isso, o amor e o gozo d’Ele suplantam toda tristeza que porventura possa restar no homem. Quem tem o mais não se preocupa com a “falta” do menos e, portanto, a quem tem Deus não pode fazer falta criatura alguma – ainda que um seu rebento ou a sua progenitora.
É perfeitamente natural que nós não possamos compreender o alcance destas palavras – é claro. Nenhum de nós viu a Deus e, portanto, não é capaz de ter a dimensão da felicidade perpétua que é estar em Sua presença – aquilo que os olhos não viram, os ouvidos não ouviram e o coração humano não imaginou. Resta, no entanto, aquela promessa divina de que somos destinados a uma pátria onde toda lágrima será enxugada; e sabemos que Deus cumpre as Suas promessas. Enquanto lá não chegamos, cumpre-nos a terrível obrigação de rezarmos por aqueles que nos são caros – pelos nossos próximos, principalmente pelos mais próximos dos próximos que são os nossos familiares.
Porque o Inferno é uma realidade terrível, da qual precisamos pedir constantemente a Deus que nos livre; como na oração do Anjo de Fátima, devemos pedir sem cessar ‘ó meu Jesus perdoai-nos, livrai-nos do fogo do Inferno e levai as almas todas para o Céu’. Não há, na vida cristã, espaço para o desespero; se é terrível e horripilante o Inferno, é também infinitamente alegre e cheio de gozos o Céu, e este tão mais excelso e agradável do que doloroso o Inferno quanto o Bem está acima do mal, quanto a Graça está acima do pecado, quanto Deus está acima de Satanás. Rezemos, pedindo a Deus misericórdia, e nos esforcemos por chegarmos um dia à Bem-Aventurança Eterna; com a certeza de que, nela, nada nos há de faltar.]
14.4 A felicidade dos santos
Também o homem justo, ao encerrar sua vida terrena no amor, já não poderá progredir na virtude. Para sempre continuará a amar no grau de caridade que atingiu ao chegar até mim. Também será julgado na proporção do amor. Continuamente me deseja, continuamente me possui; suas aspirações não caem no vazio. Ao desejar, será saciado; ao saciar-se, sentirá ainda fome; distanciando-se assim do fastio da saciedade e do sofrimento da fome. (…) Entre si congraçados na caridade, os bem-aventurados de modo especial comunicam-se com aqueles que amaram no mundo. Realizam-no, naquele mesmo amor que os fez crescer na graça e nas virtudes. Na terra, ajudavam-se uns aos outros, a glorificar-me, a louvar-me em si mesmo e nos outros; tal amor continua na eternidade. Conservam-no, partilham-no profundamente entre si; com maior intensidade até, associando-se à felicidade geral.
Não penses que a felicidade celeste seja apenas individual. Não! Ela é participada por todos os cidadãos da pátria, homens e anjos. Quando chega alguém à vida eterna, todos sentem sua felicidade, da mesma forma como ele participa do prazer de todos. Não no sentido que os bem-aventurados progridam ou se enriqueçam, pois todos são perfeitos e não precisam de acréscimos. É uma felicidade, um prazer, um júbilo, uma alegria que se renova interiormente, ao tomarem eles conhecimento da riqueza espiritual do recém-chegado. Todos compreendem que ele foi elevado da terra à plenitude da graça por minha misericórdia; naquele que chegou todos se alegram, gratos pelos dons de mim recebidos. O novo eleito, igualmente, sente-se feliz em mim e nos bem-aventurados, neles contemplando a doçura do meu amor.
Em seus anseios, os bem-aventurados clamam continuamente diante de mim em favor do mundo inteiro. Suas vidas haviam terminado no amor fraterno; continuam no mesmo amor. Aliás, foi exatamente por tal caridade que passaram pela porta que é meu Filho, conforme explicarei em seguida. Os bem-aventurados continuam no céu, eternamente, aquele mesmo amor com que encerraram a vida terrena. Conformaram-se inteiramente à minha vontade, só desejam o que eu desejo. Chegando ao momento da morte em estado de graça, seu livre arbítrio fixa-se no amor e eles não pecam mais. Suas vontades identificam-se com a minha. Se um pai, uma mãe vêem ou, em sentido contrário, se um filho vê os pais no inferno, não se perturbam. Até se alegram por ver tal pessoa punida, como se fosse inimigo seu. Os bem-aventurados em nada se distanciam de mim. Seus desejos estão saciados. Anseiam em ver-me glorificado por vós, viandantes e peregrinos que sois em direção à morte. Aspirando por minha honra, querem vossa salvação e sempre rogam por vós. De minha parte, escuto seus pedidos naquilo em que vós, por maldade, não opondes resistência à minha bondade.
Santa Catarina de Sena,
“O Diálogo”, pp. 94-96
Paulus, 9ª Edição
São Paulo, 2005