Desde o final do mês passado – mais especificamente, desde o Dia dos bem-aventurados apóstolos São Pedro e São Paulo – a ACI Digital está com um novo formato. O portal católico de notícias aponta aquele que é um dos principais desafios dos nossos tempos:
A Igreja no Brasil e no mundo de língua portuguesa em geral, experimenta uma crescente necessidade de penetrar no campo das comunicações, para promover suas iniciativas, incrementar seu alcance e assim levar a mensagem de Cristo aos fiéis nos diversos meios de comunicação, particularmente, na internet.
Eu lia recentemente a palestra do pe. Spadaro sobre os novos meios de comunicação, e o sacerdote falava algo importante que, contudo, parece-me negligenciado por muitas pessoas. Refiro-me ao fato de que a internet é mais do que um simples meio de comunicação: é um – na falta de termo melhor – ambiente no qual as pessoas de fato existem. Na minha opinião, o grande trunfo da internet sobre os meios de comunicação tradicionais está na interatividade: de maneira contrária ao que ocorre (p.ex.) na televisão ou no rádio, as novas mídias sociais possibilitam – ou, eu diria mais ainda, exigem – que os consumidores de conhecimento sejam também eles próprios, por sua vez, produtores de conteúdo. Este fenômeno é completamente universal, abrangendo dos antigos canais do IRC às listas de email, das comunidades do Orkut aos sistemas de comentários dos blogs e do Facebook. Na internet não apenas se lê, mas também se escreve; não apenas se ouve, mas também se fala. Quem não entender a dinâmica deste mecanismo não vai conseguir entender a internet e, por conseguinte, não vai conseguir aproveitá-la.
A partir do momento em que as pessoas são instadas a se relacionarem na internet, esta deixa de ser um mero canal de busca de informações e passa a ser – de certo modo – uma extensão da existência dos seres humanos. Não é como um livro que se lê ou um espetáculo que se assiste, e sim como uma história escrita colaborativamente e à qual é imperativo impôr alguns traços da própria personalidade; como um ambiente no qual está uma parte de nós mesmos e que, portanto, deve refletir de certo modo um quê de nossa individualidade. Diante da internet – e talvez seja por isso que ela é tão sedutora – tem-se um vislumbre deste deslumbramento criativo de um artista diante de matéria bruta: tem-se a impressão de que é possível moldá-la e, mais, que ela clama por ser moldada. Tem-se esta forte sensação de que é possível modificar este espaço ao nosso redor de forma a transformá-lo n’alguma coisa que podemos dizer “nossa”. Não por acaso “site” significa precisamente – e a grafia assim se manteve no português-pátrio do Além-Mar – “sítio”. É um lugar, virtual por certo, mas ainda assim um lugar, que tem as características dos seres humanos que lá estiverem.
Há perigos, sem dúvidas, é inútil negá-lo. Claro está que um ambiente onde todos têm vez e voz corre o risco de se tornar terreno fértil para toda sorte de futilidades e de ocasiões de pecado. Sobre estas, a propósito, nunca me esqueci de uma história contada por Santo Agostinho em suas Confissões. Na época dele ainda havia lutas de gladiadores no Coliseu, e os cristãos as abominavam. Um amigo do santo, após insistentes convites de seus pares para participar de tais eventos, decidiu certa feita ir. Santo Agostinho o repreendeu, dizendo que esta violência gratuita não poderia fazer nenhum bem; mas o seu amigo o tranqüilizou dizendo que iria somente para satisfazer os seus colegas, pois manteria os seus olhos fechados na arquibancada, preservando-se assim daquela violência brutal que os pagãos da época tinham por entretenimento. E exatamente assim ele fez.
Pena – escreveu Santo Agostinho – que ele não se lembrou de fechar também os ouvidos. Ao primeiro golpe mutilador que fez o sangue jorrar na areia do Coliseu, a multidão reunida irrompeu em gritos de euforia; pego de surpresa pelo barulho, o jovem amigo do Bispo de Hipona abriu os olhos e, abrindo-os, foi seduzido pela luta. Tornou-se assim, a partir de então, para tristeza do santo e ruína de sua própria alma, um freqüentador assíduo das lutas de gladiadores.
Este exemplo ilustra perfeitamente o que é uma situação de pecado que se deve evitar. Não havia absolutamente nenhum propósito razoável em ir ao Coliseu e manter-se inerte na arquibancada de olhos fechados. Inexistindo (ou sendo mínimo) o benefício da atitude em comparação com o risco que se corre em tomá-la, a boa teologia moral nos ensina que não nos é lícito expôr desta maneira nossa alma a tão graves perigos. Coisa completamente diversa ocorre quando nós temos um propósito razoável em vista, isto é, quando há certa proporcionalidade entre o risco que se está correndo e as boas obras que se deseja realizar. Nestes casos, cabe ao juízo prudencial sopesar os prós e os contras e decidir o que cada um pode fazer e em que medida é lícito fazê-lo.
A internet pertence claramente a esta segunda categoria. Claro está que há perigos – terríveis! – na rede, mas claro está também que a presença dos católicos nela não é sem propósito, muito pelo contrário: tem o objetivo de viver o Evangelho também neste ambiente, criado pelo engenho humano mas existente de fato. Parece-me, desta maneira, exagerada esta reação contra o Facebook, na qual a rede recebe o temível epíteto de “intrinsecamente mau”. Com a devida vênia, isto é um completo absurdo. Primeiro porque apenas atos humanos são passíveis de serem qualificados como “intrinsecamente maus”, e o Facebook é uma coisa evidentemente distinta de um ato humano (pode-se classificá-lo como um ambiente ou até mesmo como uma ferramenta, vá lá, mas jamais como um “ato”). Segundo porque intrinsece malum, segundo a Igreja [cf. Veritatis Splendor, 80], são aqueles atos assim classificados em razão do seu objeto, e o ato de estabelecer relações com outras pessoas – o que é o fim precípuo de toda rede social – não é, sob nenhuma ótica, um objeto mau em si próprio. Relacionar-se para se vangloriar ou para satisfazer a concupiscência, p.ex., é sim moralmente errado, mas o é por conta da intenção [= a vanglória ou a concupiscência], e não do objeto [= a relação entre seres humanos]. Posso facilmente concordar que há nas redes sociais muitas relações fúteis e desordenadas, mas não dá para concordar que sejam intrinsecamente desordenadas as relações entre seres humanos feitas através dos novos meios de comunicação pelo simples fato de serem feitas “através de redes sociais”. Isto simplesmente não faz sentido.
A existência da internet é um fato do qual não é possível fugir e cuja existência não vai deixar de influenciar o mundo no qual vivemos se nós decidirmos fingir que ela não existe. Se a internet, como dizíamos acima, é um ambiente plasmado pela ação dos seus usuários – e me parece evidente que ela assim o seja -, então me parece totalmente sem sentido defender que é uma boa idéia “abandoná-la” à ação dos bárbaros. Muito pelo contrário até: se o ambiente da internet tem as cores dos seus “habitantes”, então é mister povoá-lo de almas nobres que se empenhem em torná-lo mais civilizado. Importa cultivar os sítios virtuais, a fim de que eles dêem frutos saborosos e não somente ervas daninhas. Afinal de contas, não me consta que haja exceção aos ambientes que devem ser perfumados com o doce odor de Cristo que os discípulos d’Ele têm o mandato de espalhar por todo o mundo.
E.. eu poderia me referir, mesmo que com alguma impropriedade, mas analogicamente, a um bordel como intrinsecamente mau?
Boa. Com estas ressalvas, concedo. Mas igualar a internet como um todo (ou somente as redes sociais, ou – vá lá! – somente o Facebook) a um bordel não é meio exagerado não?