O blog “Tradição em Foco com Roma” publicou a tradução de uma interessante carta do Papa Leão XIII ao Cardeal Guibert, então arcebispo da França. Buscando o original, encontrei a Lettre de Sa Sainteté a Son Em. Le Cardinal Guibert aqui (a partir da página 12). As admoestações do Papa feitas em 17 de junho de 1885 são bastante atuais e podem servir para lançar luzes sobre a situação atual da Igreja: se é verdade que passamos por uma crise talvez sem precedentes na história da Igreja, não é menos verdadeiro que Cristo instituiu sobre esta terra uma Igreja Indefectível e, por mais que as coisas nos pareçam difíceis, não podemos perder de vista a força daquele vigoroso NON PRAEVALEBUNT que, há tantos séculos, Nosso Senhor decretou na Cesaréia.
É claro que a infalibilidade da Igreja é restrita e não ampla: ela engloba os atos do Magistério Supremo entendidos como tais, e não todo pronunciamento de qualquer prelado. No entanto, o contrário de “ser infalível” não é “errar”, como alguns parecem gostar de concluir em um exercício totalmente heterodoxo de lógica proposicional. É bem verdade que há, em princípio, situações nas quais o católico – mesmo o leigo – tem mesmo o dever de desobedecer às ordens da autoridade legítima; inobstante, transformar uma hipótese extraordinária na regra de fé ordinária é uma interpretação tão perigosamente elástica da doutrina católica que deveria ao menos provocar um certo incômodo naqueles que se sabem feridos pelo Pecado Original. Deveria pelo menos lhes deixar com alguma dificuldade de consciência. Como eu escrevi aqui lá no primeiro ano do Deus lo Vult!:
Sempre é possível inventar exemplos e mais exemplos de situações hipotéticas nas quais o homem estaria realmente dispensado da obediência e ainda nas quais obedecer cegamente seria um pecado; mas quando esta hipótese é aplicada amiúde em situações concretas que não guardam com os exemplos aventados senão uma vaga e forçada semelhança, então nós temos um sério problema: nós temos a repetição do non serviam primordial sob uma nova roupagem. Afinal, aquele que é capaz de “se transfigura[r] em anjo de luz” (IICor 11, 14) também é capaz de dar ao seu brado rebelde uma aparência de virtude.
Abaixo, um excerto da supracitada carta de Leão XIII, com grifos meus. Para uma leitura na íntegra, remeto aos links que foram colocados no início deste post.
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Por certos índices que se observam, não é difícil constatar que, entre os católicos, certamente em razão da infirmeza do tempo, existem os que, pouco contentes com sua situação de súditos que têm na Igreja, crêem poder ter alguma parte em seu governo ou pelo menos imaginam que lhes é permitido examinar e julgar à sua maneira os atos da autoridade. Se isto prevalecesse, seria um grande dano na Igreja de Deus, na qual, pela vontade manifesta de seu divino Fundador, distingue-se no seu pessoal os que são ensinados e os que ensinam, o rebanho e os pastores, entre os quais um é o chefe e o pastor supremo de todos.
Apenas aos pastores foi dado poder de ensinar, de julgar, de corrigir, aos fiéis foi imposto o dever de seguir os ensinamentos, de submeter-se com docilidade ao julgamento e de deixar-se governar, corrigir, conduzir à salvação. Assim é absolutamente necessário que os simples fiéis se submetam de espírito e de coração a seus próprios pastores, e esses com eles ao Chefe e Pastor supremo; é nesta subordinação e dependência que gira a ordem e a vida da Igreja; é nela que se funda a condição indispensável do bem fazer e tudo levar a bom porto. Ao contrário, se ocorre que os simples fiéis se atribuem autoridade, se eles a pretendem como juízes e senhores; se os subordinados, no governo da Igreja universal, preferem ou tentam fazer prevalecer uma diretriz diversa daquela traçada pela autoridade suprema, é uma subversão da ordem; leva-se dessa forma a confusão a muitos espíritos, e sae-se do caminho.
E não é necessário, para faltar a um dever tão santo, fazer ato de oposição manifesta, seja aos bispos, seja ao chefe da igreja, é bastante que tal oposição se faça por meios indiretos, tão mais perigosos quanto mais ocorre a preocupação de escondê-los por aparências contrárias. Desta forma, falta-se a esse dever sagrado desde que, ao mesmo tempo que se manifesta zelo pelo poder e as prerrogativas do Supremo Pontífice, não se respeitam os bispos que a ele estão unidos, não se tem em conta suficiente a sua autoridade, e se interpretam lamentavelmente seus atos e suas intenções sem aguardar o julgamento da Sé Apostólica.
Da mesma forma, é prova de uma submissão pouco sincera, estabelecer uma como que oposição entre um Pontífice e outro. Aqueles que, entre duas direções diversas, repudiam o presente para prender-se ao passado, não dão prova de obediência à autoridade que tem o direito e o deverde guiá-los: e sob um certo aspecto se assemelham aos que, condenados, quisessem apelar ao Concílio futuro ou a um Papa melhor informado.
Sob esse aspecto, o que é necessário fixar é que no governo da Igreja, salvo os deveres essenciais impostos a todos os Pontífices por seu cargo apostólico, cada um deles pode adotar a atitude que julgar a melhor, segundo os tempos e outras circunstâncias. Disto é ele o único juiz; considerando que para isso ele tem não somente luzes especiais, mas ainda o conhecimento de condições e necessidades de toda a catolicidade a que convém que condescenda sua previdência apostólica. É ELE QUE CUIDA DO BEM PARTICULAR [??? – C’est lui qui doit procurer le bien de l’Eglise universelle, auquel se coordonne le bien de ses diverses parties, no original], e todos os outros que são submetidos a esta ordem devem secundar a ação de um diretor supremo e servir ao fim que ele quer atingir. Como a Igreja é uma e um o seu chefe, assim é uno o governo a que todos devem conformar-se.
Jorge,
Excelente post!!!
Eu grifaria também a seguinte frase:
“Aqueles que, entre duas direções diversas, repudiam o presente para prender-se ao passado, não dão prova de obediência à autoridade que tem o direito e o deverde guiá-los: e sob um certo aspecto se assemelham aos que, condenados, quisessem apelar ao Concílio futuro ou a um Papa melhor informado.”
Caro Jorge, bela introdução!
Agradeço pela correção. Eu copiei de uma publicação da revista “A Ordem” na faculdade onde estudo, devo ter me distraído. Quando a achei pensei logo no Concílio… Você falou em infalibilidade da Igreja, é isto mesmo que os tradicionalistas negam, pervertendo o dogma. Não nego que a possibilidade de existir erros em alguns documentos, mas se existem são acidentais. Falo com todas as Teologias Dogmáticas que já li ao lado que o VII não pode negar dogma e nem se opor à Tradição.
Nelson
Você sabe em qual edição de “A Ordem” está esse artigo/carta?
Há cerca de um semestre, listei um “índice” dos documentos que compõem o “dossiê” de que esta excelente Carta do Papa Leão XIII faz parte:
http://cumexapostolatusofficio.blogspot.com/2012/03/mais-uma-paulada.html?showComment=1331670694356#c2410229379864092076
Vale a pena conhecer os demais documentos também, para entender melhor as circunstâncias da Carta citada, o que sempre ajuda a bem interpretá-la.
Nelson, você poderia citar a edição da revista “A Ordem” de onde você afirma ter tirado esta tradução? Achei estranho uma revista tão renomada traduzir por “direções” o que obviamente são “diretrizes”, entre outros erros mais ou menos elementares.
Lampedusa e Felipe Coelho,
infelizmente, eu não anotei… Falha lamentável! Mas vou resolver isso, vou procurá-la certinho na parte da estante onde estava, e trago para vocês.
Felipe, foi um leitor da revista que enviou à ela, pedindo que publicasse, o que fizeram logo nas primeiras páginas.
Abç.
Segue: A Ordem, v. 71, nº. 2, jul./set.. 1974.
A carta foi enviado não só por alguém que era leitor, mas próprio Presidente do Centro Dom Vital (na pressa de copiar nem reparei no fato tão significativo).
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