A Jerusalém Celeste para além do Vale de Lágrimas

Decididamente não nos assenta bem a boa saúde, o estado provisório qui n’annonce rien de bon, a caricatura da paz e de bem-estar que durante tantos milênios de planeta ainda não aprendemos a usar. [Gustavo Corção, “Na Casa de Saúde”]

Leiam na íntegra esta bonita crônica do Corção, que me foi mostrada por um amigo e da qual foi retirada a frase em epígrafe. É um excelente material de meditação para a Campanha da Fraternidade deste ano; ou melhor, para nos indicar os caminhos errados pelos quais nos pode conduzir a Campanha da Fraternidade durante este precioso tempo quaresmal que estamos vivendo.

Eu já devo ter repetido diversas vezes o quanto eu gosto da oração da Salve Rainha e, mais especificamente, o quanto me apraz a parte em que suspiramos à Santíssima Virgem entre gemidos e choros “in hac lacrimarum valle”, neste Vale de Lágrimas. Porque uma parte importante do Cristianismo é a consciência do Pecado Original, esta percepção de que existe algo de intrinsecamente errado no mundo que nos rodeia: só assim nós podemos aspirar às coisas mais elevadas. O Paraíso foi perdido e, junto com esta perda, foi-nos estabelecida a radical impossibilidade de construirmos por nós próprios um novo Paraíso Terrestre. A esperança cristã é a de Novos Céus e Novas Terras. É nisto que devemos ter os olhos fitos: na Jerusalém Celeste que (só!) se encontra para além do Vale de Lágrimas!

A terra “maldita” por causa do pecado é um excelente elemento da pedagogia divina. Afinal de contas, se vivêssemos em um mundo perfeito ser-nos-ia muito fácil deixar esmorecer o nosso desejo por um outro mundo melhor. Após o Pecado, foi a Misericórdia de Deus que fez a terra produzir espinhos e abrolhos. Se fosse dado livre curso a Satanás, ele com certeza faria, após a Queda, um mundo que fosse composto exclusivamente por palácios de ouro e do qual não desejássemos jamais sair. Querer um mundo perfeito é uma utopia, é uma quimera que nos desvia daquilo que é realmente importante. O afã de construir um mundo perfeito é pernicioso porque nos distrai da nossa peregrinação rumo à Pátria Celeste – em última instância, a única que interessa.

E esta parece ser precisamente a tônica das Campanhas da Fraternidade. Temos o “que a saúde se difunda sobre a terra” do ano corrente e, olhando o histórico disponível na página da Conferência dos Bispos, temos muitas outras cantigas se utilizando desta mesma nota. Temos um “Levanta-te, vem para o meio!” em 2006, um incrível “Por uma terra sem males” em 2002, um “Novo Milênio sem Exclusões” em 2000. A idéia subjacente (às vez mais explícita, às vezes menos) é sempre a mesma: deseja-se um mundo perfeito. Um mundo onde o homem e a natureza vivam na mais perfeita harmonia romântica (“Fraternidade e Vida no Planeta”, 2011), ou onde não exista mais avareza entre as pessoas e todas socorram generosamente às necessidades de seus semelhantes (“Vocês não podem servir a Deus e ao Dinheiro”, 2010), ou onde não haja mais violência entre os seres humanos (“Fraternidade e Segurança Pública”, 2009), etc. É sempre a mesma coisa: sempre uma cenoura na frente do burro, sempre uma utopia inalcançável e inútil apresentada como importante meta a ser buscada, sempre uma distração daquilo que é verdadeiramente importante no tempo da Quaresma.

Porque nós, cristãos, somos chamados a coisas muito mais sublimes e infinitamente mais elevadas do que um novo milênio sem exclusões ou uma terra sem males: ainda que estas coisas fossem possíveis (o que é óbvio que não são), seriam infinitamente menores do que as coisas que Deus nos reservou – que, como nos diz São Paulo, são aquilo que os olhos não viram, os ouvidos não ouviram e o coração humano sequer imaginou. Durante a Quaresma nós somos chamados a perseguir o Reino de Deus, e não quimeras; que mal causam aos fiéis brasileiros estas campanhas diabólicas que levam os homens a correrem atrás de utopias!

Contra esta insídia que desgraçadamente já há tanto tempo assola o nosso tempo quaresmal, que primor está o texto do Gustavo Corção! Leiam-no, volto a recomendar. A melhor forma de tratar o tema “saúde” na Quaresma é, precisamente, sob a ótica da falta dela. Não meramente através de um (obviamente legítimo) desejo de cura, mas algo mais: como um indicativo permanente da miséria humana, como um espinho na carne a não nos deixar esquecer o Vale de Lágrimas no qual estamos exilados.

Porque, afinal de contas, o verdadeiro anseio cristão é pela Jerusalém Celeste, o anelo legítimo dos que estamos exilados é o retorno à Pátria Celeste. Nosso Senhor veio ao mundo para nos tornar cidadãos do Céu; o nosso dever é sair do Vale de Lágrimas, e não transformá-lo em um lugar perfeito até nos esquecermos de que Algo maior nos espera para além das montanhas.

Gosto do Salmo 136, que fala do exílio. “À margem dos rios da Babilônia nós sentamos e choramos, com saudades de Sião”. E penso que esta temática é recorrente na história de Israel; p.ex., quando os judeus no deserto passaram a sentir falta “das cebolas do Egito” [cf. Nm 11, 5]. Acho que isto não é sem motivo. Há a tentação permanente de “nos esquecermos” da nossa dignidade e da – imerecida, mas real! – glória a que somos destinados; há a tentação permanente de querermos ficar “por aqui mesmo”. No referido salmo sobre o exílio há fortes maldições contra o esquecimento da Pátria: “Se eu me esquecer de ti, ó Jerusalém, que minha mão direita se paralise! Que minha língua se me apegue ao paladar, se eu não me lembrar de ti, se não puser Jerusalém acima de todas as minhas alegrias”. Isto é uma coisa séria que merece toda a nossa preocupação. E, levando os fiéis católicos a se esquecerem da Jerusalém Celeste à qual pertencem, tudo o que a Campanha da Fraternidade consegue é se transformar no alvo destas imprecações bíblicas. Ai daqueles que, promovendo-a, afastam de Deus o Seu povo.

Santo Tomás e o atentado contra Hitler

[Reproduzo um trecho do excelente texto do “Sou conservador e daí?”, sobre as influências de Santo Tomás nas conspirações contra Hitler durante o regime nazista alemão. A história é interessante e, como está dito no texto, dificilmente seria contada hoje em dia; certos assuntos não é interessante promover. No entanto, precisa ser conhecida; as influências benéficas do dominicano medieval estendem-se até os nossos dias de hoje. Isto, por si só, deveria evidenciar que há algo de muito errado com a forma segundo a qual a Idade Média nos é apresentada. Que Santo Tomás interceda por nós.]

Desde setembro de 1942, diante do assassinato em massa de civis e judeus, Von Stauffenberg se declara com intenção de matar Hitler, mas seus amigos levantavam um problema de consciência. A obediência do exército alemão era uma questão de honra e atentar contra o chefe da nação não constituiria uma traição e um pecado grave de assassinato?

Mesmo Stauffenberg confidenciou ao seu antigo amigo da Escola de Guerra, Albrecht Mertzvon von Quirnheim, católico como ele, no dia 13 de julho de 1944: “Estou ciente de que nós vamos enterrar o espírito militar alemão (…). No entanto, devemos agir, pela Alemanha e pelo Ocidente”.

Quanto ao problema de consciência de seus amigos, Stauffenberg respondia com um argumento extraído da Summa Theologica de Santo Tomás de Aquino (In 2 Sentenças, 44.2.2) para justificar que o tiranicídio é permitido em certas circunstâncias.

Tempo antes, Stauffenberg havia se encontrado com o cardeal de Berlin, o conde Konrad Von Preysing, para discutir a matéria, e o purpurado alemão elogiou a intenção do nobre oficial e não apresentou nenhuma objeção teológica à razão apresentada.

“Amor, casamento, divórcio” – Gustavo Corção

Mas o divorcista — seja dito em sua homenagem — não percebe essa contradição; e não a percebe justamente porque renunciou, de antemão, usar aquilo com que se evidenciam as contradições. Para ele, como já disse, o casamento é casual, essencialmente irrefletido, e não pode deixar de ser assim uma espécie de loteria onde pesa mais a sorte do que a razão. Dizem por exemplo que o amor é cego, e que é impossível, em meses de noivado, conhecer perfeitamente a pessoa com quem se delibera fundar uma família.

Concedo que é impossível, em meses, conhecer perfeitamente o outro. Vou até mais longe. Se é preciso conhecer perfeitamente o outro em todos os seus recantos psicológicos, a vida inteira não basta, e deveríamos adiar todos os casamentos par o dia do juízo final. Ou então, para atender às flamas do mais impaciente amor, deveríamos estipular que os noivos esperassem a provecta idade dos senadores.

O que é evidente, nesse pessimista irracionalismo, é que a incapacidade de conhecer o outro, se destrói o casamento indissolúvel, destrói também o divórcio. Porque o divórcio se baseia justamente nessa idéia insensata de que, num certo ponto da vida conjugal, a gente esgota completamente o conhecimento do outro, a ponto de lhe recusar a mínima possibilidade de recuperação.

Gustavo Corção,
“Amor, casamento, divórcio”

Os Nobel da Pontifícia Academia das Ciências

Circulou recentemente no Facebook uma imagem sobre a Pontifícia Academia das Ciências. O texto dizia que ela possui “8 prêmios Nobel de Medicina, 7 de Química, 9 de Física e 1 de Economia”, totalizando “24 prêmios Nobel”. E alfinetava: “a USP não tem nenhum, a UNICAMP não tem nenhum, o Brasil não tem nenhum”.

Vem ao encontro daquilo que o Ives Gandra escreveu outro dia sobre o ateísmo; é tão imponente a verdadeira relação harmoniosa entre Fé e Razão que chegam a ser ridículos os protestos dos anti-clericais sobre o tema. Cale-se a ignorância arrogante diante da competência internacionalmente reconhecida! Perto da envergadura intelectual dos membros desta Academia, qual a relevância científica daqueles cuja “produção acadêmica” resume-se a repetir – de mil modos diversos – meia dúzia de calúnias anti-clericais gratuitas que só eles próprios levam a sério?

E ainda: diferente do que foi dito, a Pontifícia Academia das Ciências não tem 24 prêmios Nobel. Eu entrei na página da Academia onde estão listados os membros falecidos e contei: são quarenta e oito [p.s.: 24 são os Nobel vivos: então a Academia conta, no total, com 72 prêmios Nobel]. Entre os laureados já falecidos encontram-se nomes como Rutherford, Bohr, Heisenberg, Schrödinger, Sir Alexander Fleming e Max Planck. Entre os vivos, Joseph Murray e David Baltimore. A academia conta atualmente ainda com cientistas notáveis como o brasileiro Miguel Nicolelis e o inglês Stephen Hawking; e, entre os falecidos, encontrei também o filho de um ilustre brasileiro: Carlos Chagas Filho [que eu confundi anteriormente com o pai – my mistake]. Estas são as credenciais que a Igreja – “inimiga da ciência” – é capaz de apresentar em Seu favor! O que têm os anti-clericais a apresentar a não ser o testemunho da própria ignorância?

“Abortar, eu?! Jamais!”

– Quando eu estava no ventre da minha mãe, ela sofreu um acidente que a deixou à beira da morte. O médico lhe disse: “Terás que abortar!”; e ela respondeu: “Abortar, eu?! Jamais!”. Ou seja, defendeu a vida, a minha vida. E graças a ela estou aqui.

– Chaves

Visitem: www.denmechance.org

Os absurdos números do aborto no Brasil – e a completa falta de noção da Ministra das Mulheres!

Importantíssimo este artigo da Dra. Lenise Garcia sobre a palhaçada descarada que os abortistas da ONU fizeram com os números referentes ao aborto no Brasil (a notícia originalmente divulgada é esta aqui). Leiam-no na íntegra! Destaco:

Podem argumentar que o aborto é clandestino, havendo portanto uma sub-notificação. Mas onde estão enterradas essas mulheres? Foram sepultadas sem um atestado de óbito?!? Não, em relação às mortes maternas o número de óbitos está bem registrado. Aliás, se o aborto está entre as cinco principais causas, supondo números equivalentes, teríamos um milhão de mulheres em idade fértil morrendo anualmente no Brasil. O país estaria em extinção.

É verdade que o ministro da Saúde depois veio dar uma de sonso e se dizer “surpreso” com os números. O que é incrível (mais que isso, é escandaloso) é que dona Eleonora – em cuja fuça os números foram jogados pela ONU – não saiba (ou não queira) identificar um dado absurdamente mentiroso nem mesmo quando ele lhe é esfregado na cara! Cáspita, segundo os dados do próprio Governo (concretamente, o DATASUS) morrem menos de 100 mulheres (não são “cem mil”, são CEM MULHERES) por ano no Brasil devido ao aborto! Como é que eu sei disso, qualquer pessoa com acesso à internet sabe disso e a Ministra das Mulheres da Dilma não sabe? Como é que uma “perita” da ONU apresenta um número duas mil vezes maior e a Ministra da Secretaria de Políticas para as Mulheres (!!!) não percebe que ele é completamente absurdo? Que noção sobre as mulheres brasileiras esta senhora tem para estar ocupando o cargo que ocupa?!

O que causa surpresa aqui, no entanto, é justamente a alegada “surpresa” do ministro da Saúde. Afinal de contas, todo mundo sabe que abortista é gente mau-caráter que falsifica descaradamente os números sobre o aborto, a fim de melhor atender aos seus interesses escusos. Isto é público e notório, inclusive já confessado por ex-abortistas (p.ex., o dr. Bernard Nathanson):

É uma tática importante. Dizíamos, em 1968, que na América se praticavam um milhão de abortos clandestinos, quando sabíamos que estes não ultrapassavam de cem mil, mas esse número não nos servia e multiplicamos por dez para chamar a atenção. Também repetíamos constantemente que as mortes maternas por aborto clandestino se aproximavam de dez mil, quando sabíamos que eram apenas duzentas, mas esse número era muito pequeno para a propaganda. Esta tática do engano e da grande mentira se se repete constantemente acaba sendo aceita como verdade.

E isto é óbvio. É claro que a má-fé de quem é a favor do aborto deve via de regra ser pressuposta, cabendo-lhe sempre o ônus de provar (muito bem provado) os dados que gosta de tirar da cartola. Afinal, quem não respeita a vida acaso vai ter algum compromisso com a verdade? Para quem está defendendo o assassinato de bebês, o que é uma mentirinha (ou mentirona) contada em favor da causa?

“A saúde vai muito além de um simples bem estar corporal” – Bento XVI

Para os cristãos, de modo particular, o lema bíblico é uma lembrança de que a saúde vai muito além de um simples bem estar corporal. No episódio da cura de um paralítico (cf. Mt 9, 2-8), Jesus, antes de fazer com que esse voltasse a andar, perdoa-lhe os pecados, ensinando que a cura perfeita é o perdão dos pecados, e a saúde por excelência é a da alma, pois «que adianta ao homem ganhar o mundo inteiro, mas perder a sua alma?» (Mt 16, 26). Com efeito, as palavras saúde e salvação têm origem no mesmo termo latino salus e não por outra razão, nos Evangelhos, vemos a ação do Salvador da humanidade associada a diversas curas: «Jesus andava por toda a Galiléia, ensinando em suas sinagogas, pregando o Evangelho do Reino e curando todo o tipo de doença e enfermidades do povo» (Mt 4, 23).

Bento XVI
Mensagem por ocasião da Campanha da Fraternidade 2012

Esta cuaresma…

[Eu já havia visto o vídeo do menino e da árvore em outro contexto; mas achei este pequeno “vídeo promocional da Quaresma” bastante simpático. Não se trata de menosprezar (é óbvio) o valor das penitências, mas sim de colocá-las em perspectiva: não é penitenciar-se por penitenciar-se, mas sim fazê-lo por amor a Deus, para mais Lhe agradar e mais aproximar-se d’Ele. As penitências não são “um fim em si mesmas”, e todas as práticas religiosas existem para nos levar a Deus. Convém lembrar isto logo no início destes 40 dias, a fim de que possamos vivê-los frutuosamente. Uma santa Quaresma a todos!]

Sobre o Carnaval IV: Derpina-vai-com-as-outras

[Trata-se de uma obra de ficção, recém-inventada e mais recreativa do que qualquer outra coisa. Creio já ter falado o suficiente nos artigos passados sobre os aspectos morais envolvidos na festa que hoje se finda. Uma última distração carnavalesca: amanhã é quarta-feira de Cinzas. Amanhã já iniciamos a Quaresma. Que venha! Que Deus nos ajude nestes dias de roxo que já se avizinham. Que ela nos faça melhores.]

– Eu nunca mais brinco carnaval na vida!

Derpina repetiu a frase em voz alta, praticamente aos gritos; tanto que a sua colega, que dormia na cama ao lado, acordou sobressaltada com tão estranha histeria matinal. Ainda era terça-feira.

– O que é isto, Derpina? Que zoada é esta de manhã cedo?

Derpina estava transtornada. Acabara de acordar quando foi assaltada por uma crise daquilo que costuma ser designado por “ressaca moral”: este mal terrível que costuma afligir as pessoas que ainda não aprenderam a díficil arte de dar um nó na própria consciência a fim de que ela não mais lhes perturbe, independente das barbaridades que cometam. Na verdade, a maior parte das amigas de Derpina já tinha conseguido praticar com sucesso esta lobotomia moral. Derpina se esforçava por imitar-lhes, mas era sempre em vão.

As imagens do dia anterior surgiam confusas na mente de Derpina: muita Jurubeba, muitos sorrisos, muitos flertes, muitos beijos. A gota d’água fora um garoto que se aproximou dela já tentando beijar-lhe. Ela não queria, mas não tinha condições físicas ou envergadura moral diante de suas amigas para resistir decentemente: tanto que o mancebo enfim lhe arrebatou o beijo, sob os aplausos frenéticos dos amigos dele e dela. E foi embora sem nem olhar para trás.

E isto, pra Derpina, não era de forma alguma aceitável. Não se tratava mais de diversão consentida entre adultos (a maneira como as amigas de Derpina costumavam se referir às relações descompromissadas entre pessoas irresponsáveis): isto era se permitir ser tratada como uma coisa, como um animal. Aliás, pior que um animal, porque os cachorros a gente ao menos afaga quando eles chegam junto. Nunca ela se sentira tão ofendida. E às vezes – Derpina pensava – a gente precisa chegar ao fundo do poço para notar que precisa de um pouco de ar e de luz do sol.

– Ele nem olhou para mim! – Derpina gritava, sob o olhar atônito de sua colega de quarto que não fazia a menor idéia do que estava acontecendo. E, num súbito lampejo de raiva e de dor, Derpina pegou a sua fantasia branca-e-preta (de “palhacinha”, como ela chamava), armou-se de uma tesoura e se preparou para fazê-la em pedaços. A amiga, percebendo o que estava para acontecer (ainda que não atinasse para as razões efetivas da atitude intempestiva), gritou:

– Derpina, está louca?! Ainda é terça-feira, e esta roupa custou cento e vinte reais!

Se foi pela referência ao calendário ou ao cartão de crédito, não deu para saber; o fato é que Derpina vacilou por uma fração de segundos, tempo suficiente para que sua amiga saltasse sobre ela e, desarmando-a, salvasse a pobre fantasia que estava prestes a pagar o pato sem ter nada a ver com o mau comportamento da menina que a vestira nos dias anteriores. Derpina agora chorava.

– Isto é uma porcaria de festa, vocês são umas porcarias de amigas, onde já se viu isso… – e chorava. A sua amiga lhe afagava complacente, sem no entanto prestar a mínima atenção nos queixumes. Não entendia dessas coisas de ressaca moral. Para ela, Derpina estava era “muito doida”, ou tivera um pesadelo do qual não acordara direito. Às vezes isso acontecia com ela.

* * *

– Colombina! Colombina!

Derpina passou direto.

– Ah, Colombina, não faça isso! Eu te procurei tanto, o Carnaval inteiro!

Derpina virou-se. Viu outro “palhacinho” muito parecido com ela, preto-e-branco e com uma lágrima pintada no rosto. Achou-o simpático.

– Desculpe, eu não lhe conheço. Você deve estar me confundindo. O meu nome é Derpina, e não esta outra coisa aí da qual me chamaste.

– Colombina. Isto que você está usando é uma fantasia de Colombina.

– Ahhhh o nome dessa palhacinha é Colombina?

– Ela não é uma “palhacinha”. É Colombina e é… é uma personagem típica do Carnaval, que tem uma conhecida história de romance com outros dois personagens. Os palhaços são outra fantasia e têm outra história.

-Ahh… sei.

– Mas veja, eu sou um Pierrot, e o Pierrot é o namorado da Colombina: eu estava te procurando o Carnaval inteiro! Acho que nós devíamos ficar juntos. Nós formamos um belo casal! Podemos passear juntos, brincar com as outras pessoas, dançar um pouco… o que você acha?

Derpina olhou pra ele. Não estava com muito clima de ficar com mais ninguém, mas… bom, pelo menos ele conversara com ela! Coisa bem diferente dos outros “relacionamentos” que ela tivera nos últimos dias. O palhacinho de rosto pintado fora muito mais humano do que os outros caras com o rosto descoberto. O rapaz da fantasia preta-e-branca tratara-a muito melhor do que os outros moços sem fantasia.

– Sabe? Você me agradou muito mais do que os outros caras que encontrei por aí. – Derpina deu-lhe o braço. Nem percebeu que suas amigas perderam-se mais à frente, tentando arranjar o décimo-sexto cara para a menina mais tímida do grupo que não tinha conseguido ficar com quase ninguém.

– É que só um Pierrot consegue entender Colombina.

* * *

– Sabe, amiga? Eu tenho que lhe agradecer. – Derpina disse à sua amiga de noite, quando estavam se preparando para dormir. – Eu ia fazer uma grande besteira se tivesse rasgado a fantasia de Colombina.

– Fantasia de quê? Ah, essa palhacinha aí? Ah, que bom. E aí, aproveitou bastante o último dia?

– Sim, aproveitei. Descobri que eu estava fazendo tudo errado e a culpa era de vocês. Na verdade, a culpa era minha que queria ser igual a vocês; mas, enfim, o interessante foi ter visto como as coisas acontecem diferente daquilo que a gente espera. Eu pretendia ficar em casa hoje e acabei saindo com vocês; você queria que eu “aproveitasse” o Carnaval como nos outros dias e eu acabei me perdendo e passando o dia inteiro conversando com um rapaz legal. Eu achei que não ia acontecer nada diferente hoje, mas aconteceu e foi fantástico. Eu descobri que eu não preciso ser como vocês para me divertir também!

– Ahhm… É, Derpina, Carnaval é isso mesmo, todo dia acontecem coisas interessantes! Ano que vem tem mais!

– É… boa noite!

* * *

É Carnaval de novo. Derpina abre o guarda-roupa e pega a sua fantasia de Colombina. Dá os últimos retoques na maquiagem. A campanhia toca e ela se prepara para sair. Na porta, um rapaz está com uma fantasia muito parecida com a dela. Os dois se abraçam e saem juntos. Derpina quase não encontra as amigas que saíam com ela nos carnavais passados! Com Pierrot, no entanto, ela nunca mais deixou de sair.

Sobre o Carnaval III: o cilício e a fantasia

A despeito de tudo o que já falamos sobre o Carnaval, permanece o fato incontestável de que a festa concreta é uma ocasião de pecado para inúmeras pessoas; para além de quaisquer floreios de retórica que possam ser usados para compôr a elegia do período, o dado factual é que, no nosso Brasil do século XXI, Deus Nosso Senhor é ofendido durante estes quatro dias de um modo particularmente intenso. Isto posto, não seria melhor dedicar o Carnaval para rezar em desagravo? Não é uma exigência da caridade o sacrifício da alegria – ainda que a lícita! – para reparar (um mínimo que seja!) as ofensas feitas ao Todo-Poderoso durante este período?

Nem falamos sobre o dever de não pecar no Carnaval, pois este é óbvio. Como já dito e repetido, ninguém tem autorização para pecar ou para colocar-se desnecessariamente em ocasião de pecado, nem no Carnaval e nem em nenhuma época do ano. Mas nos referimos, aqui, àquela alegria lícita à qual todo mundo pode se permitir, àquela justa recreação que, em si, não tem nada de pecado. Não seria uma coisa boa abster-se desta alegria – lícita, repitamos, porque dos prazeres ilícitos todo mundo está obrigado a fugir – em desagravo pelos pecados cometidos no Carnaval?

Uma coisa boa sem dúvidas é. Não há quem o negue: é claro que é uma coisa boa passar o Carnaval, p.ex., em um retiro de oração ou em constantes visitas a Nosso Senhor no Sacrário. É claro que é uma coisa muito boa até mesmo ficar em casa, recolhido e em silêncio, quando se poderia estar confraternizando com amigos – e oferecer isto pela conversão dos pecadores. O que nós negamos é que isto seja uma coisa obrigatória para todo aquele que pretende ser cristão verdadeiro.

Entre as “frases dos santos” que as pessoas gostam de citar para demonizar o Carnaval está uma passagem de uma santa cujo nome eu não me recordo agora. A santa, diz-se, passava o Carnaval inteiro em oração diante de Nosso Senhor Sacramentado para implorar o perdão de Deus pelos pecados cometidos durante estes dias. Sim, a passagem é muito forte e é muito bonita. Sim, é verdadeiramente admirável que a mulher tenha se colocado de joelhos diante do Sacrário para rezar ao Altíssimo em desagravo. Eu sem dúvidas concordo que tal atitude é extremamente meritória e muito agrada a Nosso Senhor.

A questão, contudo, é que as pessoas são diferentes e cada uma tem um (chamemo-lo assim) “carisma específico”. É sem dúvidas uma coisa muito boa, muito santa e muito agradável a Deus, por exemplo, dar todos os seus bens aos pobres e fazer-se frade mendicante, levando uma vida de penúria e de entrega completa ao anúncio do Evangelho. É uma coisa belíssima! Quem, no entanto, ousará dizer que todo mundo está obrigado a vender todos os seus bens e levar uma vida de mendicância para poder salvar a própria alma?! Quem ousará dizer que isto é uma exigência do Evangelho da qual ninguém se pode furtar?

Vem-me à memória a passagem dos Atos dos Apóstolos, quando São Lucas fala sobre os primeiros discípulos que não tinham posses, sendo todas as coisas comuns entre eles. E a passagem, imediatamente subseqüente, de Ananias que mentiu a respeito do preço da venda de um campo: veio entregar aos Apóstolos menos do que efetivamente tinha obtido na venda. São Pedro fulminou: acaso tu não poderias ter mantido o teu campo para ti? Acaso estavas obrigado a vendê-lo?

A mesma passagem, mutatis mutandis, meio que ressoa nos meus ouvidos sempre que eu vejo alguém falar sobre a santa que passava os seus dias de Carnaval rezando em desagravo pelos pecados cometidos nesta época. Provavelmente ela era uma religiosa contemplativa; no entanto, as pessoas que gostam de citar a vida dela para condenar o Carnaval não fazem (e nem defendem que se faça) nem 10% daquilo que uma monja reclusa faz (ou fazia na época dela)! Por qual misterioso motivo a única parte da hagiografia de Santa Santa Teresa dos Andes (ou qualquer outra) que é apresentada como um imperativo categórico cristão consiste, precisamente, na adoração em desagravo durante os dias de Carnaval?

Houve quem dissesse que os cristãos têm, sim, o dever de colocarem em comum os seus bens, abolindo o direito à propriedade privada: trata-se exatamente da Teologia da Libertação. Aquilo que era mérito passa a ser uma inaceitável imposição que, aliás, de tão diabólica anula até mesmo o mérito que havia na pobreza voluntária. Vejo algo de muito parecido no discurso que eleva a penitência praticada no Carnaval ao patamar de exigência da vida cristã. Aquilo que era belo – belíssimo! – transforma-se em uma reles exigência à qual todos estão obrigados: aquilo que era um gesto extraordinário de amor a Deus transforma-se em uma obrigação corriqueira. A imposição da virtude não pode ser jamais virtuosa. Só há mérito em Ananias depositar o valor da venda do seu campo aos pés dos Apóstolos se considerarmos que ele pode perfeitamente dispôr do campo como melhor lhe aprouver – inclusive o mantendo. Só é admirável que os santos tenham passado os seus carnavais em penitência se for lícito aos cristãos brincarem-no de modo sadio.

Podem dizer que é melhor rezar, que a penitência em desagravo agrada mais a Deus, que o sacrifício durante os dias do Carnaval pode dar muitos frutos – tudo isto é verdadeiro. Concordo até mesmo facilmente que é mais meritório passar o Carnaval de joelhos dobrados diante da Santíssima Eucaristia do que atravessá-lo entre passos lentos de frevo atrás dos blocos líricos. Mas, digam o que disserem os igualitaristas dos nossos dias, nem todo mundo é chamado ao mesmo grau de santidade e nem todo mérito é igualmente e por princípio acessível a todo mundo. Quem puder passar o Carnaval rezando em desagravo, faça-o: faz muitíssimo bem! Mas que ninguém se obrigue (ou seja obrigado) a isso. E quem estiver de cilício durante estes dias, lembre-se de oferecê-lo um pouco também pelos outros que estamos de fantasia: não por conta do rosto pintado ou da camisa colorida, mas por nossos outros inumeráveis pecados. Pois, por debaixo da fantasia ou do cilício, a verdade é que pecadores todos somos e todos precisamos de orações.