Hoje, voltando para casa, eu ouvia na CBN os apresentadores comentarem sobre uma mulher que roubou um trem na Suécia que, conduzido em alta velocidade, terminou descarrilhando e se chocando contra uma casa. E, para mim, o mais surpreendente foi o comentário do repórter: segundo ele, não se sabia ainda como a mulher – de vinte anos – conseguira as chaves do trem.
Ora, parece-me um sinal de que alguma coisa está profundamente errada quando a curiosidade humana, diante de um fato insólito, direciona-se para aquilo que é mais banal e corriqueiro, e não para o que é curioso e extraordinário. O grande mistério por detrás de uma jovem sueca que rouba um trem não está nos artifícios por ela empregados para obter a chave da locomotiva: a primeira óbvia pergunta instigante a se fazer aqui é por que raios alguém quereria roubar um trem! Diante da profunda inquietude desta indagação, chega a ser obsceno silenciá-la com uma trivialidade sobre roubos de chaves. Afinal de contas, chaves são roubadas todos os dias: as estranhas razões que levam alguém a roubar um trem é que constituem, aqui, o fato fora do comum que é digno de nossa atenção. Como alguém o fez é somente um detalhe, profundamente insignificante diante da terrível questão sobre o porquê disso ter sido feito. E se as pessoas não têm interesse em questionar o porquê das coisas nem mesmo diante de um fato extraordinário como este, acaso poderão perguntá-lo a respeito dos triviais?
Não creio ser exagerado alertar para os riscos de uma certa atrofia mental provocada por atitudes assim. E temo que isso não tenha sido um simples deslize do repórter, mas muito pelo contrário: infelizmente, penso que seja um tipo de condicionamento intelectual, ao qual as pessoas são (até involuntariamente) levadas por conta da filosofia moderna que, como ar poluído, respiram sem disso se aperceberem.
Durante séculos, os filósofos se perguntaram sobre o porquê das coisas. Com a advento da ciência moderna, estas questões foram degredadas para os obscuros reinos da Metafísica, tanto mais irrelevantes quanto mais deslumbrados os intelectuais ficavam com as respostas que obtinham sobre como as coisas funcionavam. Até que o desinteresse degenerou em ignorância e, hoje, o pensamento filosófico dominante (e, por extensão, o raciocínio ordinário das pessoas comuns) muitas vezes não é sequer capaz de formular uma questão sobre por que algo é de tal ou qual maneira.
Com este texto não se quer, absolutamente, desmerecer o conhecimento sobre os modos como as coisas se operam. É claro que entender as causas materiais que produzem os efeitos que observamos no mundo é da mais alta importância: é isso que nos permite prever, evitar ou provocar uma enorme variedade de coisas, e esses conhecimentos são absolutamente fundamentais para a nossa existência no universo. Isso não está em discussão. O ponto é que direcionar unilateralmente a inteligência humana para a investigação sobre como as coisas funcionam é contrair uma terrível estreiteza intelectual, cuja conseqüência menos dramática é se deparar com uma jovem dirigindo desgovernadamente um trem roubado e não ser capaz de fazer nenhuma pergunta mais interessante do que “e como ela fez isso?”.
Li há muito tempo um certo texto do Gustavo Corção dirigido contra um filósofo de nome engraçado que afirmara ter Dante errado ao dizer, no final do “Paraíso”, que é o «amor que move o sol e as outras estrelas». Lembro-me de que à época julguei isso uma polêmica profundamente vazia; mas hoje eu vejo a importância do encarniçado debate então conduzido com tanto denodo pelo famoso articulista católico. Porque confundir os “porquês” com os “comos”, as razões profundas com as causas materiais, é uma infame agressão à razão humana, é uma terrível confusão intelectual que – quando menos, por amor à verdade – cumpre ser desfeita.
Afinal, sem certos conhecimentos corre-se o risco de ter muitas informações e, simultaneamente, não entender nada de realmente importante. É como se a uma criança que perguntasse por que aquele móvel grande da sala faz “tic-tac” o pai começasse a falar sobre movimentos pendulares e mecânica de engrenagens, quando na verdade o que ela precisava saber era “porque ele marca o tempo, e papai precisa saber as horas”. Depois é possível falar em engrenagens e pêndulos, que é como os relógios funcionam; mas é profundamente estúpido dedicar-se com afinco às minúcias da relojoaria antes de sedimentar o conhecimento de que os relógios existem porque as pessoas querem saber que horas são. E, pela mesma razão, achar que o mecanismo do relógio é mais relevante do que o fato de que ele serve para ver as horas denota uma grave deficiência intelectual, que é dever de justiça apontar e tentar corrigir.
Imagine: você vai a uma premiação de Prêmio Nobel de Medicina (cura da AIDS) e pergunta ao premiado: Onde você comprou essa abotoadiura de ouro? A banalização de tudo é fruto do espírito de renegação do que importa, da fuga de responsabilidades, da incapacidade de planejar as coisas além do minuto seguinte. Não há um encadeamento possível de fatores e fatalidades na cabeça das pessoas, hoje em dia. Isso deve-se à confluência de imagens traumáticas que faz os cérebros humanos criar uma realidade paralela diante dos olhos. Os cérebros se protegem por mecanismos de censura e rejeitam a análise de quaisquer fatos que já saturam nossas mentes de forma traumática!
A isso segue-se um estado de histeria coletiva, de paranoia, de sensacionalismos ora abjetos, ora bizarros! Os olhos mostram a realidade insuflada pela mídia e a mente rejeita aquilo, não mais por ignorância, mas como único jeito de não ENLOUQUECER!
Apenas conjecturas minhas, sem nenhuma referência científica, mas…