Ao contrário do que possa parecer à nossa experiência de mundo mais imediata, a escravidão não é uma questão racial. Na verdade, ela não tem nada a ver com raça, e é apenas o nosso provincialismo histórico que nos faz pensar diferente disso. Se é verdade que aqui na América os negros foram escravizados, não é menos verdade que soubemos nos utilizar, também e sem nenhum preconceito, de mão-de-obra escrava indígena. Ao mesmo tempo, os índios do Novo Mundo escravizavam outros índios e as tribos negras africanas escravizavam outros negros (e os vendiam aos brancos traficantes de escravos – isso quando não escravizavam brancos também). Antes disso, na Europa medieval, os mouros escravizavam os cristãos e, estes últimos, os mouros. Ainda antes, os judeus foram escravizados no Egito dos Faraós. E para não parecer que os caucasianos formam a única odiosa raça que neste jogo de forças sempre esteve em confortáveis posições senhoriais, lembro que nem mesmo os povos da Escandinávia, com seus cabelos loiros e belos olhos azuis, foram poupados dos trabalhos escravos que os Vikings lhes impuseram.
No meu texto de ontem eu abri um parêntese para dizer que o próprio instituto da escravidão, analisado sem anacronismos, significou um importante avanço no reconhecimento da dignidade humana. Isto porque, durante muito tempo, a (única) opção à escravidão era a morte pura e simples. Para que se entenda isso é preciso abrir mão da mentalidade escravocrata que nos foi legada pelos versos de Castro Alves; no geral, reduzia-se alguém à condição de escravo não como o caçador que vai à selva capturar um animal para, domesticando-o, colocá-lo a seu serviço, mas sim como uma punição imposta a um outro ser humano – justa ou injustamente – por conta de algo que ele havia feito.
Assim, por exemplo, na Roma Antiga havia a escravidão por dívidas: se alguém não fosse capaz de saldá-las, deveria tornar-se escravo dos seus credores como pagamento pelos débitos contraídos. No Antigo Testamento, todas as vezes em que o Senhor autoriza Israel a escravizar alguém, trata-se sempre de prisioneiros de guerra ou povos conquistados. Esta última modalidade de escravidão, aliás, foi praticamente uma constante na história da humanidade, sendo praticada pela virtual totalidade dos povos e culturas. Se hoje a prática nos parece – graças a Deus! – bárbara e incompreensível, é geralmente porque nos falta horizonte histórico para contemplá-la como se exige a quem pretenda colocar a compreensão do comportamento humano acima do julgamento sumário dele.
Parece-me que está bem definida a escravidão se, pelo termo, entendemos a coação da liberdade de um homem ao serviço de um terceiro. Se esta coação se dá por meio de força física ou de ameaça, se ela é temporária ou permanente, se ela decorre de punição legal ou de capricho, tudo isso me parece fugir ao essencial. Grosso modo, um escravo é isto: é um ser humano que eu constranjo a meu serviço. Cabe perguntar por qual motivo alguém poderia, em consciência, impôr semelhante fardo a um seu semelhante. Ou ainda, se existe – mesmo em abstrato – uma razão que possa, ainda que remotamente, justificar tão cruel e repugnante imposição.
Resistamos à tentação de abordar o problema unicamente sob a ótica do Condoreirismo! Porque aqui, de fato, não cabe discussão alguma. Se à pergunta sobre “quem são estes desgraçados / que não encontram em vós / mais que o rir calmo da turba / que excita a fúria do algoz” a gente responde com a grandiloqüência da Musa que Castro Alves chama a depôr n’O Navio Negreiro, então realmente não há nada que se possa fazer aqui a não ser condenar, em absoluto e com a mais apaixonada veemência, este tratamento vil e desprezível ao qual foram desgraçada e incompreensivelmente constrangidas multidões de seres humanos ao longo da história humana. Se os fatos são aqueles colocados no Canto V da obra-prima do poeta, então não há desculpas possíveis. Se os escravos viviam “ontem, plena liberdade, / a vontade por poder” e “hoje, cum’lo de maldade, / nem são livres pra morrer”, então é impossível perdoar os crimes dos que escravizaram e dos que permitiram a escravidão.
Mas as coisas não eram rigorosamente assim na época do Brasil Império e nem muito menos ao longo da história da humanidade. Ir à caça de seres humanos inocentes, livres e soberanos para reduzi-los à escravidão é sem dúvidas uma coisa abominável. Acontece que quando os israelitas venciam Amalec no deserto e só o que podiam fazer era largar os derrotados ao frio, à fome e às feras, passá-los a fio de espada afigurava-se como uma obra de misericórdia. Acontece que quando os ibéricos retomavam as terras dos seus antepassados e se viam diante daqueles que por séculos os haviam saqueado, matado seus filhos e estuprado as suas mulheres, resistir à tentação de massacrá-los era magnânima benevolência e conservar-lhes a vida enquanto escravos era o supra-sumo da caridade.
Historicamente, a escravidão não se define por caçar seres humanos inocentes para transformá-los em alimária particular. No geral, como foi dito, tratava-se de uma punição de guerra ou por supostos crimes cometidos, sobre a qual devemos ser um pouco reticentes em emitir julgamentos peremptórios. É degradante? Sem dúvidas; mas não existe nenhuma pena humana que não degrade em alguma medida o ser humano. Tenho certeza de que, daqui a alguns séculos, leremos “Estação Carandiru” e nos perguntaremos como foi possível que a sociedade tivesse permanecido inerte diante da infâmia do sistema prisional brasileiro do século XX. E tomara que não sejamos então vítimas da mesma incompreensão que, hoje, temos o mau hábito de devotar aos nossos antepassados.
E quanto ao Cristianismo? Ele foi fundamental para que chegássemos ao elevado patamar moral contemporâneo de cuja altura, hoje, os anti-clericais sentem-se no direito de escarnecer da Igreja. A doutrina da igualdade essencial entre os homens – com São Paulo afirmando taxativamente que «[j]á não há judeu nem grego, nem escravo nem livre, nem homem nem mulher, pois todos vós sois um em Cristo Jesus» (Gl 3, 28) – é a verdadeira revolução na história do pensamento humano e na obrigação moral que os homens agora passam a ter para com os seus semelhantes. É somente a partir daqui que podemos falar propriamente em dignidade humana – naquela que não conhece sexo, raça ou condição social, mas que compete a todos os homens e a cada um deles em particular.
Autorizou-se ainda assim a escravidão? É porque, em si, esta punição privativa de liberdade, nos moldes em que passou a ser entendida, não é intrinsecamente má. Após o surgimento da Igreja, ela não mais significava uma diminuição ontológica do ser humano tornado escravo, uma sua coisificação; mas, ao contrário, era uma forma (ainda) socialmente aceita de fazer um indivíduo pagar pelas próprias dívidas ou pelas de outrem (v.g. dos seus pais ou do seu povo). Com o Cristianismo, mesmo os escravos são seres humanos que como tais devem ser tratados, e esta é a novidade radical do Evangelho em relação à escravidão pagã. Se o Paterfamilias romano tinha vitae necisque potestas – poder de vida e de morte – sobre seus escravos, seus filhos e até sua esposa, o mesmo não se pode jamais dizer do cristão sobre sua esposa, seus filhos ou mesmo seus escravos. Se isso nos parece pouco, tal é um tributo que pagamos ao nosso tempo – pelo qual devemos ser gratos e para cuja existência ser possível foi necessário que os influxos benéficos do Cristianismo o engendrassem (por vezes silenciosamente…) nas almas por séculos a fio.
É claro que se pode dizer que a escravidão é um castigo desproporcional, que não está em conformidade com a dignidade humana, que é indigno de povos civilizados, e eu serei o primeiro a concordar: tudo isso deve ser dito! A questão não é contudo sobre idealismos abstratos, e sim sobre o drama da história da humanidade. Transformar a ação dos cristãos ao longo dos séculos num lacônico “apoio à escravidão” é uma inverdade histórica e uma injustiça. A mensagem cristã ressignificou a forma como os homens viam seus escravos, impôs-lhes exigências até então inconcebíveis para com eles, reduziu drasticamente a abrangência da escravidão e, por fim, aboliu-a por completo! Sentar-se diante de um computador no século XXI e reclamar que isso demorou demasiado para ser feito é padecer de graves preconceitos anacrônicos, que em nada nos tornam melhores do que os que nos precederam.
Jorge, texto digno dos melhores historiadores! Pode figurar lado a lado com o do grande medievalista Prof. Dr. Ricardo da Costa.
Repriso este excerto, que muito serviria de lição de história a um bocado de gente metida por aí:
“A questão não é contudo sobre idealismos abstratos, e sim sobre o drama da história da humanidade. Transformar a ação dos cristãos ao longo dos séculos num lacônico “apoio à escravidão” é uma inverdade histórica e uma injustiça. A mensagem cristã ressignificou a forma como os homens viam seus escravos, impôs-lhes exigências até então inconcebíveis para com eles, reduziu drasticamente a abrangência da escravidão e, por fim, aboliu-a por completo!”
Perfeita a objeção ao anacronismo, um dos piores e talvez o mais comum vício de muitos na abordagem do passado.
Como é de conhecimento geral, entre 1500 e 1850 foram escravizados pelos europeus cerca de 8 milhões de Africanos. Poucos, no entanto, sabem que, nesse mesmo período, cerca de 2 ou 3 milhões de europeus foram escravizados pelos mulçumanos.
Durante séculos, os povos da orla européia do mediterrâneo viviam no terror de serem assaltados por piratas mulçumanos. Numa uma única operação noturna bem sucedida, uma aldeia inteira de pescadores sicilianos, por exemplo, era reduzida a escravidão. As mulheres jovens iam para os haréns e os meninos eram transformados em eunucos.
Obrigada, Jorge!