[Publico interessante tradução de uma resenha publicada na revista «Nova et Vetera» a respeito de alegadas “mudanças” no ensino moral da Igreja ao longo dos séculos: em temas como juros, escravidão, indissolubilidade matrimonial e liberdade religiosa, mas é fácil ver que coisas análogas podem ser ditas para outros temas polêmicos – como as greves, por exemplo. A tradução foi-me enviada por um amigo, ao qual agradeço.]
Uma Avaliação da Obra de John T. Noonan
“A Church that Can and Cannot Change”.
Por: Lawrence J. WELCH, Ph.D.,
Professor de Teologia Sistemática.
[“John T. Noonan’s A Church that Can and Cannot Change: An Evaluation.”
In: Rev. Nova et Vetera, vol. 4, fasc. 3, verão de 2006, págs. 697-708.
Cfr. “docwelch.net/noonanRevforweb.pdf”.]
[Introdução: o autor e sua tese]
John T. Noonan é um juiz federal do Tribunal de Recurso dos Estados Unidos e estudioso bastante conhecido por seu trabalho na história da ética. A presente obra aborda o problema do desenvolvimento e mudança doutrinal com relação à escravidão, à usura, à liberdade religiosa e à autoridade do Papa de dissolver matrimônios naturais. O tema do desenvolvimento doutrinal e da mudança doutrinal já faz tempo que interessa a Noonan, remontando até 1947, quando ele estudou a questão da liberdade religiosa, e a uma dissertação de filosofia de 1951 sobre a usura. O magistrado Noonan é conhecido também pelo tempo em que fez parte da sedizente Pontifícia Comissão para o Controle de Natalidade, quando ele pôs-se ao lado dos que defendiam uma mudança e reversão no ensinamento da Igreja sobre a contracepção.
O título do livre presente [“Uma Igreja que Pode e Não Pode Mudar”] exprime a convicção de Noonan de que, embora a Igreja não possa alargar nem reduzir o depósito da fé confiado a ela, a Igreja poderia mudar em “continuidade com suas raízes” (7). É inegável que a doutrina se desenvolve. O argumento central do livro de Noonan parece ser que o desenvolvimento doutrinal em muitos casos envolveria uma completa reversão do prévio ensinamento da Igreja, que estava equivocado e era errôneo. Noonan julga que o desenvolvimento é dirigido pela regra da fé. Ele explica essa regra da fé com a ajuda de Agostinho, que afirmou que o verdadeiro entendimento da revelação divina é do tipo que edificará o “duplo amor de Deus e do próximo” (222). O desenvolvimento emerge da experiência humana que é aprofundada pela fé. A mudança social e a identificação com a experiência do “do outro” permitem aos cristãos superar seus erros morais. Escravidão, liberdade religiosa, usura e divórcio (aplicado a matrimônios não-sacramentais) serviriam todos de exemplo.
[A Igreja e a escravidão]
Os capítulos que tratam da Igreja e da escravidão ocupam mais de cinquenta por cento do livro. Noonan argumenta que, ao longo da maior parte de sua história, a Igreja aceitou a escravidão como uma instituição que era simplesmente parte da sociedade. Embora o Novo Testamento não tenha confrontado a instituição da escravidão, Noonan acredita, corretamente, que o NT estipulou os paradigmas que acabaram por solapá-la ao longo de um extenso período de tempo. O mandamento de amar ao próximo como a si mesmo, a injunção de Paulo a tratar o escravo com amor (Epístola a Filemon) e sua proclamação de que em Cristo Jesus não há escravo nem livre, foram todas coisas que trabalharam contra a aceitabilidade moral da escravidão. Sem embargo, cristãos, e mesmo alguns papas, foram donos de escravos. Nenhum Padre da Igreja, nenhum Doutor da Igreja, nenhum Papa e nenhum decreto conciliar da Igreja jamais fez uma condenação completa que abrangesse toda e qualquer escravidão. Noonan reconhece, sim, que a Igreja de fato trabalhou para suavizar os efeitos da escravidão de alguns modos. A Igreja defendeu certos direitos para os escravos, e os Papas proibiram a escravização das populações nativas da América. Algumas vezes, segundo Noonan, a Igreja teve de ser incitada a denunciar os males conexos com a escravidão. A história por trás da bula papal de 1839 In Supremo Apostolatus fastigioi (*), na qual Gregório XVI condenou o comércio de escravos africano, serve como exemplo principal. Todas essas coisas, porém, não chegaram a ser uma condenação direta e total da escravidão como instituição.
[(*) Nota do Tradutor: Este importante documento do Magistério da Igreja pode ser encontrado na íntegra, em português, nas págs. 94-98 do livro A Igreja Católica em face da escravidão (São Paulo, 1988), trad. br. por José G. M. Orsini dos capítulos XIV-XIX da obra-prima do filósofo católico espanhol Jaime Balmes (1810-1848), El Protestantismo comparado con el Catolicismo en sus relaciones con la civilización Europea; existe também online outra tradução no site da Associação Montfort.]
É questionável se Noonan faz justiça completamente à história dos esforços da Igreja em mitigar os males da escravidão. Algo do tratamento que ele dá aos materiais históricos parece, por vezes, destacado e achatado. Por exemplo, tome-se o relato feito por Noonan dos eventos em torno da condenação, pelo Papa Gregório XVI em 1839, do comércio de escravos (104-108). Na narrativa da história por Noonan, foi necessária a exortação da Grã-Bretanha protestante, para incitar Gregório XVI a condenar o comércio. Será que os apelos do governo britânico foram a única razão que moveu o Papa a repudiar o cruel comércio de africanos por todo o Atlântico? Por que o Papa foi tão receptivo ao pedido britânico? O relato de Noonan deixa essas importantes questões sem resposta. Ele observa que um pedido anterior, em 1822, de denúncia papal do comércio de escravos foi malsucedido. A Congregação para os Negócios Eclesiásticos Extraordinários, composta principalmente de cardeais que aconselhavam o Papa, relatou que, embora o comércio causasse sofrimento, todavia a escravidão não era contrária à lei natural, e que o Antigo Testamento aprovou-a por princípio. Mas, em 1839, de acordo com Noonan, o mesmo corpo de cardeais-consultores considerou outro pedido britânico de condenação do comércio de escravos africano. A Cúria Romana preparou o estado da questão para os consultores papais reunidos e relatou a eles que “‘os mais competentes dentre os autores e teólogos’ refutaram os argumentos em favor da escravidão e do comércio de escravos’” (106). Os cardeais-consultores aceitaram a declaração do problema pela Cúria e, desta vez, conta Noonan, os consultores prosseguiram assistindo o Papa na formulação de uma proibição do comércio de escravos. Mas Noonan deixa as perguntas óbvias sem resposta. Por que os consultores papais em 1839 deram ao Papa uma conclusão completamente oposta, sobre o comércio, daquela que fora dada em 1822? O que estava se passando no pensamento católico na época, que levou os consultores a estas diferentes conclusões num intervalo de somente 17 anos? O leitor é deixado a ver navios, se indagando sozinho sobre esta lacuna da história e sobre a importância dela para o entendimento dos bastidores da bula papal que condenou o comércio de escravos.
O importante para Noonan, ao fim e ao cabo, é mostrar que no caso da escravidão o que antes fora considerado não pecaminoso teria sido mais tarde declarado intrinsecamente mau, ou seja, sempre e em toda parte mau. Ele contrasta os pensamentos de John Henry Newman, autoridade preeminente sobre desenvolvimento da doutrina, com o ensinamento papal do Papa João Paulo II. Newman comentou certa vez uma palestra proferida por William Allies, um católico converso, que defendia que a escravidão fosse intrinsecamente má. Newman respondeu que, se bem que a escravidão é má e deve desaparecer, ela não era intrinsecamente má. Embora má, a escravidão nem sempre e em toda parte era má. Nem toda forma dela era má per se. Por mais ojeriza que ele tivesse pela escravidão, Newman explicou que os escritores inspirados das Escrituras, especialmente Paulo, impediam-no de declarar intrinsecamente má a escravidão. Paulo não disse a Filemon: ‘Libertai todos os vossos escravos imediatamente.’ Pelo contrário, ele deixou a escravidão para o lento desenrolar dos princípios cristãos.
[A dificuldade apresentada por João Paulo II
e a Gaudium et Spes]
Em contrapartida, o Papa João Paulo ensinou que toda escravidão era intrinsecamente má. Noonan argumenta que essa mudança na doutrina aconteceu primeiramente em 1993 na encíclica Veritatis Splendor, que incluiu a escravidão numa lista de males sociais que se diz serem intrinsecamente mais. Ele aponta também para um discurso que o Papa proferiu no Senegal, na ilha de Goreia, na sede da infame “Casa dos Escravos”, onde ele denunciou a escravidão e o comércio de escravos. Ali o papa disse: “É oportuno que seja confessado, com toda a verdade e humildade, esse pecado do homem contra Deus.” Noonan observa que o que não foi mencionado nessa confissão foi o quão recentemente esse pecado havia sido descoberto. Mas o leitor não é alertado para o inteiro contexto do discurso do papa, cujo tom frisa a continuidade com uma declaração de um dos predecessores do Papa João Paulo. O papa cita o Papa Pio II, que em epístola a um missionário chamou o tratamento dado aos negros de “crime enorme”, magnum scelus. Visto no contexto, o discurso do Papa João Paulo na Goreia não é uma espécie de reviravolta dramática do ensinamento anterior da Igreja. Não há nada no discurso do papa que indique que ele via a si próprio como fazendo uma mudança na doutrina católica.
Noonan tem um argumento mais forte a partir do que é ensinado na Veritatis Splendor, 80. O argumento dele pode aparentar, à primeira vista, ser irrefutável: o Papa João Paulo fez aquilo que o prévio ensinamento da Igreja não fez, e que os teólogos, como Newman, se recusaram a dizer: a escravidão é intrinsecamente má, sempre e por toda parte má. Logo, o Papa reverteu o prévio ensinamento da Igreja. O argumento de Noonan aqui parece ser muito forte. Mas será mesmo? Será que o Papa pretendeu condenar toda forma de escravidão per se? Será que ele realmente quis corrigir o ensinamento de Paulo, dos Padres da Igreja e dos Papas anteriores? Será que a Veritatis Splendor realmente foi uma tal revogação do ensinamento anterior?
Para começar, é crucial determinar o que o papa quis dizer com escravidão (servitus) na Veritatis Splendor, 80. Que significado e escopo ele deu a essa palavra? Historicamente, existiu o tipo de escravidão de sujeição absolta, que priva as pessoas humanas de todos os direitos pessoais. Existiram outras formas de escravidão, que privaram pessoas de muitos, mas não de todos os direitos pessoais, e existiram muitas outras formas menores de servidão que, hoje, poderiam ser consideradas como equivalentes à escravidão, para fins práticos. Pretendeu o papa que a palavra servitus englobasse toda e qualquer forma de escravidão que apareceu na história, quando ele a deu como exemplo de algo intrinsecamente mau? Os leitores à procura de respostas a essas questões ficarão desapontados, pois Noonan não presta atenção a elas, e são importantes para a interpretação do ensinamento da Veritatis Splendor. Ele pressupõe que o significado do termo servitus na encíclica seja óbvio. Acontece, porém, que o papa usou o termo do mesmo jeito genérico que Noonan reconhece ter sido o da Gaudium et Spes, 27, quando ela incluiu a escravidão na sua lista de males sociais vergonhosos e ofensivos à dignidade humana. Noonan admite que a Gaudium et Spes, 27, usou a palavra servitutis (sic) “sem definição ou elaboração, nem explicação” (120). Só que isso se aplica à Veritatis Splendor também, pois quando a encíclica menciona a servitus como estando entre os males sociais que são intrinsecamente maus, ela cita verbatim a lista da Gaudium et Spes, 27! Esse problema sozinho já deveria ter levado Noonan a ter cautela em concluir que o Papa quisesse declarar que a escravidão em todas as suas formas é intrinsecamente má e, destarte, tencionasse corrigir seus predecessores, muitos Padres da Igreja e autores sacros como Paulo. Tais conclusões parecem temerárias, sem consideração alguma do que foi que o papa quis que servitus significasse, especialmente à luz do fato de que ele a tirou verbatim da Gaudium et Spes, que empregou a palavra sem precisão.
Há outras dificuldades na interpretação também. Por exemplo, Veritatis Splendor, 80, condena a deportação como intrinsecamente má. Se o Papa quisesse condenar toda e qualquer forma de escravidão como intrinsecamente má, então presumivelmente ele teria querido condenar toda e qualquer forma de deportação, igualmente. Devemos crer que é intrinsecamente mau que um Estado deporte estrangeiros que sejam uma ameaça para a sua segurança nacional? Seguramente que o pontífice deixou espaço para algumas distinções e qualificações, para as quais Noonan faz vistas grossas. Nada disso pretende dizer que não haja algo de novo no que o papa ensinou na Veritatis Splendor sobre a escravidão, ou que ele não tenha querido dizer, no mínimo, que certas formas dela são más per se. Seja qual for o desenvolvimento que haja na Veritatis Splendor, 80, Noonan não demonstrou que seja o tipo de revolução na doutrina moral católica pela qual um Papa revertesse completamente ensinamentos errôneos de seus predecessores, dos Santos Padres e dos escritores bíblicos também.
[Uma analogia indevida,
com um objetivo torpe]
O que parece é que Noonan pretende dizer que, se os ensinamentos da Igreja numa área, como a escravidão, podem ser revertidos, eles podem ser revertidos noutras áreas também. Numa passagem sintomática, Noonan repreende o finado John Ford, SJ, o qual, junto de Gerald Kelly, publicou um manual de teologia moral que condenava a “escravidão-mercadoria” (“chattel slavery”) sem perceber, segundo Noonan, que uma tal condenação era uma “mutação enorme” na doutrina moral (117). Ford teria sido incoerente, por admitir uma mudança no ensinamento da Igreja sobre a escravidão, mas sem se dispor a admitir nenhuma possibilidade de desenvolvimento sobre a contracepção. O “desenvolvimento” que Noonan exige aqui, com relação à contracepção, só pode significar uma reversão do ensinamento tradicional da Igreja de que a contracepção é sempre má. O argumento de Noonan parece claro o bastante: a mudança no ensinamento da Igreja sobre a escravidão significaria que outras doutrinas morais, tais como a doutrina contra a contracepção, poderiam mudar ou ser revertidas também.
Há numerosos problemas com esse argumento. Ele é um exemplo do fracasso do livro de Noonan em fazer distinções importantes e em fazer justiça à complexidade do desenvolvimento da doutrina. Há uma grande diferença entre a história complexa do ensinamento da Igreja sobre a escravidão e o ensinamento dela sobre a contracepção. Para começar, em parte alguma Noonan mostra que a prévia aceitação da escravidão pela Igreja, como algo que se acreditava pertencer à estrutura da sociedade, fosse ensinamento definitivo da Igreja considerado irreversível. A doutrina da Igreja respondendo ao mal da contracepção, um mal que sempre envolve a rejeição do plano divino para o pacto matrimonial, é coisa inteiramente diferente e é clarissimamente ensinamento definitivo da Igreja, como o último pontificado assinalou em múltiplas ocasiões. Mesmo que se admitisse que o ensinamento da Igreja sobre a escravidão mudou para melhor, é também verdade que a anterior tolerância da escravidão pela Igreja e a falta de condenação total dela não excluíam a possibilidade de que a Igreja mais tarde a proibisse como pecaminosa — sobretudo, em vista do fato de que a Igreja a via como pena pelo pecado radicado na Queda de Adão e ensinou, com Paulo, que em Cristo ninguém é escravo. É defensável que a mudança e o desenvolvimento no ensinamento da Igreja tenha sido uma fidelidade maior a estes princípios. Nada haveria nem de remotamente semelhante a isto numa reversão do ensinamento da Igreja sobre a contracepção, que envolveria declarar, depois de ensinar durante muitos séculos o contrário, que a frustração intencional da capacidade procriadora humana no ato da relação sexual teria deixado de ser uma coisa que é sempre má.
[A condenação da usura pela Igreja]
Em três sóbrios capítulos Noonan faz uma apresentação justa e altamente informativa da interação entre a doutrina da Igreja sobre a usura e as novas formas de economia que emergiram no começo da idade moderna. Ele mostra como o ensinamento da Igreja sobre a usura foi adaptado para dar espaço a novas circunstâncias econômicas, para permitir a justa compensação pelo risco de perda de um empréstimo, para perdas incorridas na cobrança de um empréstimo e pelos custos associados às atividades bancárias. Noonan monta o argumento de que o desenvolvimento no ensinamento sobre a usura deveu-se não simplesmente a circunstâncias econômicas. O desenvolvimento deveu-se também às “mudanças nas análises feitas pelos teólogos e na aceitação, por eles, da experiência de outros seres humanos” (213). Noonan argumenta que o exemplo da usura demonstra que o desenvolvimento do ensinamento moral da Igreja realmente ocorre pela experiência humana que leva a uma compreensão melhor e mais aguda da natureza humana.
O caso da adaptação da doutrina sobre a usura às circunstâncias econômicas cambiantes e à experiência humana não parece equivaler a uma completa reversão da doutrina original. Afinal de contas, o ensinamento sobre a usura, embora estritamente interpretado, ainda permanece, como Noonan reconheceu em sua obra anterior. Os princípios morais católicos ainda proíbem taxas de juros injustas ou então exorbitantes. Ainda que se concedesse, em prol da argumentação, que a experiência humana levou a uma melhor compreensão da natureza humana, não se segue necessariamente disso que, portanto, a doutrina moral da Igreja sobre outras questões que envolvam a natureza humana esteja sujeita ao mesmo tipo de desenvolvimento. O exemplo da usura não nos dá razão para pensar que certos atos intrinsecamente maus como a contracepção sejam capazes de adaptação similar.
[O problema da liberdade religiosa
ensinada pelo Vaticano II]
Para Noonan, o tópico da liberdade religiosa e do ensinamento do Concílio Vaticano II na declaração Dignitatis Humanae serve como exemplo de como um concílio geral da Igreja rejeitou definitivamente cerca de 1.500 anos de seu ensinamento magisterial, bem como o pensamento de Agostinho e Aquino sobre a questão. Noonan argumenta que o Vaticano II afirmou que a liberdade de crença era um direito sagrado, mas não explicou como o ensinamento prévio, “a velha mensagem da intolerância”, pôde ser posto de lado por um Papa e um Concílio. A descontinuidade entre o ensinamento do Vaticano II e a prévia doutrina da Igreja é apresentada como radical. Ironicamente, nada enxergando além de uma total reversão da doutrina da Igreja, Noonan chega à mesma conclusão, se bem que por razões diferentes, do notório oponente da DH no Vaticano II, Marcel Lefebvre.
É certamente verdadeiro que a declaração DH de liberdade religiosa como direito da pessoa humana e seu reconhecimento de que a Igreja não deve esperar da maioria das sociedades políticas seculares modernas que elas lhe deem reconhecimento e privilégios especiais, foram coisas novas. Noonan, contudo, exagera a descontinuidade da DH com o ensinamento passado da Igreja. Há várias razões para pensar que o ensinamento do Vaticano II sobre a liberdade religiosa não tenha sido de completa descontinuidade com o prévio ensinamento da Igreja. É decepcionante que Noonan não as reconheça nem discuta, nos capítulos dele. Por exemplo, Noonan passa batido, em completo silêncio, pelos indícios na própria DH que mostram que os Padres conciliares não entendiam que o que eles estavam ensinando fosse o tipo de desenvolvimento que equivale a uma completa reversão dos antigos ensinamentos da Igreja. DH, 1, declara que “o concílio pretende desenvolver a doutrina dos papas recentes sobre os direitos invioláveis da pessoa humana e a ordem constitucional da sociedade.” Não haveria muito sentido em os Padres formularem a coisa assim, se tudo o que se vissem fazendo fosse, simplesmente, revertendo o ensinamento anterior da Igreja, e não adaptando e desenvolvendo algumas das implicações dos ensinamentos anteriores num contexto novo. Durante os debates no Concílio, Émile De Smedt, bispo de Bruges e porta-voz da comissão que compôs e editou o texto da DH, argumentou que o ensinamento dela era compatível com ensinamentos prévios da Igreja. Noonan não menciona que teólogos em grande número defenderam a DH como efetivamente possuidora de maior continuidade com a tradição da Igreja, contra aqueles que nada mais viam nela do que uma alteração na fé da Igreja. Até mesmo John Courtney Murray, que era da opinião de que a Igreja havia demorado para reconhecer a liberdade religiosa como princípio ético, pessoalmente e coletivamente, ainda argumentava que a DH fosse “um autêntico desenvolvimento da doutrina no sentido de Vicente de Lérins, ‘um autêntico progresso, e não uma mudança, da fé.’” Ele também sustentou que o Vaticano II pôs de lado “uma teoria mais antiga da tolerância civil em favor de uma nova doutrina da liberdade religiosa mais harmônica com a autêntica e mais plenamente entendida tradição da Igreja.”
A falta de qualquer menção desses importantes indícios em contrário da alegação de Noonan de que a DH foi uma reversão e rejeição sem rodeios do prévio ensinamento da Igreja (157) deixará mal informado o leitor não instruído. Segundo observaram comentadores posteriores, o que documentos tais como a Mirari Vos condenaram não foi a própria liberdade religiosa, mas um conceito filosófico específico e determinado de liberdade religiosa que estava atrelado ao relativismo e a um secularismo antirreligioso. Comentando sobre a necessidade que os teólogos têm de discernir cuidadosamente o processo de mudança através da continuidade, o Papa Bento XVI observou recentemente que a Igreja deve rejeitar uma visão que enxerga a liberdade religiosa como expressando a incapacidade da humanidade de descobrir a verdade. Uma visão dessas implica que o relativismo seja a norma para a sociedade. Há uma diferença enorme entre essa visão da liberdade religiosa e o entendimento que decorre da verdade de que a liberdade de crer tem de vir de dentro e não pode ser imposta de fora, ou uma visão que enxerga a liberdade religiosa como algo exigido pela coexistência humana pacífica. Diante desse pano de fundo, explicar o desenvolvimento do ensinamento da Igreja sobre a liberdade religiosa no Vaticano II principalmente em termos de reversão e rejeição do prévio ensinamento da Igreja não faz jus à tarefa com que se depara o teólogo.
[A dissolução de matrimônios não-sacramentais
vs. o divórcio moderno]
Em quatro capítulos Noonan trata da dissolução de matrimônios não-sacramentais pela Igreja com base no privilégio paulino e no privilégio petrino, em “favor da fé”. Para Noonan, a complexa história dos privilégios mostraria que houve desenvolvimento da doutrina da Igreja sobre o “divórcio” para os não-batizados. Diz-se que essa aceitação do divórcio revelaria um novo entendimento da lei natural e uma interpretação em vias de desenvolvimento do Novo Testamento (214). O magistrado Noonan argumenta que o ensinamento bíblico “O que Deus uniu, homem nenhum separe” parece não admitir exceção e abarcar todos os casos, mas que nenhuma regra ou fórmula é suficiente para “evitar que ela seja torcida ou contornada” (212). Paulo foi o primeiro a dobrá-la e a abrir uma exceção a ela, quando permitiu que uma pessoa convertida à fé se separasse de um cônjuge não batizado.
O modo de Noonan encarar o mandamento divino sobre o matrimônio e a interpretação deste dada por Paulo é demasiado legalista. Nada mudaria realmente para o matrimônio com a vinda de Cristo, exceto pela repetição de uma regra. Na consideração do ensinamento bíblico por Noonan, Cristo nada mais tem a dizer, nada mais tem a dar ao homem para o matrimônio. Nunca parece ocorrer a Noonan que Paulo, com seus intérpretes, tivesse boas razões para pensar que os matrimônios entre uma pessoa cristã e uma não-cristã, por um lado, e os matrimônios entre cristãos, por outro, são diferentes por causa de uma relação com Cristo. Há uma coisa nova que Cristo dá ao matrimônio. Noonan não considera que a vida nova em Cristo dá a graça que permite respeitar o mandamento. Nem, tampouco, lida ele jamais com a importância do modo como o vínculo matrimonial foi elevado, no matrimônio sacramental.
Noonan discute como a Igreja interpretou o texto de Paulo como fundamento para permitir que se recase o cônjuge que crê. Ele observa que a visão predominante dos teólogos em torno da época de Aquino era que o segundo matrimônio do converso, contraído como cristão, dissolvia o primeiro matrimônio, contraído antes do batismo. Ele nota que Aquino explicou que “o mais firme” dissolvia “o menos firme”. Noonan alega que, embora houvesse a doutrina de que o matrimônio é naturalmente indissolúvel, grandes teólogos não contestaram a exceção. Mas, na realidade, o pensamento dos teólogos, como Aquino, aprofundou bastante a explicação de como a Igreja podia dissolver matrimônios não-sacramentais e ainda continuar fiel ao ensinamento bíblico. Por exemplo, Aquino explicou que no batismo de um convertido havia uma espécie de morte, aparentada à morte natural, que efetivamente dissolvia o vínculo corpóreo do matrimônio natural. Quando um convertido é batizado, ele é regenerado e morre para sua vida anterior. Ele deixa de estar vinculado na vida dele àquelas coisas às quais ele estava vinculado na sua antiga vida, “dado que a geração de uma coisa é a corrupção de outra”. Um homem que é regenerado em Cristo “é, mesmo corporalmente, sepultado junto com Cristo na morte” e, assim, é libertado da obrigação de “pagar o débito matrimonial”, mesmo que o matrimônio natural tenha sido consumado. Aquino refere-se aqui ao vínculo corpóreo do matrimônio natural. Uma esposa só tem direito ao corpo do marido na medida em que ele tenha permanecido na vida em que ele se casara, dado que somente ao morrer o marido fica a esposa liberada da lei de seu esposo. (Romanos VII,3). Assim como os incréus (e também os crentes, a propósito) deixam de estar ligados a seu cônjuge após a morte natural, assim também um incréu que receba o batismo e morra em Cristo, deixa de estar ligado ao cônjuge incréu (Supl. Q. 59, a.4, ver também a resposta ad 2).
Sto. Tomás de Aquino, tal como Agostinho, conhecia uma diferença entre o vínculo natural e o vínculo sobrenatural do matrimônio. A diferença entre os vínculos encontrava-se na santidade deles e no que eles significavam. Sto. Tomás mostra como a Igreja entende que existe uma certa hierarquia de vínculos matrimoniais. Ele explicou que o matrimônio natural é imperfeito, e portanto “menos firme”, pois tem a ver somente com a perfeição da natureza, enquanto que o matrimônio sacramental é uma perfeição na graça (ST. Supl. Q.59, a.2). O matrimônio sacramental para Sto. Tomás, é claro, participa na unidade indissolúvel entre Cristo e sua Igreja. O matrimônio em Cristo vincula “mais firmemente”, porque é perfeito. “Ora, a ligação mais firme dissolve a mais fraca, se for contrária a ela” (ST Supl. Q.59, art.5, ad 1). É por esta distinção que Sto. Tomás pode falar não de divórcio, mas da dissolução de um matrimônio natural. A esta luz, o privilégio paulino pode ser visto como algo que está em completa continuidade com o mandamento divino, um mandamento trazido à perfeição e ao cumprimento em Cristo e na união d’Ele com a Igreja. A dissolução do vínculo natural entre uma pessoa não-batizada e uma pessoa recém-batizada é dada em vista da possibilidade de a pessoa fiel batizada entrar na perfeição de um matrimônio sacramental com outra pessoa que crê.
Todo esse tópico do poder que o Papa tem de dissolver matrimônios não-sacramentais, mesmo entre dois cônjuges não-batizados, é um tema complexo. Noonan, porém, acredita que a dissolução de matrimônio não-sacramental em favor da fé seja algo como uma exceção à indissolubilidade do matrimônio. Ele pensa que nunca houve realmente uma explicação adequada, seja do privilégio mesmo ou do modo de seu exercício. Noonan acusa o Papa João Paulo II de continuar o exercício do privilégio, mas sem reconciliá-lo com aquilo que ele chama de “divórcio papal” com a doutrina da indissolubilidade (189-90). É claro que o que o papa defendeu, como muitos de seus predecessores, foi a absoluta indissolubilidade dos matrimônios sacramentais. A dissolução papal de um matrimônio não-sacramental em favor da fé só é concedida sob condições muito estritas, mas Noonan nunca indica esse fato. Ele faz parecer o contrário, ao dizer que os matrimônios dos não-batizados pareçam candidatos improváveis para a dissolução papal, por não serem na realidade nada diferentes, em grau, dos matrimônios dos batizados, já que são uniões carinhosas, amantes, fiéis e frutuosas também (180). A falta de toda e qualquer atenção real, por parte de Noonan, para o significado da sacramentalidade do matrimônio e para suas implicações, o fracasso dele em considerar como Cristo realiza a perfeição e elevação do vínculo matrimonial natural, faz com que fique difícil para ele enxergar o privilégio como qualquer outra coisa que não algo legalista, arbitrário, e divórcio com outro nome.
A chave para entender o poder do Papa de dissolver matrimônios não-sacramentais em favor da fé, e os limites desse poder, está na novidade que Cristo traz ao matrimônio. Trata-se de algo mais do que a repetição verbal de uma lei. É a perfeição das coisas mesmas que são intrínsecas ao matrimônio: a unidade e a indissolubilidade. Segue-se daí que, se Cristo aperfeiçoa o matrimônio natural elevando-o ao nível de sacramento, ele tem autoridade sobre o matrimônio não-sacramental. O Papa, Vigário de Cristo e Sucessor de Pedro, a quem os católicos creem que o Senhor fez rocha e detentor das chaves da Igreja, partilha dessa autoridade. A participação do Papa na autoridade de Cristo sobre o matrimônio natural é parte do poder das chaves e da autoridade de ligar e desligar dada por Cristo.
Entendido dentro desta moldura, o privilégio petrino não envolve contornar um mandamento divino, mas sim um privilégio que é dado para ser exercido a serviço do mandamento divino dado no Gênesis e repetido por Cristo. Matrimônios não-sacramentais foram dissolvidos em favor da fé, para que aqueles que foram liberados para casar conhecessem, ou pudessem ter a esperança de conhecer, a perfeição que é dada no matrimônio sacramental. O caso que Noonan cita de 1959, quando o Papa João XXIII dissolveu um matrimônio não-sacramental para que uma pessoa católica pudesse entrar em matrimônio com uma não-crente, pode ser entendido como estando a serviço da perfeição do matrimônio em Cristo porque havia a esperança de que o cônjuge incréu pudesse ser evangelizado e se convertesse, e assim entrasse na perfeição de um matrimônio sacramental. Que o privilégio está a serviço da evangelização pode ser visto nas normas atuais. Exigem estas que uma pessoa não-batizada, que foi liberada de um prévio vínculo matrimonial para se casar com um católico, declare que ele ou ela está disposto a permitir ao cônjuge católico a liberdade de praticar a religião dele ou dela e a batizar e educar os filhos como católicos. O profundo respeito que a Igreja tem pelo vínculo matrimonial natural é ilustrado pela exigência das normas atuais de que o postulante não pode ser “a causa culpável, exclusiva ou principal da destruição da vida conjugal” do matrimônio não-sacramental que há de ser dissolvido em favor da fé. Nem, tampouco, pode a outra parte, com quem o novo matrimônio será contraído, ser culpada de provocar a separação dos esposos da união não-sacramental. Nenhuma dessas coisas informa a apresentação de Noonan. São de primordial importância para entender o modo como o privilégio é exercido dentro de limites estritamente prescritos que respeitam, por um lado, a dignidade do vínculo natural do matrimônio e, por outro lado, a responsabilidade da Igreja de evangelizar.
Noonan alega que o desenvolvimento, partindo das palavras de Jesus em Marcos sobre o matrimônio, foi enorme. Se o pleno significado da sacramentalidade do matrimônio for mantido em vista, que implica um certo entendimento de uma hierarquia dos vínculos matrimoniais – “o menos firme” e “o mais firme” –, aí então o desenvolvimento não é do tipo que Noonan imagina que seja. Não envolve um contornar a doutrina da indissolubilidade. Se há uma coisa que o desenvolvimento foi e continua sendo, é uma questão de a Igreja discernir as implicações do significado sacramental do matrimônio e de aplicá-las a novas circunstâncias pastorais, em prol da realização daquilo que Cristo quer para a perfeição do matrimônio.
[Conclusão]
A força da obra de Noonan reside principalmente nos dados e fatos que ele descobriu na sua pesquisa. Se bem que ele tem uma tendência de apresentar o que ele descobriu de maneira carente de equilíbrio e unilateral, a pesquisa dele terá de ser plenamente considerada por todos os que quiserem explicar o desenvolvimento da doutrina da Igreja nas áreas de que Noonan trata. Não se pode dizer, contudo, que ele tenha obtido sucesso em demonstrar a tese dele de que o desenvolvimento doutrinal frequentemente signifique uma flagrante reversão de ensinamentos da Igreja que teriam estado equivocados e errôneos. Ademais, essa tese não faz jus aos dados históricos que o próprio Noonan desenterra.
Lawrence J. Welch
Kenrick-Glennon Seminary
St. Louis, MO
Jorge,
Aqui também há uma resposta à obra de John T. Noonan:
http://www.ewtn.com/library/THEOLOGY/FRNOONAN.HTM
Rui
Especificamente sobre a usura, a Igreja jamais mudou seu ensinamento, como uma leitura atenta da Encíclica “Vix Pervenit” (1745), de Bento XIV, escrita aos bispos da Itália, mas depois estendida a toda a Igreja, deixa bastante claro. A questão dos títulos extrínsecos, que permitem uma compensação ao prestamista, não modifica os princípios pelos quais a Igreja condenou o empréstimo a juros, mormente o da justiça nos contratos.
Um dos erros do excomungado Pe. Beto é achar que não existem heresias morais. Negar um ensinamento moral da Igreja é tão heresia quanto negar um ensinamento direto sobre a revelação. Existem as doutrinas diretamente reveladas, que são aquelas que dizem respeito ao depósito revelado, e existem as doutrinas que são virtualmente reveladas ou conexas com a Revelação, cuja negação faz o indivíduo recair indiretamente em heresia. Por exemplo, alguém que nega uma doutrina moral ensinada ou definida pela Igreja é culpado indiretamente de negar que a Igreja é infalível ao definir a respeito de fé e moral.
Santo Tomás, ensinando sobre a matéria da heresia:
“Aqui falamos da heresia enquanto implica corrupção da fé cristã. Mas não há corrupção da fé cristã se se tem uma opinião falsa em coisas que não pertencem à fé, como problemas de geometria ou coisas semelhantes, que são todos estranhos à fé. Há, no entanto, heresia, quando se tem uma opinião falsa sobre algo que pertence à fé. Agora, como temos dito (1 q.32 a.4), à fé pertence uma verdade de duas maneiras: uma, direta e principal, como os artigos da fé; outra, indireta e secundária, como as coisas que implicam na corrupção de um artigo [de fé]. Pois bem, sobre ambos os casos pode versar a heresia, bem como a fé.” (S. Th., II-II, q.11, a.2, co)
Excelente Rui, obrigado!
Caros,
“Afinal de contas, o ensinamento sobre a usura, embora estritamente interpretado, ainda permanece, como Noonan reconheceu em sua obra anterior. Os princípios morais católicos ainda proíbem taxas de juros injustas ou então exorbitantes.”
Mas a usura que era condenada no começo era a cobrança de qualquer preço além daquele que foi emprestado, pois acreditava-se que estaria tomando algo que não era seu (um desdobramento da máxima “não furtar”). Depois percebeu-se que emprestar quantia x quando outrem não a possui naquele tempo gera de fato um benefício, portanto poder-se-ia cobrar juros, justos, claro. Em termos práticos a doutrina mudou: proibia-se uma conduta que aos poucos deixou de ser repreendida. Mas ainda podemos defender que o princípio que motivou a primeira proibição não mudou: “não tomar o que não lhe é devido”, mais geral que seja, ainda assim incólume. A partir disso poderíamos concluir que a aplicação dos princípios morais mudam conforme novos dados, não? Talvez seja isso que este senhor queria defender como argumentação. Em que pese eu não concordar que isto implicaria numa mudança dos ensinamentos sobre contracepção, uma vez que os dados se mantém. Talvez com novas luzes de entendimento apenas (por exemplo, o Padre Rhonheimer não vê óbice em um casal que se utiliza de preservativo para que o outro cônjuge não se contamine com a doença, pois o fito ali não é a contracepção – eu mesma ainda não sei explicar bem porque não é errado pessoas com graves motivos para espaçar filhos se utilizarem dos métodos naturais e mas é errado que pessoas com estes mesmos requisitos subjetivos recorram ao preservativo (um óbice objetivo) – ainda assim submeto o intelecto que não entende ao Magistério oficial), mas nada que mude essencialmente. O que acham? Corrijam-me se estiver errada.
* Também gostaria que me fornecessem seu parecer a cerca da avaliação moral de uma pessoa que contrariassem as posições oficiais da Igreja quando estas versavam sobre apoio à escravatura e proibição à usura. Seriam hereges estes que percebiam bons motivos à luz da razão natural para se opor a estas prescrições que não decorriam de Magistério Extraordinário? Obrigada desde já.
Concílio Vaticano II é uma ONG? (Parte IV)
http://escravasdemaria.blogspot.com.br/2013/05/concilio-vaticano-ii-e-uma-ong-parte-iv.html
Karla,
Sobre a escravidão, ela nunca me parece intrinsecamente má. Intrinsecamente má era concepção de que o escravo era “coisa”, propriedade do dono, mas não a concepção cristã, de que o escravo era uma pessoa contrangida a servir alguém, geralmente como punição, ou como penitência assinalada pela Providência.
Sobre a usura, o ensinamento é o mesmo. O que mudou foi o tipo das relações econômicas, que deixou ver que havia perdas por parte do prestamista que se dedicava a um determinado ramo comercial. São chamados títulos extrínsecos, pois eles não tem a ver diretamente com a questão do empréstimo. De qualquer modo, quem diz que o ensino mudou não conhece qual foi a última palavra do Magistério sobre o assunto: a Encíclica “Vix pervenit” (1745):
http://www.papalencyclicals.net/Ben14/b14vixpe.htm
O ensino da “VIx pervenit” é a palavra final, nunca alterada da Igreja, a respeito de empréstimos a juros e as circunstâncias em que os mesmos podem ocorrer. O que veio depois foram decisões canônicas que jamais pretenderam reverter o ensinamento de Bento XIV.
Com respeito a pessoas que faziam críticas à Igreja no caso da tolerância à escravidão ou do empréstimo a juros, tais pessoas eram hereges, pois a substância do ensino não mudou. Ao ensino moral da Igreja, deve-se atribuir a infalibilidade do Magistério Ordinário Universal.
Rui
Eu já me envolvi num debate com o Jorge Ferraz defendendo a posição do Pe. Rhonheimer, pois ela me parecia lógica dentro da teoria do duplo efeito, contudo, agora, eu considero minha opinião na época um avanço incerto e temerário.
Sobre por que haveria diferença no espaçamento de filhos e no uso de contraceptivos, eu entendo que no primeiro caso haveria ação indireta, e, no segundo caso, uma ação direta. A “Humanae vitae” diz que é ilícito usar-se de meios diretamente contrários à fecundação.
Rui
Rui, qual foi o caso das pessoas que se opuseram à abolição ( abolicionistas ) e a sua relação com a Igreja? Obrigada.
Corrigindo: “as que se opuseram à escravidão.”
Rui,
Conheço a Humanae Vitae, mas usar este argumento de autoridade não rola no apostolado. Gostaria de entender a questão no plano puramente racional. Por que um seria indireto e o outro direto? Qual a relevância da presença de um preservativo para fazer essas atribuições? Termos como “direto” ou “indireto” estão mais para a questão da intenção, requisito subjetivo, e não do objeto moral, seria mais apropriada à teoria do duplo-efeito, o que não seria o caso. Será que podemos equivaler a “mediato” e “imediato”? E por que mediar-nos pelo funcionamento natural do nosso corpo e não por um uso artificial? Por que é natural? Mas isto seria petição de princípio.
Entendo a questão no nível da Teologia do Corpo: onde se aduz que um casal não pode condicionar sua entrega no ato. O homem se entrega completamente, incluindo sua qualidade inseminativa, e a mulher também, com a sua qualidade fecundaditiva. Entretanto, no plano da razão natural a prescrição ainda me parece nebulosa.
***
Reitero a dúvida da Marta adicionando: e quem se opusesse à queima dos hereges na Inquisição (norma estabelecida pelo Magistério Ordinário à época, e combatida por Lutero) também se considerava herege?
***
Levantou-se uma dúvida para mim: qual é o critério para considerarmos uma prescrição magisterial infalível? E este critério (dado pelo Magistério), como podemos saber se ele é falível ou infalível? Caimos num looping eterno de petição de princípio, então?
Grata pela atenção.
Sei que vocês estudam tomismo e tem seu entendimento sobre ele de modo tradicional. Martim Rhonheimer fez uma nova interpretação sobre St. Tomás no que diz respeito sobre o ato moral (um pouco influenciado por Finnis e Grisez), pode-se baixar um de seus livros aqui: http://bookos.org/book/1415794/7d5d19 . Talvez seja de alguma valia para vocês, nem que seja para criticar.
Karla,
Eu não pretendi utilizar nenhum argumento de autoridade, e ainda que fosse, esse é um dos poucos casos em que o argumento de autoridade é totalmente legítimo, pois, quando se trata da autoridade divina, ela está acima da razão.
O espaçamento de filhos não se opõe ao fim primário do matrimônio, pois não é necessário que esse fim seja visado sempre e diretamente em cada ato do casal, conquanto que ele não seja menosprezado e tornado ineficaz por livre vontade de um ou dos dois cônjuges. É muito diferente um casal que, ao ter relações sexuais legítimas dentro do matrimônio, não visa imediatamente ter filhos do que aquele que se utiliza desonestamente de um ato distorcendo sua finalidade natural. Assim, penso que seja claro o que é atuar de forma direta e indireta, embora não seja bem essa a terminologia exata, pois no caso do casal que opta pelo espaçamento com razões graves, não há causas indiretas que produzam a contracepção, e sim a ausência de uma causa eficiente natural (a ovulação).
Respondendo à sua pergunta sobre queimar hereges: quem diga hoje ser imoral que a Igreja tivesse entregando hereges ao poder civil para serem queimados, é herege sim. É matéria definida pela Igreja, na Bula Exsurge Domini, que não é contra a vontade do Espírito Santo que hereges sejam castigados com a morte. E isso é válido hoje, foi válido ontem e será para todo o sempre. Apenas, as conjunturas que temos atualmente não permitem a utilização das mesmas leis que nortearam os governos católicos no passado, e essa falta de adequação ao ideal é apenas tolerada por nós. O ideal é que o Estado puna os violadores da religião católica, até com a morte, contudo, da tolerância aos hereges, para evitar um mal maior ou angariar um bem maior, à tolerância da dissociação entre Estado e Igreja, tudo é um mal a ser tolerado.
Um ensino é considerado do Magistério Ordinário Universal quando ele é repetido em todos os catecismos, cartas pastorais, homilias, livros aprovados, pelos padres e bispos do mundo. Por exemplo, o que os bispos ensinavam de comum acordo no século XIX é parte do ensino infalível do MOU.
Rui
Marta,
As pessoas abolicionistas não estavam cometendo nenhum pecado, pois a Igreja jamais disse que a escravidão é obrigatória, nem que ela é ideal. A Igreja apenas tolerou a escravidão, mas muitos Papas escreveram contra ela, inclusive Gregório XVI no século XIX. Minha opinião é que a escravidão ser tolerada e receber uma fundamentação cristã significa que ela era possível de existir em uma determinada civilização cristã (a Igreja não a condenou em absoluto, como o aborto ou o homicídio de inocentes), mas não que fosse a melhor opção.
Quanto à visão do escravo como coisa ou como propriedade, para mim é evidente que tal não é possível de conciliar com o cristianismo, e o Papa Gregório XVI se opôs fortemente contra ela. A escravidão só é tolerável ao cristianismo, quando o escravo (a semelhança de Onésimo no Novo Testamento) é tratado como irmão.
Rui
Bem explicado, Rui.Obrigada.
Um amigo me questionou acerca da resposta dada acima, sobre a pena de morte para hereges. Então, eu decidi complementar a minha resposta com o que se segue:
Eu entendo que existe o ideal em si mesmo e o ideal conforme as circunstâncias. Pio XII diz numa alocução que, dependendo das circunstâncias, a tolerância pode aparecer como a opção mais de acordo com o bem comum (ou talvez poderíamos dizer, a única aceitável), mas, abstraindo das circunstâncias, os falsos cultos de si mesmo devem ser reprimidos (há uma diferença entre o herege e o pagão/infiel, pois o primeiro, como batizado, tem obrigações com a Igreja, e o outro não, não podendo, por isso, ser forçado a se converter).
Rui
Rui, grata pelas resposta. Mas quanto à morte do herege ou a proibição dos cultos não católicos: não é a fé virtude teologal? Necessitada intrinsecamente de liberdade Não a adotando por mera vontade humana ou coerção de quem quer que seja? Inclusive do Estado? Como então justificar isso com a admissibilidade de coerção para que não a adota ou para quem a deixa? Obrigada.
Karla,
Nem a Igreja, nem o poder civil pretenderam coibir a liberdade de culto privado. Tanto o herege, quanto o infiel tem liberdade de culto privado. A verdade é que mesmo o herege só é culpado por ação pública, como falsificador da fé e culpado da perdição dos outros.
Se a autoridade civil pune quem falsifica moeda, pois isso contraria o bem comum temporal, imagine se não deveria punir quem falsifica a fé, prejudicando o bem comum espiritual, que é muito mais importante.
Rui
Rui parece que talvez falte uma melhor definição de “herege” para a Karla.
Às vezes é feita confusão entre quem desiste de ser católico, quem não é católico e os hereges, que são pessoas que “escolhem” parte da doutrina católica como verdadeiras, parte como falsa, pregam sua própria falsidade como se fosse a verdadeira igreja, e provocam a perda de almas despreparadas.
Claro que isto, em épocas de dificil comunicação, passava de trágico e era necessário que atitudes bem fortes inibissem estas práticas, nos dias de hoje quem deseja errar não pode culpar o pastor mentiroso, os meios de comunicação não deixam margem para a ignorância.
Acho que entendi melhor. Valeu, pessoal