Bento XVI desautoriza o professor Ratzinger a respeito da comunhão dos divorciados

Há alguns meses, o Card. Kasper começou a fazer alvoroço em público com as suas teses a respeito da admissibilidade dos divorciados recasados à comunhão eucarística. Conhecemos a história: em um seu artigo publicado no início do ano, o prelado apresentava as suas idéias e coligia os fundamentos que julgava possível apresentar na defesa delas.

O passo do prelado, contudo, foi maior do que as suas pernas. Ele poderia ter somente defendido a sua posição particular nesta seara; para angariar maior força de persuasão, contudo, julgou preferível trazer para junto de si a opinião abalizada de um dos maiores teólogos da atualidade. Resolveu defender «la práctica de la tolerancia pastoral, de la clemencia y de la indulgencia» baseando-se em ninguém mais, ninguém menos do que Joseph Ratzinger.

À época, Kasper desenterrou um artigo publicado em 1972 pelo então prof. Ratzinger, e o apresentou aos seus leitores da seguinte maneira:

A Igreja dos primórdios dá-nos uma indicação que pode servir como caminho para escapar a este dilema, ao qual o professor Joseph Ratzinger já fez menção em 1972. […] Nas Igrejas locais havia um direito consuetudinário, de acordo com o qual os cristãos que viviam um segundo vínculo [matrimonial], mesmo que o primeiro cônjuge ainda estivesse vivo, depois de um tempo de penitência tinham à sua disposição […] não um segundo matrimônio, mas – através da participação da comunhão [eucarística] – uma tábua de salvação. […]

[…]

J. Ratzinger sugeriu [em 1972] retomar de maneira nova essa posição de [São] Basílio. Pareceria uma solução apropriada, solução esta que está na base das minhas reflexões.

As conclusões agora apresentadas por Kasper apoiavam-se, de fato, em um nome vultoso. A solução que ele ressuscitava agora tinha o inegável mérito de ter sido já defendida, na década de 70, pelo acadêmico Joseph Ratzinger. O arranjo fora muito bem preparado. Kasper só não contava com um pequeno detalhe: Bento XVI ainda estava vivo, lúcido e não gostou nem um pouco da maneira como o seu artigo (de há mais de quatro décadas) fora citado.

A honestidade intelectual é uma virtude delicada; ela exige que não utilizemos as palavras de terceiros de modo a apresentar um retrato do seu pensamento com o qual eles próprios não concordariam. E, após ter já publicado – enquanto cardeal e enquanto Papa – diversos trabalhos nos quais concluía a respeito da inadmissibilidade da comunhão eucarística aos recasados, Bento XVI não se reconheceu nos textos que escrevera no início dos anos 70, agora requentados para defender uma bandeira com a qual, em absoluto, o antigo Papa não concorda.

E a resposta veio nos últimos dias [p.s.: ver abaixo]: o Bispo Emérito de Roma republicou o seu artigo de 1972, com uma retractatio em sua parte final redigida agora em 2014, onde revisa a sua posição anterior. A atitude me surpreendeu por diversos motivos.

Primeiro porque tal não seria a rigor necessário, uma vez que a posição de Bento XVI a respeito do tema era já suficientemente clara a partir dos seus textos posteriores (entre os quais merece menção, para ficar somente em um exemplo, esta carta assinada de próprio punho pelo Card. Ratzinger em 1994). Mas parece que o acadêmico sentiu-se particularmente ofendido com a mera possibilidade de ter o seu nome associado às teses de Kasper e, portanto, julgou oportuno fazer a retratação.

Segundo porque penso que o fato é inédito. Não me recordo de nenhuma outra ocasião em que Bento XVI tenha rechaçado explicitamente as posições que assumira nos anos anteriores ao cardinalato e à presidência da Congregação para a Doutrina da Fé; pelo contrário, já o ouvi até dizer que foi a revista Concilium (de cuja fundação o jovem Ratzinger participou e que se consagrou mais tarde como um famoso veículo de doutrinas pouco católicas) quem mudou de orientação, e não ele próprio. O gesto abre um importante precedente (que era óbvio, mas a respeito do qual não se pode mais, agora, alegar dúvidas): não é possível transpôr acriticamente os antigos escritos do teólogo Ratzinger para os dias atuais, passando por cima dos debates teológicos que se travaram ao longo das últimas décadas e em cujo cerne o autor – primeiro como prefeito do Santo Ofício e, depois, como Papa – ocupou muitas vezes um lugar de indiscutível proeminência.

Terceiro, por fim, porque a decisão de Bento XVI coloca o seu conterrâneo em uma verdadeira saia justa. Rompendo o silêncio do seu pontificado emérito, ele desautoriza simultaneamente as teses de Kasper e os expedientes do qual este lançou mão para as fazer valer: tomando importante partido nesta importantíssima discussão contemporânea, não faltou quem dissesse que Bento XVI, agora, provoca uma reviravolta e passa a pautar o Sínodo da Família. Não me parece que tenha sido a atitude mais deferente do mundo; contudo, parece que estamos em uma daquelas situações em que se exige que a defesa categórica da Fé seja colocada acima da polidez política. Que seja bem-vindo o auxílio do Pontífice do passado.

[P.S.: Na verdade, a retratação não é assim tão recente e, portanto, não pode ser associada diretamente aos acontecimentos do Sínodo. Em uma entrevista publicada no último domingo (07/12) por um jornal alemão, «[o] jornalista lhe perguntou [a Bento XVI] se desta maneira [com a revisão do artigo] quis adotar uma postura no Sínodo dos Bispos sobre a família, recentemente celebrado no Vaticano, e o Papa emérito qualificou esta afirmação como sendo um absurdo total, já que não interveio nem quis intervir nas questões tratadas no sínodo extraordinário sobre a família e a revisão do volume foi feita antes do Sínodo». Deve ser lida assim, penso eu, como uma resposta aos ensaios de Kasper a respeito da comunhão dos divorciados recasados (feitos já no começo do ano), mas não diretamente ao dissenso cardinalício que se instaurou imediatamente antes e durante o Sínodo recém-encerrado.]

E isso sem falar da humildade necessária para se fazer assim, já no fim da vida, uma retratação pública de repercussão tão ampla: Bento XVI é realmente uma personalidade assombrosa, cuja envergadura intelectual não pode ser posta em dúvida. Nem tampouco a sua dedicação à Igreja…! Nem tampouco o amor à Verdade que o levou a grafar aquele Cooperatores Veritatis em seu brasão episcopal. Sim, há homens para os quais a Verdade está acima de sua imagem e prestígio pessoais. Que as novas gerações o aprendam deste ancião admirável.

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Jorge Ferraz (admin)

Católico Apostólico Romano, por graça de Deus e clemência da Virgem Santíssima; pecador miserável, a despeito dos muitos favores recebidos do Alto; filho de Deus e da Santa Madre Igreja, com desejo sincero de consumir a vida para a maior glória de Deus.

18 comentários em “Bento XVI desautoriza o professor Ratzinger a respeito da comunhão dos divorciados”

  1. Caro.

    O texto original do professor Ratzinger é péssimo e foi realmente a base defendida pelo Cardeal Kasper, simplesmente coloca o “O que Deus uniu, o homem não separe” no lixo, como se possuindo um poder superior ao filho de Deus. A correção tardia permitiu o uso do texto pelo Cardeal mal intencionado(ou burro). (Mesmo com os considerandos, da constante defesa da indissolubilidade ao longo dos anos.)

    Mas o que me preocupou foi que a retratação ficou tímida e deixa na mão do recasado, a reflexão sobre a oportunidade de comungar ou não, apenas com o alerta “Examínese, pues, cada cual, y coma así el pan y beba de la copa. Pues quien come y bebe sin discernir el Cuerpo, come y bebe su propio castigo” (1 Cor 11, 28 s.) Muitas destas pessoas consideram-se puras e nem consideram que estejam em pecado, seriam maus juízes em causa própria.

  2. É impressionante como os católicos conservadores gostam de esconder, e o teólogo recifense não é diferente, de que Kasper tem apoio de Bergoglio para implantar as sua sandices modernistas sobre os divorciados.

  3. Ratzinger parece ter passado de reformista entusiasmado a decepcionado, e acho que percebeu muitas das más conseqüências do Concílio Vaticano II (como o próprio Paulo VI, com seu famoso comentário sobre “a fumaça de Satanás” na Igreja) e tentou dar marcha atrás em vários aspectos, inclusive estimulando o retorno à missa tridentina. Sem dúvida, é um gesto notável que ele ainda tente, apesar de sua renúncia, deter pelo menos as tentativas mais radicais de reformar as doutrinas morais e teológicas da Igreja, que Kasper e outros (e não se enganem, completamente apoiados por Francisco) tentam introduzir.

  4. Que criatura perigosa esse Kasper! Ainda bem que temos o Papa Jorge para colocá-lo nos trilhos!

  5. Wilson,

    A passagem de I Cor é, precisamente, o fundamento escriturístico multissecular para a proibição da comunhão eucarística aos que se encontram em situação de pecado. Não há outra maneira de se dizer isso sem fazer referência à passagem de S. Paulo. A possibilidade de que maus juízes julguem-se com reprovável condescendência não se elimina – antes, pelo contrário, parece-me crescer ainda mais! – caso se silencie a respeito do «quem come e bebe sem distinguir o Corpo do Senhor…».

  6. Sobre a impossibilidade de receber a sagrada comunhão, Bento XVI faz uma advertência não diretamente ligada aos divorciados e recasados que estão impedidos da comunhão sacramental, mas a todos aqueles que se aproximam da mesa do Senhor. “Eu acredito que a advertência de São Paulo ao auto-exame e reflexão sobre o fato de que é o Corpo do Senhor deva ser levada a sério outra vez: “Que cada um se examine a si mesmo, e assim coma desse pão e beba desse cálice. Aquele que o come e o bebe sem distinguir o corpo do Senhor, come e bebe a sua própria condenação.”(1 Cor 11, 28 s.), diz ele.

    Bento XVI apesar de ter consciência do pleno direito e dever de negar a comunhão “aos excomungados e os interditos, e aos que obstinadamente perseverem em pecado grave manifesto”, conforme disposto no Canon 915 do Código de Direito Canônico, ao tratar deste assunto em relação aos divorciados recasados, o faz sobre uma ótica diferente. Trata-o não pelo ponto de vista do ministro que nega, mas do fiel que renuncia. Cabe a cada um o exame sério de si mesmo, e este exame pode também nos levar a renunciar a comunhão. São João Crisóstomo clama para que não nos aproximássemos da “Mesa sagrada com uma consciência manchada e corrompida. De fato, uma tal aproximação nunca poderá chamar-se comunhão, ainda que toquemos mil vezes o corpo do Senhor, mas condenação, tormento e redobrados castigos”.

    Renunciar a Eucaristia quando não estamos em estado de graça é um sinal de amor. Bento XVI parece sintetizar neste ato uma prática concreta dos dois grandes mandamentos da Lei de Deus: amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo. O que nos levaria “sentir de uma maneira nova a grandeza do dom da Eucaristia e, por outro lado, representaria uma forma de solidariedade para com as pessoas que estão divorciadas e novamente casadas.”

    Pedindo a sua devida autorização Jorge, deixo aqui o link de uma reflexão que fiz a respeito das palavras de Bento XVI (http://cooperatorveritatis.com.br/2014/12/05/um-reflexao-sobre-a-revisao-do-artigo-de-1972-do-professor-ratzinger/). Ele comenta alguns aspectos importantes do Código de Direito Canônico a cerca da presunção legal e do costume em que analiso resumidamente sob o ponto de vista jurídico, além de citar outros pontos como a importância da preparação para contrair o sacramento do matrimônio e também suas sugestões pastorais.

  7. O MUNDO DE HOJE QUER UMA DOUTRINA RELIGIOSA DE PRATELEIRA DE SUPERMERCADOS: NOVIDADES E À ESCOLHA DO CLIENTE!
    Um assunto de muita complexidade; tem de ser tratado caso a caso, levando-se em conta a quantidade de católicos-pagãos-batizados, matrimônios irresponsaveis e/ou sacerdotes mal formados ou já admitentes do relativismo facilitador de novas concessões sem grandes restrições, outro problema, o caso.
    De qualquer forma, uma situação dessa a meu ver, só poderia se levada a cabo e a bom termo se estivesse sob a experiência pastoral de um gabaritado teólogo Bento XVI que aborda o assunto de forma profunda e atento aos detalhes envolventes aos casos individuais, no entanto, sem dar chance ao relativismo que tende constituir o problema atual de uma misericordia previa, de forma irrestrita: SEM arrependimento, SEM pedido de perdão e SEM nenhum propósito de emenda para o futuro.
    Aliás, concessões desse tipo poderiam até incentivarem pretextos para novos divórcios, avançarem noutros pontos relativizando ainda mais a doutrina, se dada a facilitação, sendo o Cardeal Kasper & associados suspeitos para tomarem decisões desse teor, pois estariam a serviço até mesmo de lobbies interessados em descaracterizar a doutrina da Igreja, caso da maçonaria.

  8. Repetindo suas palavras, Jorge,

    “Bento XVI é realmente uma personalidade assombrosa, cuja envergadura intelectual não pode ser posta em dúvida. Nem tampouco a sua dedicação à Igreja…! Nem tampouco o amor à Verdade que o levou a grafar aquele Cooperatores Veritatis em seu brasão episcopal. Sim, há homens para os quais a Verdade está acima de sua imagem e prestígio pessoais.”

    Diante de tudo isso, ainda me pergunto por que ele renunciou?

  9. Estou terminando de ler o volume VII-1 do Opera Omnia, de Ratzinger, que trata justamente de seus textos contemporâneos ao Vaticano II (do qual foi partícipe como perito do cardeal Frings). Acho que não seria injusto dizer que Ratzinger estava, sim, imbuído de um certo otimismo com os “novos ventos” advindos do Concílio e que, assim me parece, abandonou em parte ao longo do tempo.

  10. “Que seja bem-vindo o auxílio do Pontífice do passado.”.. claro, porque o Pontífice atual parece só causar tumulto e não se posicionar quando precisa. Kasper deu um tiro no pé, sem querer fez com que Bento XVI se posicionasse. Quer saber? Há males que vêm pra bem. Achei bom!

  11. “O que o cardeal alemão Walter Kasper fez foi dizer para que se busquem hipóteses, ou seja, ele abriu o campo. E alguns estavam com medo”

    Bergoglio

  12. http://www.lanacion.com.ar/1750777-el-vaticano-busca-facilitar-la-nulidad-matrimonial-y-pregunta-que-hacer-con-los-gays
    Agora o Vaticano “pergunta” o que fazer em questões onde não há nenhum problema, pois o magistério é claríssimo. Pensei que a função do Papa era a de defender o magistério e o depósito da fé, e não armar um plebiscito. Isso sim, na hora de lidar com tradicionalistas (como Livieres ou Burke) Bergoglio não tem o menor pudor de deixar de lado seu lado “democrático, aberto” e atuar sumariamente, sem dar explicações.

  13. *** The painfully slow process of uncovering the child abuse that happened within the Catholic Church continues. The members of the church continue to try and protect the wrong people, at the expense of victims, their families and the American public. ***

    The Archdiocese of Chicago has voluntarily released documents related to 36 Archdiocesan priests who have at least one substantiated allegation of sexual misconduct with a minor. These documents are in addition to those released in January on 30 other priests. This release, together with the January release, covers priests who have substantiated allegations of sexual misconduct with minors identified on the Archdiocese’s website as of November 2014. Documents pertaining to two priests, former Rev. Daniel J. McCormack and Rev. Edward J. Maloney, are not included, due to ongoing processes that do not permit release.

    Inquiries may be directed to the Office of the Protection of Children and Youth, Archdiocese of Chicago, PO Box 1979, Chicago, IL 60690.

  14. Cara Kelly

    Infelizmente erros ocorrem e se abusos contra incapazes são abomináveis em quaisquer circunstâncias e ambientes, no meio eclesiástico isto horroriza.

    Em organizações seculares, organizações defensoras das “liberdades sexuais” estes pecados hoje, nem são considerados erros, estes abusos são considerados opções normais que devem ser “respeitadas” pela sociedade.

    Entretanto isto será sempre erro e sempre será rejeitada na Igreja Católica e graças a Deus que tantos fiquem chocados e tanta manchete gire sobre erros dentro da Igreja Católica, enquanto um erro que seja na Igreja Católica gerar tanta repercussão e indignação, ela ainda será a melhor guia para uma vida, pois é apenas nela que tais erros são combatidos como erro. Nossa Igreja deverá ser cuidada e respeitada, pois o erro não chegou na doutrina, apenas se infiltrou com humanos fracos que nela se esconderam.

  15. Jesus Cristo,deu aos apóstolos e seus sucessores,o mandato e o poder de ensinar,santificar na verdade e apascentar,e em comunhaõ com o sumo pontífice e com todo o colégio espiscopal,estarem sempre atentos à solicitude pastoral da igreja e aos sinais dos tempos.Os tradicionalistas,situam a igreja só em uma determinada época,a tridentina;por isso nunca vaõ conseguir entender o Papa Francisco.

  16. Lucas, este argumento é bastante fraco. Francisco é o papa e estou em comunhão com Roma (não sou nem sedevacantista nem cismático), mas isso não elimina o dever que eu e todos os demais católicos temos de criticar o papa se este pretende mudar a doutrina que recebemos de Jesus, dos apóstolos e dos padres da Igreja. Sou católico, não papólatra. Jesus falou claramente contra o divórcio e sobre a indissolubilidade do matrimônio: quem são Kasper ou Bergoglio para querer mudar isso? Por toda a Bíblia se fala que as relações homossexuais são pecado mortal: ninguém pode mudar isso se quiser ser considerado cristão. Ponto. Não há o que discutir sobre isso, daí que o tal “Sínodo sobre a família” não tem o menor sentido se o que se busca é manter e fortalecer a doutrina católica, porque essas questões já estão mais que suficientemente esclarecidos há tempos. A função do papa é conservar o depósito da fé, e não “modernizá-lo”, “adequá-lo aos novos tempos” ou “melhorá-lo”.

  17. “Os tradicionalistas,situam a igreja só em uma determinada época,a tridentina;”

    Se é assim como você diz, Lucas, podemos também dizer que:

    “Os progressistas situam a Igreja só em uma determinada época, a pós CVII.”

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