E se a renúncia de Bento XVI for inválida? – I

O Rorate Coeli estampou hoje, com alarde, uma carta aberta de S. E. R. Dom Jan Pawel Lenga, bispo emérito de Karaganda (Cazaquistão), a respeito da crise da Igreja. O Fratres in Unum já a traduziu. Um dos seus pontos mais impactantes – e que consta até mesmo como subtítulo da chamada – é o que diz ser «difícil acreditar que o Papa Bento XVI tenha renunciado livremente [ao] seu ministério como sucessor de Pedro».

O problema é de ordem estritamente canônica. O Código atualmente vigente diz o seguinte:

Cân. 188 — A renúncia apresentada por medo grave, injustamente incutido, por dolo ou erro substancial ou feita simoniacamente, é inválida pelo próprio direito.

E ainda:

Cân. 332 — (…) § 2. Se acontecer que o Romano Pontífice renuncie ao cargo, para a validade requer-se que a renúncia seja feita livremente, e devidamente manifestada, mas não que seja aceite por alguém.

O que o Direito dispõe é bastante lógico e justo: para a renúncia ser válida, ela precisa ser livre. O problema, assim, coloca-se com clareza: se o Papa Bento XVI não renunciou livremente, se ele o fez motivado por alguma espécie de medo grave, então esta sua renúncia não foi válida. Logo, ele jamais deixou de ser Papa. Logo, a Sé não ficou vacante, o Conclave foi convocado ilegitimamente e o Papa Francisco não é Papa verdadeiro, senão um usurpador.

O raciocínio parece sedutor. Os seus sucessivos passos parecem muito bem concatenados. Cada consequente parece decorrer, por exigência lógica, do seu antecedente.

No entanto, alguma coisa incomoda: a conclusão parece não estar muito bem. A seguir-lhe ferreamente, às últimas consequências, então tudo fica dependendo das disposições interiores do Papa Bento XVI naquele fatídico 11 de fevereiro. Tudo – a validade da eleição do Papa Francisco e todos os sucessivos atos de governo que se lhe seguiram, as nomeações episcopais, os consistórios, as normas canônicas promulgadas nos últimos dois anos, as canonizações, tudo – fica dependente do grau de liberdade subjetivo com o qual Bento XVI proferiu a Declaratio da Grã-Renúncia.

E isso não faz o menor sentido. Não dá para edificar todo o colosso da Igreja unicamente sobre as disposições subjetivas de um homem, por mais importante que ele seja. Não tem lógica absolutamente nenhuma fazer a validade de tudo o que é de competência eclesiástica – por natureza visível e externo – depender de determinadas condições subjetivas que ninguém tem condições de perscrutar com exatidão. Tal seria o triunfo completo do subjetivismo. A insegurança generalizada.

Faça-se um pequeno exercício de imaginação. Imagine-se que S.S. Francisco não seja Papa. Então

i) os cardeais que ele criou não são cardeais verdadeiros e, portanto, não têm direito a voto em um eventual futuro conclave – o que, com o passar do tempo, iria fazer não só com que ele próprio não fosse Papa legítimo mas com que fosse canonicamente impossível eleger um Papa legítimo, uma vez que a Capela Sistina teria cada vez mais homens fantasiados de púrpura e cada vez menos Príncipes verdadeiros da Igreja de Cristo;

ii) os bispos que ele nomeou igualmente não têm jurisdição verdadeira sobre as suas dioceses, o que acarreta a invalidade de todos os sacramentos cujo exercício depende de jurisdição eclesiástica – i.e., os matrimônios e as confissões;

iii) os santos que ele canonizou não são santos verdadeiros e, portanto, a infalível Igreja de Deus está, pública e universalmente, prestando um falso culto a homens comuns, usurpadores da glória dos altares;

iv) etc.

É até possível arranjar subterfúgios para fugir aos pontos i) e ii) acima. Quanto ao primeiro, é possível dizer que a Sé há de ficar vacante no momento em que Bento XVI morrer – e, a partir de então, um Papa pode vir a ser eleito legitimamente, ainda que objetivamente violando (mas em boa fé) certos dispositivos de direito eclesiástico. Quanto ao segundo, bom, é sempre possível aplicar o supplet Ecclesia – e, assim, garante-se a graça sacramental aos ignorantes sem maiores dificuldades.

Mas quanto ao terceiro não dá para tergiversar. Se o Papa Francisco não é Papa, então a Igreja está prestando um falso culto a todos os santos que ele canonizou de 2013 pra cá. E a Igreja, que é infalível em Sua liturgia, simplesmente não pode prestar um culto falso. Se o fizer, Ela deixa de ser Igreja. O problema não se resume, portanto, a uma questão de a Igreja estar temporariamente acéfala – fato extremamente banal e corriqueiro. Se o Papa Francisco não fosse Papa, a Igreja Católica, a Igreja de Cristo, a Igreja visível, estaria fazendo, hoje mesmo, uma coisa que Ela simplesmente – por promessa divina – não pode fazer: prestando um culto litúrgico espúrio.

Deixou de existir, portanto, Igreja visível. Recaem-se, aqui, em rigorosamente todos os problemas do sedevacantismo “clássico” (o que remete a Paulo VI, João XXIII, Pio XII ou seja lá até onde se deseje retroceder a vacância da Sé Apostólica). Estarão os críticos do Papa Francisco dispostos a aceitar tanto? Ou não pensaram jamais nisso – e acham que a hipótese de um falso Papa no sólio pontifício com o soberano legítimo ainda vivo é de algum modo menos problemática do que a de uma Igreja com o trono abandonado, esquecido e empoeirado por gerações a fio?

Publicado por

Jorge Ferraz (admin)

Católico Apostólico Romano, por graça de Deus e clemência da Virgem Santíssima; pecador miserável, a despeito dos muitos favores recebidos do Alto; filho de Deus e da Santa Madre Igreja, com desejo sincero de consumir a vida para a maior glória de Deus.

13 comentários em “E se a renúncia de Bento XVI for inválida? – I”

  1. Caro Jorge,

    Esta renúncia de Bento XVI continua me perturbando, eu também não consigo aceitar facilmente que tenha renunciado sem um motivo gravíssimo, ainda mais por se tratar de um alemão. Este é um tema que sempre me vem à mente.

    Sua argumentação, Jorge, confere com a possibilidade mais provável, mas se “amanhã” Bento XVI afirmar que foi coagido ou ameaçado, tudo o que você supôs de contraditório se revelará verdadeiro.

    Eu espero que não seja assim, mas minha consciência, ou minha intuição, ou sei lá o que seja este algo que me incomoda o coração, me diz que Bento não renunciou livremente. Não consigo pensar diferente disso e mais uma vez: espero estar errado nisto.

  2. Grande Jorge, sem tomar partido na validade da renúncia, veio-me à mente o seguinte questionamento: se você estiver certo em seu raciocínio, então a Igreja teria sucumbido durante o Grande Cisma? Afinal, havia um papa legítimo, que renunciou, e um usurpador, que obstinou-se no trono. E isso levaria a uma vacância bem mais longa do que acusam alguns sedevacantistas. Abraço!

  3. Muito provevelmente Bento XVI preferiria derramar seu sangue a deixar a Igreja nessa situação. Portanto, não vejo motivo que o impediria hoje de dizer que sua renúncia foi inválida. Se não o faz, é porque foi válida.

  4. Querido colega, apenas vos digo: aceita que dói menos!
    estou escandalizado com seus argumentos. querem, agora, impedir o Papa Francisco de ser Papa por conta de questionamentos sem jultificativa? Sério?

    Querido,
    será que os questionamentos não surgiram pela “revolução” de pensamento que o Papa Francisco trouxe a igreja? Ou seus questionamentos surgiram por outros fatores?

    Abraço,
    e fica com Deus, e que ele ilumine teus caminhos.

  5. Passam hoje exactamente dois anos desde esse dia terrível… A paz no meu coração pouco existe. Conforta-me a promessa de Jesus que “as portas do Inferno não prevalecerão contra a Igreja”. E a de Nossa Senhora em Fátima: “Por fim, o Meu Imaculado Coração triunfará”.

    Nosso Senhor terá prolongado a vida de Bento XVI, ele que parecia tão acabado nos dias seguintes ao anúncio da renúncia? Imagino o dia da sua partida para o Céu e nem consigo demorar-me muito nesse pensamento…

    O dia lindo em Roma, aquele dia 11 de Fevereiro de 2013. E no final desse dia, a grande trovoada que caiu sobre ela…

    Enfim, que Deus nos ajude!

    Estará Bento XVI a exercer o Ministério Petrino na oração e no recolhimento e o Papa Francisco é um executante “meio que provisório” de mudanças estruturais necessárias na Igreja?

    Dúvidas, muitas dúvidas, nestes 2 anos!

    Que Nossa Senhora e os Bem-aventurados Francisco e Jacinta Marto intercedam pelo Santo Padre e por toda a Igreja.

  6. É difícil entender o que querem como prova, além da afirmação e reiteração da liberdade dessa renúncia feita por Bento XVI, os que defendem a possibilidade de invalidade da renúncia.

    Apelam a um subjetivismo insano. Então, por que não considerar o trono de Pedro vacante desde 1294 quando Celestino V renunciou? Quem ou o quê garante que ele agiu livremente?

  7. Que já houve períodos em que um anti-papa tenha se sentado no trono de Pedro, é fato. Vide Bonifácio VII. Mas nem por isso dizemos que as portas do inferno prevaleceram.

    Contudo, não acho que D. Pawel tenha questionado a validade da eleição de Francisco. Acho que D. Pawel quis dizer que a renúncia de Bento XVI não foi livre de ingerências externas, como aliás seria esperado. Acho incrível sustentar que Bento XVI renunciou unicamente por motivos de saúde. Afinal, já se passaram dois anos e ele parece saudável para sua idade.

    A renúncia de São Celestino V também não foi livre de ingerências externas e nem por isso deixou de ser válida.

  8. Para quem tem dificuldade em distinguir fatos e hipóteses: que Bento renunciou é fato. Que a renúncia foi livre ou por coação, são hipóteses. Quem pode afirmar com segurança que Bento está, ou não está sob coação?
    A situação de Bento XVI me parece estranha. Ele renunciou por questões de saúde, mas sua saúde permanece semelhante agora. Ele se quis se tornar um papa emérito, ficando assim em um tipo de clausura. Em seu governo teve inimigos dentro e fora da Igreja. Em seu discurso de posse, pediu ( não lembro exatamente as palavras) orações para que ele não fugisse por medo de lobos que o cercavam… por estas e outras cabe perguntar: que liberdade tem Bento XVI?

  9. Bento XVI diz: “Depois de ter examinado repetidamente a MINHA CONSCIÊNCIA diante de Deus, cheguei à certeza …Tenho de reconhecer a MINHA INCAPACIDADE para administrar bem o ministério que me foi confiado. Por isso, bem CONSCIENTE da gravidade deste acto, com PLENA LIBERDADE, declaro que renuncio ao ministério de Bispo de Roma, Sucessor de São Pedro…”

  10. Pois é Rafael, a declaração é verdadeira para efeitos legais, assim como as declarações feitas num casamento dão efeito ao matrimônio. Porém, se uma das partes foi coagida, de que vale o matrimônio? De certo modo semelhante, se bento está coagido, quanto vale este discurso?

    Para informação, não afirmo, nem nego a liberdade do papa emérito. Apenas considero alguns fatos acerca do Vaticano estranhos ou mal explicados e que me levam cogitar tais coisas. Mas claro, há grandes chances d’eu estar supondo bobagens, assim como o bispo Pawel quando questiona a liberdade do Papa Bento.

  11. O motivo de Bento XVI certamente foi gravíssimo, mas eu tenho fé de que não invalidou alguma coisa. Se é para acreditar que o inferno pode prevalecer, então que se acredite que ele já prevaleceu há muito tempo. A verdade é que há algo de misterioso com a Igreja de Cristo e o inferno não prevalece sobre ela. Isso tudo é para se acreditar. Para o espírito de questionamento é sempre “verdade” que o rei desse mundo não é bom.

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