E se a renúncia de Bento XVI for inválida? – II

Ontem eu dizia que há diversos problemas na hipótese de o Trono de S. Pedro estar atualmente ocupado por um impostor. Acho que vale a pena insistir ainda um pouco no assunto.

O ponto para o qual estou tentando chamar a atenção não é a mera hipótese da existência de um Antipapa. Não há novidade alguma nisso, Antipapas já existiram na história da Igreja. O verdadeiro problema aqui é a hipótese de aquele que é reputado Sumo Pontífice pela virtual totalidade da Igreja visível não ser Papa verdadeiro – e isso é um pouco diferente das outras situações históricas pelas quais a Barca de Pedro já passou nesses dois milênios tumultuosos de sua existência.

Certo, a Igreja passou quase setenta anos no cativeiro em Avignon. Mas – e isso é o mais importante – em Avignon havia Papas legítimos reclamando o sólio pontifício! O problema de não ser possível identificar qual o Papa legítimo entre dois (ou mais) pretendentes à cátedra de São Pedro é uma coisa; o problema de não ser Papa legítimo a única pessoa que se pretende Papa e como Papa é reconhecido – pública e pacificamente – por toda a Igreja é outra coisa completamente diferente. Que fosse talvez necessário escolher – entre fulano e sicrano – um Papa para se submeter é uma realidade que já se apresentou historicamente. Que a escolha deva ser feita entre fulano e o Trono Vazio, no entanto, é uma novidade absolutamente inaudita.

(Eu sei que, no caso particular de Antipapado em que a renúncia de Bento XVI tenha sido inválida, a escolha é entre o Papa Francisco e o Bento XVI, e não entre aquele e a Sé Vacante. No entanto, para a maior parte do sedevacantismo existente nos dias de hoje, a opção que se faz é pelo Trono Vazio em oposição ao que nele se assenta mesmo. Ademais, a hipótese do “Antipapa Francisco”, nos moldes de “Bento XVI ainda é Papa”, precisa lidar com o fato, então, de que pode ser canônica e teologicamente possível que seja Papa alguém que faz questão de dizer, em público e repetidas vezes, que não é Papa! O inusitado da situação exige que sejam apresentados argumentos fortes em defesa da tese. O ônus é de quem faz alegação, e é tanto maior quanto mais extraordinária for a alegação feita.)

Note-se, um Antipapa não é simplesmente um falso Papa. Um Antipapa é uma pessoa que se arroga falsamente o título de Papa em oposição a um Papa verdadeiro. É assim que está na Wikipedia, é assim que explica a Enciclopédia Católica, é somente assim que faz sentido. Não fosse assim, como ninguém jamais viu um conclave (à exceção dos cardeais-eleitores), estar-se-ia sempre na dúvida de se um determinado Papa é realmente Papa ou não – e tal insegurança não pode subsistir na Igreja que é coluna e sustentáculo da Verdade. Sim, a Sé de Roma pode ficar vacante. Sim, um Antipapa pode pretender ilegitimamente a Sé de Roma. Mas a Sé de Roma estar vacante ao mesmo tempo em que um Antipapa a reclama sem oposição  – aí não, aí não é possível, aí não tem precedente, não tem embasamento teológico, não tem lógica e nem cabimento.

Sobre os tempos priscos do passado remoto da Igreja, nos quais alguém pode esgaravatar um intervalozinho de tempo – sei lá, entre a morte de Inocêncio VII e a eleição de Urbano V – no qual um Antipapa “reinou” durante um período de Sé Vacante, a comparação não procede. Esta vacância contingente estava inserida num processo contínuo de morte do Papa – realização do conclave – eleição do seu sucessor, que absolutamente não encontra paralelo na situação contemporânea. Em Avignon, havia pretensão legítima de Sé Vacante – evidenciada pelos Papas que a antecederam e sucederam sem solução de continuidade. Hoje, tal não ocorre. Hoje, nada nem sequer remotamente análogo a isso ocorre.

Ainda, diga-se que os problemas de ordem prática apontados para a hipótese do Antipapado contemporâneo – nomeações episcopais inválidas, normas para a Igreja Universal nulas, cultos espúrios prestados a santos não canonizados etc. – são próprios dos tempos modernos, nos quais há uma absurda concentração de poder nas mãos do Romano Pontífice e um seu quase ininterrupto exercício. Durante a Idade Média, era perfeitamente possível – aliás, em determinadas situações de crise (como o Grande Cisma do Ocidente) isso era até extremamente provável – que o Papa fosse eleito e não exercesse nenhum ato especificamente pontifício: não canonizasse ninguém, não lavrasse nenhuma bula de criação de diocese, não alterasse nenhuma norma litúrgica. Hoje, ao contrário, o ordenamento canônico muda praticamente todos os dias (com nomeações e renúncias, mudanças curiais, refinamentos litúrgicos, canonizações e beatificações etc.); e se uma norma inválida for introduzida nesse sistema, é simplesmente impossível retroceder à situação anterior.

Mas, como aventei ontem, sempre existe a hipótese do ajeitadinho eventual. Sempre é possível pensar que, num futuro não importa o quanto longe, um Papa legítimo vai surgir e vai referendar tudo, vai aplicar sanatio in radice pra tudo o que foi feito de modo inválido pelos seus ilegítimos predecessores, vai promulgar dessa vez de verdade tudo o que fora indevidamente promulgado (com efeitos erga omnes e ex tunc), vai – em suma – dar uma canetada jurídica que vai pôr ordem na casa. Enquanto tal não acontece, Deus, em Sua Onisciência, prevendo esse futuro Papa Sebastião salvador, antecipa os efeitos de sua autoridade pontifícia e sai aplicando suplências eclesiais para manter a Igreja funcionando (afinal, as portas do Inferno não podem prevalecer).

Vejam, essa idéia espetaculosa até que cola. Mas o seu problema é que ela é mirabolante demais, é uma gambiarra muito grande e, portanto, repugna à razão que seja verdadeira. A salvação das almas vem de ordinário por meio da Igreja visível e hierárquica; e imaginar uma Igreja visível ma non troppo, onde aqueles que se apresentam como autoridades visíveis são na verdade uma Anti-Igreja organizada para esconder a Igreja verdadeira; uma Igreja hierárquica “só que não”, onde os que se apresentam como superiores não detêm autoridade verdadeira (e, portanto, as coisas válidas – em ordem à salvação – que eles porventura façam decorrem não dos meios próprios da Igreja, mas de uma intervenção sobrenatural e direta do Deus Altíssimo para suprir defeitos que praticamente ninguém imagina existir); uma Igreja, em suma, que não guarda quase semelhança alguma com o que a Esposa de Cristo sempre foi historicamente – imaginar tal coisa raia a insensatez.

No fundo, pretender que o Catolicismo está somente ao alcance de uma meia-dúzia de iniciados (que conseguem perscrutar os mistérios da crise moderna e enxergar, para além do que dizem as sedizentes autoridades católicas contemporâneas, aquilo que é a Fé verdadeira) cheira a gnosticismo, e imaginar que a existência encarnada da Igreja pode ser sincronicamente “suspensa” no curso da História (e a pertinência dos católicos a Ela deixa de se realizar mediante as autoridades eclesiásticas para se dar imediatamente, de um modo “espiritual”) aproxima-se de um subjetivismo protestante. Se isso fosse verdade – se isso pudesse ser verdade – não teria para quê haver Igreja. A salvação poderia ser individual (posto que não haveria atualmente possibilidade de submissão às autoridades hierárquicas visíveis) e a Fé poderia vir de uma inspiração interior do Espírito Santo (uma vez que não há Magistério Vivo para ser regra próxima de Fé e cada um precisa estudar o Denzinger por conta própria).

E é isso, no fim das contas, o que torna o sedevacantismo insustentável. Sim, é terrível o estado deplorável em que se encontra a Igreja atualmente…! Mas ninguém está eximido de sofrer na própria carne o martírio da Esposa de Cristo. É sedutora a tentação de abraçar um refinamento teórico que pareça dar sentido ao mysterium iniquitatis dos dias de hoje, à abominação no lugar santo: no entanto, é ao escárnio mesmo que Deus nos chama – e aos cristãos nenhuma cruz nos deveria escandalizar. O amor à Igreja passa por sofrer por Ela e n’Ela; e, no fundo, não é amor verdadeiro abraçar uma quimera intangível para se furtar ao trabalho – que pode perfeitamente ser frustrante, mas nem por isso menos necessário à salvação – de dedicar as próprias lágrimas a limpar (ainda que em vão!) o rosto imundo e purulento da Igreja encarnada tal como Ela se apresenta nesses tempos desgraçados em que aprouve à Providência que vivêssemos.

Publicado por

Jorge Ferraz (admin)

Católico Apostólico Romano, por graça de Deus e clemência da Virgem Santíssima; pecador miserável, a despeito dos muitos favores recebidos do Alto; filho de Deus e da Santa Madre Igreja, com desejo sincero de consumir a vida para a maior glória de Deus.

9 comentários em “E se a renúncia de Bento XVI for inválida? – II”

  1. Jorge, as razões que o prendem fielmente ao que se acredita ser o verdadeiro papa são nobres e me parecem muito bem alinhadas com o sentir da Igreja. Mesmo que os sedevacantistas estejam certos em suas teorias, não se pode imputar pecado ou cisma aos que aderiram aquilo que parecia ser o papa, pois que seguiram de boa fé o que parecia ser a regra próxima da fé. Logo, por uma graça especial, são preservados de erro formal. O pequeno livro do Cardeal Royo Marín, “Sentire Cum Eclesia”, explica muito bem isso, jogando na latrina a eclesiologia deformada dos tradicionalistas convencionais. Nem se pode exigir dos féis médios que sejam capazes de entender questões teológicas complexas, pois que todos têm seus deveres de estado para cumprir. A maioria de nós que se aventure por assuntos que estão acima de nossas capacidades têm grandes chances de cair no gnosticismo e subjetivismo protestante que você citou. O homem moderno tem um espírito prático, pouco teórico, principalmente o brasileiro.

    Contudo, discordo de você em alguns pontos, dentre eles:

    1) Discordo da forma categórica e simplista com que você nega a tese sedecavantista, pois é uma “possibilidade” real, não na forma como muitos aderiram, mas nos moldes explicados por alguns teólogos traduzidos pelo nosso nobre amigo, Felipe Coelho. Cito como exemplo um teólogo que viveu no século XIX, Cardeal João Batista FRANZELIN, S. J.

    Cardeal FRANZELIN, Sobre a vacância da Sé Apostólica, 1886; trad. br. por F. Coelho, São Paulo, nov. 2014, blogue Acies Ordinata, http://wp.me/pw2MJ-2qh

    2) Que o reconhecimento de Bergoglio como papa seja público e pacífico por toda a Igreja, sem oposição (seu artigo versa exatamente sobre essa oposição).

    3) Que não possa haver semelhança entre a atual situação da Igreja e o Grande Cisma. Haja vista que um papa legítimo renunciou pelo bem da Igreja, visando resolver a pendenga com um novo conclave, e um dos antipapas obstinou-se.

    Ademais, como não podemos explicar com exatidão o mistério da iniquidade que nos envolve nestes tempos, não é possível afirmar com tanta certeza que a tese sedevacantista seja insustentável, pois isso de certo modo seria dar um arremate final, um desfecho a esse mistério. Pois se Francisco é papa, sem sombra de dúvidas, não há que se falar em mistério da iniquidade, mas apenas em obediência, submissão e confiança. O resto é acidental.

    Não adiro com certeza, mas também não descarto a possibilidade do sedevacantismo; da mesma forma não adiro com certeza que Francisco seja um legítimo papa, mas também não descarto a possibilidade. Isso sim é estar no abismo do mysterium iniquitatis, sem aquela certeza e confiança que traz paz e serenidade.

    Abraço!

  2. Bem… como eu não entendo de questões teológicas complexas, espero que possam me ajudar. O Papa Francisco não é Papa, o verdadeiro? A renúncia de Bento XVI foi válida ou não? ou oque aconteceria com Papa Francisco (pessoa e não o que ele fez) se for invalida a renuncia de Bento XVI? Mesmo lendo tudo isso e pesquisando, ainda não conseguir entender “a hipótese de aquele que é reputado Sumo Pontífice pela virtual totalidade da Igreja visível não ser Papa verdadeiro”. Acredito que sou o que o nobre Colega Francisco disse “O homem moderno tem um espírito prático, pouco teórico, principalmente o brasileiro.” Ou a minha firme opinião, de que algo é verdade, sem qualquer tipo de prova ou critério objetivo de verificação, pela absoluta confiança que depositamos nesta ideia ou fonte de transmissão esteja fraca.

  3. Aqui no Brasil está se cogitando o impeachment da presidente pois seus opositores não se deram por vencidos na eleição e querem a todo custo o poder.

    Agora parece que na Igreja Católica também tem os que não gostaram da eleição de um papa voltado para o povo e não para os poderosos. Como não existe o recurso do impeachment do papa então se cogita que sua eleição não foi válida.

    Tanto aqui no Brasil quanto na Igreja Católica o movimento pelo impeachment ou invalidade da eleição de Francisco são basicamente orquestrados por movimentos de direita e ultra conservadores. Estranha coincidência essa.

  4. Amigo Jorge,

    Ótimas argumentações. Boas sobretudo porque falam à nossa consciência individual de Católicos para o dia 12 de Fevereiro de 2015. Como é difícil ser Católico hoje! Mas ora, se a providência de Deus assim o quis, louvado seja Deus por sermos Católicos hoje! Nesse dia de agora, dia esse que o Senhor fez para nós, para procurá-lo e nos escondermos Nele!

    Não entendo também de teologia avançada e direito Canônico. Mas conheço a cruz do dia a dia. E dela e Nela encontro o meu Senhor. Por coincidência Ele está pregado na mesma cruz!

    EU acredito que o Papa Francisco é mais prisioneiro do que o bento XVI. Espero que no coração dele tenha alguma estratégia de governo, mas por ora, aparentemente, ele parece gostar de uma “revoluçãozinha” de leve.

    Em Cristo,

  5. Ademais, a hipótese do “Antipapa Francisco”, nos moldes de “Bento XVI ainda é Papa”, precisa lidar com o fato, então, de que pode ser canônica e teologicamente possível que seja Papa alguém que faz questão de dizer, em público e repetidas vezes, que não é Papa!

    Você tem uma coleção dessas vezes ou as está presumindo (para além do momento oficial)?

  6. Eu não quis sustentar isso. Apenas que, realmente, Bento XVI recolheu-se, ainda que tenha já reaparecido algumas vezes. De fato, e assim eu esperava de um homem sereno, experiente e acertador, ele não anda a arriscar soltar bobagens por aí. Fala pouco.

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