Finalmente, após a epopéia iniciada na terça e ontem continuada, qual é o resumo da ópera? Afinal de contas, e se a renúncia de Bento XVI tiver sido inválida mesmo, o que acontece?
Pois bem. De acordo com o ensino da Igreja, provavelmente é preciso sustentar que, ainda que Bento XVI tenha sido forçado a renunciar, ainda que a renúncia proferida há dois anos passados tenha sido real e verdadeiramente nula, não muda absolutamente nada e S.S. o Papa Francisco é o Vigário de Cristo gloriosamente reinante mesmo assim.
O porquê disso é simples: razões de segurança espiritual exigem que a infalibilidade da Igreja se estenda àqueles fatos que estão tão conexos com a Revelação que, sem eles, o próprio acesso à Verdade Revelada ficaria comprometido. Categoria deste «objeto secundário da infalibilidade» é a que engloba os assim chamados fatos dogmáticos (facta dogmatica), dos quais a legitimidade da eleição de um Papa é provavelmente o exemplo por antonomásia.
A necessidade disso é fácil de ser vista por um exemplo. Todo mundo sabe que não pode negar a Imaculada Conceição da SSma. Virgem, posto que é dogma de Fé proclamado pelo Bem-Aventurado Papa Pio IX. No entanto, para que esse dogma tenha de fato o condão de obrigar o católico à Fé, é preciso que Pio IX tenha sido Papa verdadeiro – caso contrário, a “proclamação” ocorrida em 1854 seria tão-somente um teatro pomposo, sem a menor relevância para a vida espiritual dos católicos do orbe.
O mesmo pode ser dito com relação a qualquer outra coisa da vida da Igreja. O Magistério é a regra próxima da Fé; mas seria completamente sem sentido que se devesse obedecer o Magistério e, ao mesmo tempo, não fosse nunca possível ter certeza a respeito de se aquilo que se apresenta como o Magistério – e o Magistério Pontifício é o Magistério por excelência – é, realmente, de fato e de direito, o Magistério da Igreja Católica. A submissão às legítimas autoridades eclesiásticas seria um flatus vocis na impossibilidade prática de reconhecer tais autoridades legítimas. A regra próxima da Fé seria absurda, um mandamento impossível de ser cumprido.
Ludwig Ott assim se expressa a respeito dos fatos dogmáticos (negritos meus, itálico no original):
Al objeto secundario de la infalibilidad pertenecen: a) las conclusiones teológicas de una verdad formalmente revelada y de una verdad de razón natural; ß) los hechos históricos, de cuyo reconocimiento depende la certidumbre de una verdad revelada («facta dogmatica»).
E, em outro ponto:
Entre las verdades católicas se cuentan:
[…]
2. Los hechos dogmáticos (facta dogmatica). Por tales se entienden los hechos históricos no revelados, pero que se hallan en conexión íntima con una verdad revelada, v.g., la legitimidad de un Papa o de un concilio universal, el episcopado romano de San Pedro. En sentido más estricto se entiende por hecho dogmático el determinar si tal o cual texto concuerda o no con la doctrina de fe católica. La Iglesia no falla entonces sobre la intención subjetiva del autor, sino sobre el sentido objetivo del texto en cuestión; Dz 1350: «sensum quem verba prae se ferunt».
Não é portanto possível haver dúvidas com relação à legitimidade da eleição de um Papa. A infalibilidade da Igreja de Cristo se estende também ao resultado dos seus conclaves; pertence ao conjunto das verdades católicas crer que aquela pessoa que se apresenta como Papa é de fato o Papa da Igreja. Não fosse assim, repita-se, seria impossível ter certeza a respeito de todo o resto.
Os próprios sedevacantistas, a propósito, registre-se, dizem que a aceitação de uma pessoa por toda a Igreja como Papa faz com que ele seja Papa verdadeiro:
Sim, se a Igreja universal com unanimidade moral aceita pacificamente um homem como Papa legítimo, ele realmente deve ser um Papa legítimo. A razão disso é que o Papa é a regra próxima da fé. Os fiéis aceitam o ensinamento doutrinal do Papa e, se a Igreja inteira aceitasse uma falsa regra da fé, Cristo estaria expondo Sua Igreja ao erro, o que não pode acontecer.
John S. DALY, Bento XVI e a aceitação pacífica pela Igreja inteira, 2006,
trad. br. por F. Coelho, São Paulo, fev. 2012, blogue Acies Ordinata, http://wp.me/pw2MJ-1gg
A aceitar a argumentação que o John Daly emprega em sequência para fugir da necessidade de reconhecer o Papa como Papa – a de que os papas conciliares na verdade não gozam de “aceitação pacífica pela Igreja inteira” -, não haveria sentido em restringir a sua aplicação ao Papa Francisco. Por força de conseqüência, o mesmo teria que ser dito dos outros Papas (inclusive Bento XVI). Não se sustenta, portanto, esta espécie de “sedevacantismo restrito”, que nega a legitimidade somente ao Papa Francisco e não aos seus predecessores imediatos. Na prática, a aceitação da qual goza o Papa Francisco não é significativamente diferente – nem quantitativa nem qualitativamente – da que gozava Bento XVI ou S. João Paulo II. O murmurinho pela ilegitimidade do Papa Francisco, quer se baseie na invalidade da renúncia de Bento XVI, quer em defeitos processuais ocorridos na condução do conclave, é obra de uma minoria sinceramente inexpressiva para além dos palanques que é próprio da internet conceder a qualquer pessoa. Não é relevante. Não a ponto de valer o risco à salvação da própria alma que a insubmissão ao Romano Pontífice acarreta.
Portanto, mesmo que o Papa Bento XVI tivesse sido forçado a renunciar, mesmo que a Declaratio de 2013 não tivesse surtido efeitos jurídicos, Bento XVI teria deixado de ser Papa no dia da fumata bianca do fim do conclave que elegeu o Papa Francisco, no instante em que ele foi apresentado na sacada da Basílica de São Pedro e recebido como Papa pelos católicos do mundo inteiro. Isso porque a Igreja não pode ter senão um Papa, e se o homem que toda a Igreja reconhece como Papa é Papa verdadeiro, então o Papado pertence a ele e não a nenhum outro. A situação de fato sobrepõe-se à de direito e, neste caso, confere eficácia jurídica à situação que por si mesma seria ilegítima. Para que fosse diferente, o Papa legítimo precisaria reclamar o sólio petrino. Bento XVI jamais o fez.
Por fim, uma última dúvida. Na hipótese de que Bento XVI seja realmente o Papa verdadeiro, o que aconteceria se – Deus o livre! – ele viesse a morrer amanhã?
a) A Sé ficaria vacante, posto que o Papa Francisco não teria sido eleito legitimamente?
b) O Papa Francisco se tornaria imediatamente Papa, posto que o único obstáculo a que ele ocupe a Sé Apostólica é o fato de ela já se encontrar regularmente ocupada?
O primeiro caso recai no sedevacantismo clássico, sendo-lhe portanto imputável todas as críticas e dificuldades que por décadas dirigimos aos sedevacantistas. No segundo caso… então a legitimidade do governo da Igreja está atrelada à contingência biológica de morrer um ancião que tem gastado os últimos anos da vida a repetir em público que o Papa a quem é devida a submissão católica não é ele próprio, mas sim o Papa Francisco? Os que adotam semelhante tese, então, não possuem nenhuma perspectiva quanto ao futuro, estando apenas aguardando o Bispo emérito de Roma morrer para a situação da Igreja ipso facto se regularizar – é isso mesmo? Que sentido isso faz?
Jorge e amigos,
Digam NÃO AO ABORTO:
http://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,gravida-defende-descriminalizacao-do-aborto-e-post-viraliza-no-facebook,1633439
http://politica.estadao.com.br/blogs/roldao-arruda/de-mulheres-catolicas-para-cunha-temos-cadaveres-aos-milhares/
Oremos por nosso País.
Nossa, mas é assunto deveras palpitante, não? Eu me pergunto: a quem servem essas contestações? Como diz o ditado: o verme está no fruto!
” “all the other considerations and hypotheses are wrong”, including assumptions that the Pope’s resignation was not valid or had not been done in full freedom.
“Hypotheses cannot be based on things that are not true and totally absurd,” Archbishop Gänswein said. “Benedict himself said he made his decision with freedom, without any pressure, and he assured his ‘reverence and obedience’ to the new Pope.’”
“He is very serene and certain in this: His decision was necessary and made ‘after having repeatedly examined my conscience before God’,” he said, citing words from the Pope’s announcement.”
” “Benedict himself said he made his decision with freedom, without any pressure, and he assured his ‘reverence and obedience’ to the new Pope.’”
http://www.catholicherald.co.uk/news/2015/02/12/benedict-xvi-has-no-regrets-about-his-decision-to-resign-says-aide/
Na boa, essas hipóteses sobre a invalidade da renúncia têm tanto valor quanto às que supõem que “Elvis não morreu”!
Note-se que de qualquer forma vocês estão a discutir a própria Fé, pois o raciocínio central com que Jorge dá solução à questão é cíclico. Em religião isso não desmerecimento, só que precisa ficar claro que é religião e não filosofia. E eu o aceito.
“Na boa, essas hipóteses sobre a invalidade da renúncia têm tanto valor quanto às que supõem que “Elvis não morreu”!”
Sim. É um espantalho que pinta com as cores do sedevacantismo quem critica o Papa Francisco, como o Arcebispo D. Pawel, D. Schneider e o Cardeal Burke.
Perceba que as críticas pertinentes desse Arcebispo ao atual pontificado, que seriam o foco natural de atenção, passaram ignoradas nesta discussão, sem merecer um único comentário.
OS INSTRUÍDOS PELO ESPÍRITO DE DEUS NÃO SE PERTURBARÃO…
A grave crise por que passa a Igreja no presente deve ser vista com serenidade, sendo o certo é que nunca gozou de uma paz total, sendo hoje atacada a partir de dentro, os piores inimigos esses varios internos, infiltrada de maçons e comunistas, mesmo de protestantes querendo que se equalize a suas relativistas seitas.
Os cardeais Bruno Forte, Kasper, Küng etc., seriam suspeitos de infiltrados maçônicos e candidatos à lista de Mino Peccorelli, se estivesse entre nós…
Há procedimentos atuais na Igreja defendidos por certos infiltrados “progressistas” que podem – se não é que devem – serem questionados em comparação a outros que lhes foram sempre opostos, como conceder a S Comunhão a pessoas em estado de grave pecado, caso de amasiados e admissão a impenitentes homossexuais na Igreja e “aproveitar-lhes suas qualidades”, tudo em nome de falsos acolhimento e misericórdia, assim como a Igreja adaptar-se ao modernismo e a seu liberalismo…
Já pensou em gays-glbts doutrinando sobre ética-moral e pureza cristãs?
Creio que a eleição do Papa Francisco foi válida – nem pensar em o julgar ou querer o depor: sedevacantista? – nem também cair noutro extremo: inerrancia papal sob todas as circunstancias, como em falas de forma particular.
Na segunda carta de São Paulo aos Tessalonicenses, ele discute a grande apostasia que precederá ao surgimento do anticristo, durante este tempo os homens não terão amor à verdade, que Deus punirá, enviando-lhes a “operação do erro … que sejam julgados todos os que não creram na verdade”, como é no presente momento em que se patrocinam tantos absurdos, como o recente carnaval, uma orgia, equivalendo aos participantes passarem uns dias em “retiro espiritual” com Satã!
Ele, então, adverte em Tessalonicenses, “ficardes firme, e manterdes as tradições que aprendestes, quer por palavra, quer por epístola nossa”, mostrando, assim, que a adesão à Tradição da Igreja é o antídoto que irá proteger de sermos desviados durante o tempo da apostasia, parecendo ser o presente momento, tempo em que o Senhor Deus é vilipendiado e desafiado publicamente, enquanto ao inverso se procede à entronização de Satã.
Jorge, valeu o esforço. É importante que esse tema seja debatido. Mas não acho que seus argumentos sejam bons.
1. “Isso nunca aconteceu antes” – e daí? Várias coisas confusas que aconteceram na Igreja ao longo de sua história tiveram a sua primeira vez, inclusive as outras situações envolvendo antipapas, que você enumerou. Que haja uma primeira vez para um determinado problema é coisa necessária ou não é? Evidentemente que sendo a primeira vez, não temos experiência de como lidar com o problema e a situação fica mais confusa.
2. “Isso não tem lógica” – você carregou nos adjetivos, mas a suposta falta de lógica alegada se baseia unicamente no fato de que “não dá para edificar todo o colosso da Igreja unicamente sobre as disposições subjetivas de um homem”. Claro, claro, então podemos em tese fazer o mesmo com Bergoglio, pressionando-lhe a renunciar e caso ele se submeta ficando naturalmente em silêncio sobre suas disposições interiores, a vida segue normalmente. É isso? O argumento é fraco, desenvolva melhor.
3. Você faz um raciocínio sobre a invalidade dos atos de Francisco caso ele não seja papa. Curiosamente você mesmo contra-argumenta, com argumentos irrefutáveis, em dois dos 3 atos citados. No terceiro caso, em relação a “cultos litúrgicos espúrios”, a coisa não fez o menor sentido. A ausência de uma canonização formal não torna o culto necessariamente espúrio. Não sabe você que a canonização só se estabeleceu no segundo milênio e que todos os santos do primeiro milênio não são formalmente canonizados ou beatificados? Alguns até duvidosos como o “beato” Carlos Magno? E caso se tenha estabelecido um culto espúrio, por que isso seria impossível? Isso não vai durar para sempre, não é uma coisa determinada por toda a eternidade. Todos os santos dizem que nos tempos do anticristo a Igreja real vai de algum modo “desaparecer” ou “ficar escondida”, como que morta, como Cristo no sepulcro. Se isso pode acontecer no fim dos tempos, por que não poderia acontecer em alguns aspectos também hoje?
Repito, valeu o esforço. Nesse caso, nessa situação dramática, a palavra de todos é importante. Mas desenvolva melhor, que não está bom, por enquanto.
Fernando,
Sim, é exatamente isso. Se o Papa Francisco for forçado a renunciar, outro Papa lhe suceder e este último vir a ser aceito pacificamente pela totalidade moral da Igreja, ele é Papa. Exatamente isso.
Mas é lógico que torna. Uma vez que o processo foi estabelecido pela autoridade suprema de governo na Igreja, ele passa a ser conditio sine qua non para a licitude do culto. Então você acha que eu posso iniciar um culto público, por minha conta, a (digamos) D. Isabel Cristina Leopoldina, e isso não implica em erro por parte dos fiéis que a ele adiram? Ora, se Bergoglio fosse um falso Papa, ele não teria mais autoridade para canonizar (digamos) SS. João XXIII do que eu para a Princesa Isabel. E, da mesma forma que os fiéis que me seguissem no culto espúrio a D. Isabel estariam em erro, a totalidade da Igreja que seguisse Bergoglio no culto a João XXIII estaria em erro igualmente. Mas, ora, a totalidade da Igreja não pode errar em matéria litúrgica. Logo, não é possível que o culto a SS. João XXIII seja um falso culto. Logo, não é possível que quem o promulgou não tenha autoridade para o fazer. Logo, não é possível que o Papa Francisco seja um falso Papa.
Que santos, cara-pálida, disseram exatamente o quê? É dogma de Fé que haverá Papas até a Consumação dos Séculos. Si quis dixerit, non esse ex ipsius Christi Domini institutione seu iure divino, ut beatus Petrus in primatu super universam Ecclesiam habeat perpetuos successores, anathema sit – disse o Concílio do Vaticano I (cf. OTT).
Um Antipapa só existe em oposição a um Papa legítimo. Assim, S. Pedro continua sempre tendo sucessores de fato, ainda que eles possam talvez não ser reconhecidos pela totalidade da Igreja. Se a gente pode dizer que haverá um interregno de tempo não-determinado (podendo arrastar-se por gerações) em que a Sé de Pedro estará pacificamente vacante (sem que ninguém se preocupe em ocupá-la!), então a definição do Primeiro Concílio do Vaticano perde o sentido.
Inicialmente a “totalidade moral” da Igreja vai aceitar qualquer coisa, porque não tem a princípio elementos para questionar. Mas e se as informações começarem a aparecer depois? Hoje acredito que já não possamos dizer que a “totalidade moral” da Igreja aceita mais Bergoglio como papa pacificamente. As dúvidas são muitas.
Segundo, explique então para que raios serve o cânon que fala sobre a renúncia papal. Esse cânon diz que a renúncia só é válida com duas condições. Você está dizendo que ela é válida em qualquer caso, ou seja, o cânon é letra morta. Mas com que autoridade papal você diz que o cânon não vale nada?
Terceiro, esse seu raciocínio tem algumas consequências, como por exemplo, o fato de que os cardeais poderiam combinar de alterar a lei do Conclave, coisa que seria competência do papa. Poderiam estabelecer outra regra, eleger o papa e ninguém ia saber. O que aconteceria se as pessoas descobrissem depois que o Conclave não seguiu a lei papal?
Essa ideia de “aceitação é pela totalidade moral da Igreja” significa o que na prática? Não vaiar o cara de branco que aparecer na sacada de São Pedro? Mas repito ali ninguém tem condições de questionar nada. Mesmo se um cardeal quisesse questionar alguma coisa não seria antes desse momento. Quantos dias um cardeal teria para questionar o Conclave, antes que você dissesse que o papa foi aceito moralmente?
Em relação a canonização muitos já eram beatos ou veneráveis. E mesmo que fosse espúrio, o que você precisa explicar é por que isso não poderia acontecer eventualmente num momento de crise da Igreja? Essas canonizações podem ser anuladas por um papa posterior. Por que você vê como impossível que isso aconteça em tempos de crise?
E Jorge, não se faça de besta, qualquer santo que tenha comentado sobre o tempo do anticristo diz que a Igreja vai sofrer uma paixão como a de Cristo. Eu não disse que a sequencia de papas se quebraria. Disse que pode acontecer de o papa verdadeiro ficar escondido, com a Igreja verdadeira aparentemente morta.
Por ultimo, você está se apegando muito à definição da palavra “antipapa”. Para lhe satisfazer vamos usar conceito geral de “falso papa”. Um falso papa pode ser um “antipapa”(aceitando a definição que vc quer para essa palavra), ou seja, estar em oposição franca a um papa legitimo, mas por que não poderia haver um “falso papa” em outras condições? A questão é que você está limitando as possibilidades da vida real sem conseguir provar por que isso ou aquilo seria impossível. Você está discutindo dicionário, eu estou falando do mundo real.
Fernando,
Ô! Muitíssimas. Todas do naipe que o Lampedusa citou aqui…
Fala sério, de dois anos pra cá, quantas Igrejas particulares separaram-se de Roma (v.g. deixando de rezar pelo Papa Francisco no cânon da Santa Missa)? Quantas ordens religiosas? Quantas novas comunidades? Quantas paróquias? Quantos padres?
O que temos, de verdade, além do burburinho anônimo da internet?
Como eu nunca disse nada sequer remotamente parecido com isso, obviamente você não me está lendo com a devida atenção.
O que eu escrevi foi que «mesmo que o Papa Bento XVI tivesse sido forçado a renunciar, mesmo que a Declaratio de 2013 não tivesse surtido efeitos jurídicos [i.e. – acrescento agora – a renúncia tivesse sido inválida], Bento XVI teria deixado de ser Papa no dia da fumata bianca do fim do conclave que elegeu o Papa Francisco, no instante em que ele foi apresentado na sacada da Basílica de São Pedro e recebido como Papa pelos católicos do mundo inteiro».
O que eu estou dizendo é, justamente, que Bento XVI deixaria de ser Papa no instante em que a totalidade moral da Igreja reconheceu Bergoglio como Papa Francisco, independente da renúncia ter sido válida ou não. Uma vez que isto é o cerne do post, espanta que não tenha sido notado…!
Jamais disse nada perto disso. O cânon serve para regular a renúncia. Se ela tivesse sido forçada, seria inválida.
Se fosse inválida, então Bento XVI poderia reclamar o Sumo Pontificado. Mas – ó! – ele não o tem reclamado até agora. Pior, ele insiste em que a renúncia foi válida. A única pessoa, portanto, que poderia alegar invalidade da Grã Renúncia tem teimado em a referendar.
Com toda a certeza o cânon não serve (e nem pode servir) para que terceiros afirmem ser inválido um ato jurídico que aquele que o praticou disse antes, durante e depois que era válido. Com segurança, o cânon não serve para permitir que alguém rejeite a submissão ao Papa reinante com base na possibilidade (da qual não se vislumbra um único indício no horizonte, aliás) de que Bento XVI, um dia, venha a desdizer tudo o que vem consistentemente dizendo há dois anos e diga que a renúncia de 2013 foi inválida.
Exato.
Perfeitamente.
Absolutamente nada. É exatamente para isso que a eleição do Sumo Pontífice é um fato dogmático!
Quem garante que isso nunca aconteceu? Quem garante que todos os conclaves foram ilibadamente conduzidos? Quem garante que nunca houve influência externa, quebra de regras, conchavos, simonia?
Ninguém pode garantir, e é exatamente porque a Igreja precisa ter Papas ainda que o processo de eleição pontifícia não seja “auditável” que a aceitação pacífica de um homem como Papa pela totalidade moral da Igreja faz com que esse homem seja Papa, sanando quaisquer vícios processuais que porventura o tenham conduzido ao Sumo Pontificado. Simplesmente tem que ser assim, não há outra maneira. De que outro modo seria? Como você sabe que Pio XII foi Papa?
“E pra quê servem as regras?”, você vai perguntar. Para serem seguidas e, caso não sejam, para que tal seja imediatamente invocado pelo grupo de eleitores que se sentir prejudicado com a violação delas. Fazendo isso, automaticamente vai haver dúvidas sobre o resultado da eleição, acabando com a aceitação pacífica e gerando uma citação de crise (potencialmente de cisma) onde pode não ser possível saber quem é o Papa verdadeiro, mas sabe-se que ele existe. Essa existência e suficiente para abarcar o aspecto objetivo do dogma; aquela dúvida legítima basta para escusar a sujeição subjetiva ao Soberano Pontífice reinante que se exige à salvação individual.
“Ah, e se, vinte anos depois, os cardeais-eleitores ainda vivos revelarem que, no conclave, a turma tava muito doida e resolveu jogar um bamborim para saber quem era o Papa?”. Sinceramente, nesse caso extremo eu não sei, mas tendo a pensar que não tem nenhuma lógica condicionar a validade de um papado à morte de todos os cardeais que elegeram o Papa. Um caso absurdo desses, quando acontecer, vai demandar uma solução das autoridades da Igreja, não de mim. O que é certo para além de toda certeza é que ninguém pode se escusar de reconhecer como Papa o homem que toda a Igreja apresenta como Papa com base na possibilidade (meramente metafísica) de que os seus eleitores revelem, no futuro, algum vício que torne o conclave ilegítimo. Se isso fosse assim, ninguém estava obrigado a obedecer a Papa nenhum, pois na prática só se saberia com certeza da validade da sua eleição muitos anos depois que ele morresse.
Pois é, significa o quê? Se significa simplesmente que os católicos apontam uma determinada pessoa como Papa e não outra, então o Papa Francisco é Papa. Se significa que as pessoas pautam de fato a sua vida pelo que o Papa diz enquanto Papa (v.g. determinando-se como se a contracepção artificial fosse pecado mortal – é um dos exemplos que o Daly dá), então não é Papa nem Francisco, nem Bento e nem João Paulo. Foi exatamente o que eu disse no artigo, para o qual peço uma leitura mais cuidadosa (e para os textos linkados também).
Não sei. Pra mim, não tem dia nenhum. É pra questionar na hora. Afinal de contas, se houve vício no Conclave, os cardeais-eleitores o sabem antes de o Conclave terminar.
No entanto, é como falei acima: ainda concedendo que seja “imprescritível” o “direito” de “impugnar” um conclave (!), então a) o problema das consequências disso vai ser tratado pelas autoridades da Igreja (não por mim) quando surgir, e – principalmente! – b) ninguém está dispensado de se sujeitar ao Papa que se apresenta concretamente como Papa com base na possibilidade de que algum dia a sua eleição venha a ser impugnada. Porque se assim for na prática ninguém está nunca obrigado a se submeter a Papa algum.
Porque a indefectibilidade da Igreja não está condicionada aos tempos de paz. Afinal de contas, é justamente nas crises que ela é mais necessária. No entanto, se se puder reconhecer que a Igreja “material” apostatou em tempos de crise etc., isso é equivalente ao sedevacantismo clássico. Eu também disse isso no meu texto.
Perfeitamente. Pode. Cadê o Papa verdadeiro? Alguém tem que ficar com ele. Se o Papa estiver tão escondido que não haja um único cristão na face da terra que o reconheça como Papa, então a Igreja visível deixa de existir – o que também não pode acontecer.
Que outras condições? Um falso Papa que ninguém saiba que é falso Papa? Porque isso lança às favas a visibilidade da Igreja e transforma a soteriologia católica em um misto de gnosticismo e protestantismo. Escrevi aqui:
No fundo, pretender que o Catolicismo está somente ao alcance de uma meia-dúzia de iniciados (que conseguem perscrutar os mistérios da crise moderna e enxergar, para além do que dizem as sedizentes autoridades católicas contemporâneas, aquilo que é a Fé verdadeira) cheira a gnosticismo, e imaginar que a existência encarnada da Igreja pode ser sincronicamente “suspensa” no curso da História (e a pertinência dos católicos a Ela deixa de se realizar mediante as autoridades eclesiásticas para se dar imediatamente, de um modo “espiritual”) aproxima-se de um subjetivismo protestante. Se isso fosse verdade – se isso pudesse ser verdade – não teria para quê haver Igreja. A salvação poderia ser individual (posto que não haveria atualmente possibilidade de submissão às autoridades hierárquicas visíveis) e a Fé poderia vir de uma inspiração interior do Espírito Santo (uma vez que não há Magistério Vivo para ser regra próxima de Fé e cada um precisa estudar o Denzinger por conta própria).
Sem contar que semelhante idéia a) não tem operacionalidade nenhuma e b) é um raciocínio circular tosco.
a) Se a imensíssima maior parte das pessoas não tem condições de saber os intrincados raciocínios teológicos que conduzem à tese de que o Papa não é Papa – e, portanto, salvam-se aderindo àquele que se apresenta como Papa mesmo -, então a salvação extraordinária (pela ignorância invencível) torna-se ordinária para os próprios católicos. Se as pessoas que não sabem que o Papa não é Papa vão se salvar assim mesmo e, as meia-dúzia de gatos pingados que o sabem, não podem fazer absolutamente nada, então para que serve esse conhecimento?
b) Se a confusão da crise é tal que eu não estou moralmente obrigado a romper com o Papa (i.e., se é defensável que o Papa é Papa), isso significa que não é necessário à salvação recusar-se à submissão ao Papa. Ora, mas a submissão ao Romano Pontífice é absolutamente necessária à salvação de toda criatura, como reza a Unam Sanctam. Para desobrigar de um tão grave dever, a única coisa que justificaria seria a salvação da própria alma – i.e., um caso tal em que sujeitar-se ao Papa levaria à perdição. Mas acabou-se de dizer que a tese de que o Papa é Papa é defensável. Logo, não é absolutamente necessário à salvação romper com o Papa. Se não é absolutamente necessário à salvação romper com o Papa, deixa de existir a justificativa que haveria para se recusar aos deveres impostos pela Unam Sanctam e eu não posso rejeitar o Papa.
Abraços,
Jorge Ferraz
Vaticano de Francisco recebe grupo pró-gay.
Vaticano recebe grupo católico gay em audiência, discretamente
http://blogonicus.blogspot.com.br/2015/02/vaticano-de-francisco-recebe-grupo-pro.html
Si non caste, saltem caute.
Jorge, para finalizar, uma última questão.
Suponhamos que Ratzinger passasse a reivindicar o papado alegando que não renunciou com plena liberdade.
a) Ratzinger voltaria a ser papa independente de qualquer coisa ou apoio;
b) Bergoglio continuaria papa independente de qualquer coisa ou apoio;
c) Dependeria do tamanho do partido de cada um ou de outras circunstâncias.
A pergunta que eu faço refere-se a qualquer caso semelhante a esse: um papa que renúncia pressionado e depois toma coragem ou vê a oportunidade de reivindicar novamente seu posto.
No caso específico que nós estamos vivendo, é de se supor que uma grande parte dos católicos ficasse ao lado de Ratzinger, não só pelo raciocínio legal de que se a renúncia não foi livre, então ela foi inválida e ele tem o direito de reivindicar, como também pela preferência em relação à pessoa. Podia ser que em outro caso, o papa renunciante e reivindicante não tivesse tanto apoio, mas no presente caso o apoio seria inevitável. Esse grande apoio lhe conferiria novamente uma “fama” de papa, que na verdade ele nunca perdeu, dado a condição de papa emérito. Digo isso pro caso de você responder letra “b”, pois se para Bergoglio se tornar papa bastou a “fama pública” que lhe foi conferida, e não a lei, então caso Ratzinger tivesse mais apoio que Bergoglio numa eventual reivindicação, não poderíamos raciocinar de maneira legalista, visto que não raciocinamos assim da outra vez, correto?
Fernando,
Não sei o que acontece. Não sei se os teólogos já deram uma resposta para o problema.
Em tal situação, estaríamos (agora sim) em um período em que existe um Papa verdadeiro e um Antipapa. Os argumentos em favor da legitimidade de um (a renúncia não se fez de verdade) e de outro (ele deteve, ainda que por um breve lapso de tempo, a posse tranquila e incontrastada do sólio pontifício) parecem bons. Talvez não dê para saber concretamente qual é qual.
Em todo caso, é como disse em comentário anterior: não tem lógica pretender suspender a submissão ao Romano Pontífice atual e concretamente reinante sob a alegação da possibilidade de que, no futuro, ele possa vir a deixar de gozar da aceitação tranquila de que goza no presente.
Em tempo: não é “fama pública” (uma vez que Ratzinger continua sendo uma pessoa famosa, inteligente, santa, culta etc.), e sim “aceitação da totalidade da Igreja” (i.e., reconhecimento da existência de uma relação bilateral superior-subordinado, onde a virtual totalidade da Igreja que se reconhece no pólo “subordinado” aponta ao Papa Francisco – e não a Bento XVI – como constituinte do pólo “superior”). Ratzinger continua com fama pública. O que ele deixou de ter, e passou a Bergoglio, foi o reconhecimento público de sua pessoa como Papa.
Abraços,
Jorge
o raciocínio central […] é
cíclicocircular