Os santos católicos, decididamente, não eram as figuras adocicadas – verdadeiros paspalhões! – que costumam pintar por aí. Ainda nos dias de hoje; lembrava-me, agora, de um texto a esse respeito que eu lera há muitos anos, da pena do falecido prof. Orlando Fedeli (que Deus o tenha!). Recuperei-o no Google; faz mais de uma década. A passagem cuja impressão se me apresentava mais vívida à memória era a seguinte:
Ser santo era fazer milagres, andar de camisolão azul celeste, com uma flor de lírio na mão, e com jeito semifeminino.
Lembro-me de que quando me disseram que os santos eram assim, decidi não ser santo.
Ah se me tivessem dito que os santos — todos os santos foram combativos e foram odiados — eram “briguentos”! Ah se me tivessem dito que ser santo era ser combativo, era ser herói no mais alto sentido desse termo!
E eu me lembrava disso porque hoje é o dia de São João Batista; e, decerto, o santo passaria longe, muito longe!, dos padrões de “civilidade” e “bom trato” que se exigem nos dias que correm. Certo, o dia de São João Batista – 24 de junho – é o dia do seu nascimento e, portanto, existe uma certa lógica nas suas representações como criança de colo que são tão comuns neste período junino; mas isso não justifica, absolutamente, que nós nos esqueçamos do homem que ele se tornou e da história que ele legou ao mundo.
Não vou nem discorrer muito sobre o fato de que ele vivia fora da cidade, longe da convivência social normal, vestido somente com peles de animais e comendo coisas nojentas como gafanhotos e mel silvestre. (Mesmo assim, as pessoas acorriam ao deserto para vê-lo.) Não vou me deter no fato de que ele, com as suas palavras profundamente indelicadas, trovejava invectivas e ameaças que, hoje, dir-se-iam fanáticas: coisas como “raça de víboras, quem vos ensinou a fugir da cólera vindoura?” ou “o machado está posto à raiz das árvores, e toda ela que não der frutos será cortada e lançada ao fogo!”. (Ainda assim, as pessoas se aproximavam para ouvi-lo.)
O que hoje não me sai da cabeça é uma outra passagem, já mais próxima do final da sua vida. Herodes, o rei, tomara por concubina a esposa do seu irmão. Por conta disso, São João Batista o repreendeu duramente, e Herodes o mandou encarcerar. Depois disso, em uma festa de aniversário do velho rei, a sua enteada dançou-lhe tão lubricamente que o deixou com o baixo ventre em chamas. Cego de volúpia, disse à filha de Herodíades que lhe pedisse o que quisesse. A adolescente, provavelmente com bem pouca malícia de vida afora a necessária para seduzir velhos monarcas, correu à barra da saia da mãe para lhe pedir conselhos. “A cabeça de João Batista em uma bandeja de prata!”, foi o pedido que se tornou proverbial. E assim fez Herodes. Entristecido, como nos contam os Santos Evangelhos, mais ainda assim o fez.
É curioso que Herodíades tenha guardado tanto rancor contra o homem que ousou desaprovar as suas aventuras sexuais com o cunhado. A fixação da própria Salomé para com São João Batista, aliás, foi retratada de maneira impressionante na peça de Oscar Wilde que, hoje, vale uma (re)leitura: o santo incorruptível, a cujos lábios Salomé só tem acesso – a despeito de todos os seus rogos! – na bandeja de prata; e o Tetrarca todo-poderoso, suplicando pateticamente para que a filha de Herodíades simplesmente dançasse para ele. Talvez poucas obras da literatura mundial tenham conseguido retratar, assim, com tanta clareza, como é desprezível o homem escravo de suas paixões – e, por via de contraste, como são admiráveis os santos no seu desprezo pelas coisas terrenas.
Que abismo atrai abismo nós já sabemos muito bem, e a história de Herodes é um belo exemplo dessa progressão no mal: o sujeito começa desejando a mulher do irmão, depois já está fantasiando com a enteada e termina como mandante de um assassinato que ele próprio, por si só, de início não queria realizar. Mas o que mais nos interessa aqui é o fato de São João Batista ter censurado, pública e asperamente, esse aspecto (que hoje se diria “da vida privada” ou “da intimidade”) do tetrarca da Galiléia!
Se o sujeito quer tomar para si a mulher do seu irmão – e se ela também o quer, como parece ser o caso -, o que as outras pessoas têm a ver com isso? E se, uma vez cansado da mãe, o velho volta os seus desejos libidinosos para a filha dela, isso é porventura da conta de alguém? Esse tal de João Batista – perguntar-se-ia, certamente, nos dias de hoje – não tem mais o que fazer além de ficar se metendo na vida dos outros?
O que esta passagem da vida de São João nos ensina é que a imoralidade tornada pública é, sim, digna de censura igualmente pública, e de censura inclusive violenta se for o caso. Apesar de o santo não ter nada a ver com a vida de Herodes e de Herodíades – com o que dois adultos fazem consentidamente entre si -, o escândalo provocado pelos maus hábitos praticados às claras é passível, sim, de ser criticado, deplorado e condenado pela autoridade espiritual e moral de quem anuncia o Evangelho – igualmente às claras. Ninguém pode ser coagido a uma vida íntegra, é verdade; mas os que levam uma vida dissoluta não têm direito algum a silenciar a voz dos que anunciam a importância de se levar uma vida reta e agradável a Deus.
Nos dias de hoje, em que querem relegar a moral à esfera subjetiva e onde parece ser já senso comum a idéia de que ninguém pode condenar os hábitos de outrem, lembremo-nos de São João Batista e peçamos, sempre, a sua poderosa intercessão. Olhemos para ele e nos convençamos, de uma vez por todas!, de que os santos não são aquelas pessoas que estão sempre em paz com todo mundo. Imitemos a vida de São João, também e principalmente, na sua vocação profética de chamar o mal de mal, às claras e diante de todo o mundo, ainda que tentem nos calar os poderosos. Ainda que isso nos valha o ódio dos dissolutos. Ainda que os leve a pedir as nossas cabeças.
Texto Muito bom.
Brilhante texto! Nós, católicos, temos que parar de ser omissos e bonzinhos com todo mundo para agradar a todos. Nossa função é proclamar o Evangelhos, às claras, para todos os povos. Se não usarmos os nossos talentos para produzir mais, o Senhor nos lançará fora de seu Reino, onde haverá choro e ranger de dentes.
Estou “rindo” com a desgraça de uma lembrança. Segundo consigo imaginar, uma determinada pessoa muito engajada na Igreja retrucaria: “O Senhor não quer divisão. Esse Jorge está com o espírito da divisão. É triste, meu irmãos. Devemos nos amar.”
Gostaria de parabeniza-lo pelo texto. Ainda ontem, após a Santa Missa, eu dizia aos jovens: “Nós venceremos pelo Amor, mas um Amor que seja firme, que não seja bom-mocismo politicamente correto e que seja capaz de desmascarar o mal e o demônio publicamente. O inimigo tem que ser denunciado, bem como toda a sua atividade imunda e nefasta. Cristianismo verdadeiro nunca foi essa baboseira melosa que vemos em determinados círculos ditos “católicos”. Deus lhe abençoe copiosamente.
Bombástico Jorge. Falou Deus pela boca de Jorge. Que te faça o Senhor, tão guerreiro quanto ele, o santo.
Jorge, Pax et bonum!
Gostei muito do texto, mas não compreendi quando você fala “de censura inclusive violenta se for o caso”. Você pode me esclarecer? Seria usar de violência? Desculpe-me realmente não entendi.
Daniel, pax!
Falo de censura firme, dura, ríspida, até mesmo “ofensiva” se for o caso. Pensava na palavra de S. Paulo: «repreende-os severamente, para que se mantenham sãos na fé».
“Com efeito, Herodes havia mandado prender e acorrentar João, e o tinha mandado meter na prisão por causa de Herodíades, esposa de seu irmão Filipe. João lhe tinha dito: Não te é permitido tomá-la por mulher! De boa mente o mandaria matar; temia, porém, o povo que considerava João um profeta. Mas, na festa de aniversário de nascimento de Herodes, a filha de Herodíades dançou no meio dos convidados e agradou a Herodes. Por isso, ele prometeu com juramento dar-lhe tudo o que lhe pedisse. Por instigação de sua mãe, ela respondeu: Dá-me aqui, neste prato, a cabeça de João Batista. O rei entristeceu-se, mas como havia jurado diante dos convidados, ordenou que lha dessem; e mandou decapitar João na sua prisão. A cabeça foi trazida num prato e dada à moça, que a entregou à sua mãe.” (S. Mateus 14,3-11)
O cisma anglicano se deu assim: o Papa Clemente VII se recusou a conceder o divórcio a Henrique VIII (um homem de sete mulheres, adúltero e uxoricida), tal como São João Batista censurou Herodes. O rei Henrique VIII ficaria satisfeito [se o Papa aceitasse o adultério], e não teria acontecido o cisma anglicano, não é mesmo? Mas a Santa Igreja preferiu perder toda a Inglaterra a trair o Evangelho [1]. É é assim de tem que ser! Se temos e cumprimos com o Santo Evangelho, temos tudo, e não importa como o mundo nos veja, pois não é de nós agradarmos a concupiscência do mundo, porquanto ele odiou o Nosso Senhor e Salvador antes de nós (S. João 15,18-19). Temos que nos revestir de cilício e cinza e clamar por toda parte (S. Mateus 11,21).
† A Paz do Nosso Senhor Jesus Cristo (Jo 14,27) †
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[1] “A Igreja Anglicana e a profecia de São Domingos Sávio”, O Catequista.