Recebi por WhatsApp de um amigo uma manchete jornalística, em tom eufórico, segundo a qual o Papa Francisco conclamava a uma solução concreta para as famílias não-tradicionais. A frase verdadeira, proferida na homilia em Guayaquil, é a seguinte:
Pouco antes de começar o Ano Jubilar da Misericórdia, a Igreja vai celebrar o Sínodo Ordinário dedicado às famílias para amadurecer um verdadeiro discernimento espiritual e encontrar soluções concretas para as inúmeras dificuldades e importantes desafios que a família deve enfrentar nos nossos dias. Convido vocês a intensificar a oração por essa intenção: para que, mesmo aquilo que nos pareça impuro, nos escandalize ou espante, Deus – fazendo-o passar pela sua “hora” – possa milagrosamente transformá-lo. Hoje a família precisa desse milagre.
Desta vez, contudo, eu nem precisei recorrer ao texto original. Disse-lhe, sem pestanejar: ora, é claro que a dita “família não-tradicional” precisa de uma solução, e uma solução urgente, porque é um escândalo que seres humanos – muitos dos quais católicos! – vivam os mais horrendos pecados como se não fossem nada!
Não existe “família não-tradicional” e nem “família tradicional”. Existe família, ponto. Família é o pai, a mãe e os filhos. Isso não é a família “tradicional”, isso é a família verdadeira e perfeita, a arquetípica, a família por antonomásia em referência à qual todos os outros agrupamentos sociais se definem. Por vezes, decerto, as coisas não acontecem de maneira tão perfeita; por vezes, sem dúvidas, faltam alguns desses elementos. Às vezes os filhos não vêm, às vezes a morte vem colher precocemente um dos cônjuges; dir-se-á, nestes casos, que não existe família?
Melhor se dirá que a família está ainda em projeto, em desenvolvimento, no caso dos filhos que ainda não vieram; ou que ela persiste, ainda, subsistindo, nos seus frutos, nas suas marcas, no caso em que um dos cônjuges já partiu para as moradas celestes. Mas, atenção! Isto, que materialmente pode ser igual a um divorciado ou a um casal que emprega anticoncepcionais para não ter filhos, é no entanto completamente diferente.
Porque uma coisa é a aceitação resignada das vicissitudes da vida, de uma eventualidade alheia às nossas vontades – contrária, até, às nossas vontades! – e que priva a família quer dos seus alicerces originais – no caso da morte -, quer de seu desenvolvimento natural – no caso dos filhos que não vêm. Uma outra coisa, completamente diferente, é, por conta própria, destruir o vínculo indissolúvel que só a morte é capaz de solver, ou ceifar os filhos que Deus quisera mandar ao mundo.
Não há comparação possível. Do fato de os fins da família poderem ser frustrados não segue que nós os possamos deliberada e conscientemente frustrar; assim como do fato de que possamos perder um membro na guerra (e les invalides são merecedores de todo o nosso respeito e consideração!) não segue que possamos, por conta própria, nos mutilar por acharmos que o corpo deficiente “nos cai” melhor que o corpo são – e nem muito menos sancionar socialmente esta loucura.
De volta à (dita) “família não tradicional”. Isso simplesmente não existe; o que existe, e que demanda urgente tratamento – e nisto o Papa está mais uma vez corretíssimo! – são arremedos familiares, frutos de uma loucura generalizada que faz a seres humanos julgarem que a desestabilização voluntária da própria família (quer na sua dissolução, quer no impedimento de seus desenvolvimentos naturais) pode lhes ser algo bom. E é um escândalo que pessoas civilizadas, sem nenhuma coação premente de situações excepcionais (tal seria o exemplo, digamos, de uma mulher espancada diariamente pelo marido), aceitem com naturalidade viver em adultério continuado, traindo as promessas feitas um dia diante de Deus; ou tomando diariamente veneno para impedir que seus órgãos funcionem da maneira que foram feitos para funcionar, rejeitando os filhos que também prometeram um dia receber e educar. Isto choca e escandaliza, é socialmente deletério, individualmente degradante. E tal se vê não entre ímpios e pagãos, mas muitas vezes entre os que se dizem católicos praticantes…! Claro que provoca perplexidade; claro que demanda, sim, enfrentamento corajoso e urgente.
No WhatsApp, eu dizia que o maior sintoma dessa degenerescência era o fato de as pessoas não aceitarem o próprio erro mas, ao contrário, ficarem sempre repetindo para si próprias que estavam certas e errados eram os Papas, os santos, a Igreja, o próprio Cristo! Que os outros que mudassem, pois elas próprias não iriam mudar. Isto é o mais grave pecado que pode haver, porque é o pecado que já não se reconhece como pecado, é – para usar a expressão que Bento XVI consagrou – a própria perda de sentido do pecado.
O Papa sabe que é preciso «soluções concretas» para estes casos. Ora, que soluções? As que o mundo demanda? As que estas pessoas querem? De maneira alguma: a que deseja a Igreja! A solução para estes indivíduos é, nas palavras do próprio Papa!, que Deus «possa milagrosamente transformá-lo[s]». Sim, é um milagre; furar a barreira erguida pela impiedade de quem não é mais capaz de reconhecer o pecado em que vive imerso é um verdadeiro milagre. Mas é um milagre necessário, e pelo qual o Papa nos convida a rezar mais intensamente. Hoje a família precisa dele. Não nos é lícito fingir que não temos nada com isso.