O dia que ficou de fora da Bíblia

À primeira vista, o sábado de hoje é o dia em que nada acontece: na contramão de um saudável carpe diem, parece que hoje é um dia que existe apenas em função da madrugada que há-de vir. Na Quinta-Feira acompanhamos Nosso Senhor ao Horto e, na Sexta, presenciamos a sua crudelíssima Paixão. Hoje apenas esperamos a Vigília de mais tarde.

Se fomos primeiro ao Horto e em seguida ao Gólgota, a lógica talvez nos mandasse ir, hoje, ao Sepulcro. Mas a narrativa bíblica é diferente. Um versículo fala do entardecer da Sexta-Feira — “[f]oi ali que depositaram Jesus por causa da Preparação dos judeus e da proximidade do túmulo” (Jo XIX, 42); o subsequente fala já da alvorada do Domingo — “[n]o primeiro dia que se seguia ao sábado, Maria Madalena foi ao sepulcro” (Jo XX, 1a). O mesmo Túmulo une os dois versículos contíguos; entre eles, contudo, passa silente um Shabbat inteiro!

Hoje estamos exatamente entre o último versículo do Cap. XIX e o primeiro versículo do Cap. XX do Evangelho de São João; é o dia que ficou de fora da Bíblia. Talvez por isso a Igreja silencie seu culto público e, nos nossos templos, durante todo o dia não vejamos mais do que os altares desnudos e os sacrários abertos — com os quais já quase nos acostumamos desde aquela noite angustiante da Última Ceia.

Trata-se de um dia inteiro sem que a Igreja de Deus nada celebre, caso único em todo o Calendário Litúrgico. E neste silêncio da Igreja nós encontramos e vivenciamos o silêncio do Túmulo Santo. Hoje devíamos ir ao Sepulcro, eu disse acima, e na verdade é exatamente isto o que acontece nesta não-Liturgia: como os Apóstolos, experimentamos o desalento porque o Filho de Deus está morto e não temos para onde ir. Todo ofício litúrgico é Cristo que fala mediante a Igreja: quando o sopro frio da morte silencia os lábios do Divino Mestre, quando a pedra do Túmulo encerra para além do nosso alcance o Verbo de Deus, a Igreja — eco fiel do Salvador — também emudece. Na Quinta-Feira Cristo era traído e a Igreja ecoava os Seus gemidos na prisão; na Sexta-Feira Ele era crucificado e a Igreja repercutia os Seus gritos no patíbulo da Cruz. Hoje, no entanto, Ele está morto, e a Igreja reverbera no mundo o silêncio do Sepulcro calando-se também.

Talvez o silêncio da Bíblia sobre este Sábado seja, justamente, a melhor forma de expressar o seu vazio e a sua desolação.

Mas neste dia de solidão nós podemos contar com Alguém que aqui ficou: Alguém que nos foi deixada como penhor de que Ele voltaria, Alguém que a Cruz não arrancou ao mundo dos vivos. Alguém a quem foi dado manter a chama da Graça acesa na terra, enquanto o Criador do mundo descia à escuridão do Hades. Alguém que Deus amou tanto que Lhe confiou o mundo durante os três dias em que Ele precisou se ausentar.

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Todo Sábado é dia de Nossa Senhora justamente em referência a este Sábado terrível de hoje, em que o Criador foi expulso do mundo pela criatura. O Verbo fez-Se homem e nós O crucificamos; veio até nós e nós O fizemos sair à força; sufocando-O no alto da Cruz nós O expulsamos do mundo dos vivos, e selando-O no interior da terra, longe dos nossos olhos, tentamos afastar de nós até mesmo a lembrança do que Ele havia sido.

A nossa impiedade, grande o suficiente para destruir o Filho de Deus, não ousou contudo levantar-se contra a Virgem Santíssima! Fomos maus o bastantes para crucificar o Verbo Encarnado; diante da Mãe do Verbo, no entanto, mesmo a nossa imensa maldade chegou a vacilar. Crucificamos o Filho e O expulsamos do nosso mundo; a Mãe, no entanto, não fomos ímpios o bastante para degredar também.

E Ela aqui ficou, e foi a nossa salvação, porque talvez o mundo não resistisse ao Sepulcro de Deus se nada d’Ele houvesse restado sobre a terra. Restou-Lhe a Mãe; e foi suficiente para atravessarmos este sábado, e para que hoje pudéssemos celebrar, no silêncio do templo deserto, a espera da Ressurreição. Hoje como n’Aquele Shabbat terrível, é a Santíssima Virgem Maria quem retém a graça de Deus que restou no mundo — a parcela da Graça que não ousamos expulsar — e sustenta, durante o silêncio enlouquecedor deste dia, os discípulos do Seu Divino Filho.

É aos pés d’Ela que choramos os nossos crimes. É sob o manto d’Ela que nos protegemos da morte de Deus. É unidos a Ela somente que sobreviveremos até a Ressurreição.

Publicado por

Jorge Ferraz (admin)

Católico Apostólico Romano, por graça de Deus e clemência da Virgem Santíssima; pecador miserável, a despeito dos muitos favores recebidos do Alto; filho de Deus e da Santa Madre Igreja, com desejo sincero de consumir a vida para a maior glória de Deus.

5 comentários em “O dia que ficou de fora da Bíblia”

  1. Aqui na minha cidade, São Caetano, PE, neste sábado foi celebrado o Ofício das Dores de Nossa Senhora e não me lembro de ter havido noutra Semana Santa esse Ofício.

  2. Muito tocante e profunda a sua reflexão. Digna dum orador sacro, feito Vieira. Os símbolos da liturgia católica, comunicando e realizando os mistérios divinos de fato, já foram assinalados por Jung como um preventivo aos complexos e neuroses, face a aridez simbólica do protestantismo e do mundo moderno. Isso tudo é muito rico, expressa e fala à essência do homem, no seu sentido mais fundo, remontando a tempos imemoriais, uma vez que a Igreja do Cristo, que renova todas as coisas, absorveu e moldou à sua Doutrina simbologias das religiões e culturas pré-cristãs, as quais por sua vez podem ser concebidas como profecias dos verdadeiros e únicos Deus e religião. Feliz Páscoa!!

  3. Está sendo muito rica esta reflexão sobre os dias do Tríduo Pascal, Jorge. É sempre bom sentir e vivenciar o que estes dias santos representam. E foi muito interessante pensar na participação de Nossa Senhora no Sábado Santo: Eu nunca tinha visto por este lado.

  4. Belíssima reflexão!

    Isso é muito católico.

    Emocionante.

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