Apenas três ligeiros comentários sobre a Misericordia et Misera, carta apostólica hoje publicada e com a qual o Papa Francisco encerra o Ano Santo da Misericórdia.
1. A provisão para que qualquer sacerdote possa suspender a excomunhão do aborto foi estendida por tempo indeterminado. O aborto é um pecado gravíssimo que é punido, no Direito Canônico, com a excomunhão latae sententiae (CIC Cân. 1398). Ocorre que essa excomunhão só podia ser remitida pelo Bispo Diocesano ou por aqueles sacerdotes a quem o Bispo conferisse explicitamente esta permissão; na abertura do Jubileu da Misericórdia, no ano passado, o Papa Francisco concedeu a todos os sacerdotes esta faculdade. Aquilo que valia no decurso do Jubileu passa, desde hoje, a valer indefinidamente, «não obstante qualquer disposição em contrário».
Ou seja, i) continua valendo sobre essa matéria tudo que até ontem valia: por força do Jubileu da Misericórdia todo sacerdote estava autorizado a absolver quem houvesse praticado aborto e, a partir de hoje, encerrado o ano jubilar, todo sacerdote continua autorizado a conferir esta absolvição por força da Misericordia et Misera; não obstante, ii) a pena de excomunhão não foi abolida, i.e., continua plenamente vigente o cânon 1398 do Código de Direito Canônico dizendo que «[q]uem procurar o aborto, seguindo-se o efeito, incorre em excomunhão latae sententiae»; por fim — e a isso voltaremos mais à frente –, iii) o arrependimento continua sendo pré-requisito para se aproximar da Confissão Sacramental, como é evidente.
2. Do mesmo modo foi alargada no tempo a faculdade que fora conferida aos sacerdotes da FSSPX para que administrem validamente o Sacramento da Penitência. A Confissão, assim como o Matrimônio, é um sacramento cuja validade — e não apenas a licitude — depende de jurisdição; ora, como os prelados da FSSPX — inobstante a suspensão da excomunhão em 2009 — permanecem bispos de lugar-nenhum, não possuem jurisdição alguma e, portanto, não podem praticar os atos que dela dependam (e.g. ouvir confissões e assistir Matrimônios).
A situação canônica dos padres da FSSPX continua irregular; as suas Missas continuam ilícitas e a validade dos seus Matrimônios permanece precária, condicionada à incidência do §2º do Cân. 144 do CIC. No entanto, esta determinação do Papa Francisco é alvissareira e nos autoriza a entrever, em um futuro que cada vez mais desejamos próximo, a tão esperada reconciliação da Fraternidade com a Igreja de Cristo fora da qual não há salvação.
3. A passagem bíblica da qual o Papa Francisco se vale para estruturar a sua Carta Apostólica é a da mulher adúltera (Jo VIII, 1-11). Trata-se de um trecho do Evangelho bastante caro a tantos quanto se preocupam com a tendência moderna de separar o perdão do arrependimento — como se “caridade” fosse condescendência com o erro, ou como se a “misericórdia” pudesse se manifestar na atitude displicente de manter o pecador em sua vida de pecado. Como se o perdão não fosse por si só um convite — ou, antes, uma exigência — à mudança de vida, ou ao menos à sincera disposição de mudar de vida.
E aquele «vade et amplius jam noli peccare» perpassa todo o documento pontifício, graças a Deus. São diversas as passagens (os grifos são meus):
- «Depois que se revestiu da misericórdia, embora permaneça a condição de fraqueza por causa do pecado, tal condição é dominada pelo amor que consente de olhar mais além e viver de maneira diferente» (MM 1).
- «Nada que um pecador arrependido coloque diante da misericórdia de Deus pode ficar sem o abraço do seu perdão» (MM 2).
- «No sacramento do Perdão, Deus mostra o caminho da conversão a Ele e convida a experimentar de novo a sua proximidade» (MM 8).
- «A sua ação pastoral [dos Missionários da Misericórdia] pretendeu tornar evidente que Deus não põe qualquer barreira a quantos O procuram de coração arrependido, mas vai ao encontro de todos como um Pai» (MM 9).
- «Não há lei nem preceito que possa impedir a Deus de reabraçar o filho que regressa a Ele reconhecendo que errou, mas decidido a começar de novo» (MM 11).
- «O sacramento da Reconciliação precisa de voltar a ter o seu lugar central na vida cristã; para isso requerem-se sacerdotes que ponham a sua vida ao serviço do «ministério da reconciliação» (2 Cor 5, 18), de tal modo que a ninguém sinceramente arrependido seja impedido de aceder ao amor do Pai» (MM 11).
- «[P]osso e devo afirmar que não existe algum pecado que a misericórdia de Deus não possa alcançar e destruir, quando encontra um coração arrependido que pede para se reconciliar com o Pai» (MM 12).
Em uma palavra, a verdadeira misericórdia é e não pode deixar de ser transformadora: «A misericórdia é esta ação concreta do amor que, perdoando, transforma e muda a vida» (MM 3)! O perdão cura e transforma — e o filho pródigo só retorna à casa paterna porque, antes, «caiu em si» e percebeu haver pecado contra o Céu, e a mulher adúltera só escapa da morte para ouvir de Cristo aquele «vai e não tornes a pecar» que perpassa os séculos e ainda hoje ressoa na Igreja: para continuar comendo a lavagem dos porcos não valia a pena o filho pródigo ter empreendido a jornada de volta pra casa, e se fosse para continuar na prostituição melhor seria à adúltera ter sido apedrejada.
O perdão conduz e não pode não conduzir a uma vida nova. Se não fosse assim seria apenas engano e ilusão; se não fosse assim, de nada valeria ser perdoado.
Excelente texto, apesar de dar a entender um suposto cisma da FSSPX, que, na verdade não há, pois não há nela nenhuma das duas recusas que caracterizam o cisma, seja formal ou material.
É tanta misericórdia para tão pouco arrependimento.
A sociedade,as pessoas,perderam a noção de pecado.
Sinto que nem é bem compreendido esse discurso todo da Igreja em relação a misericórdia.
Pois é, Domingos. Eu sempre penso: a HUMANIDADE tem que se adaptar à DEUS ou DEUS tem que se adaptar à HUMANIDADE? Pois parece que ultimamente está acontecendo a segunda opção… :(
Eu acho que só não se pode centrar a misericórdia no ato de perdão ou da absolvição. A excomunhão, a negação dos sacramentos, também são atos de misericórdia! São atos de misericórdia na medida em que confrontam o pecador com a realidade do seu pecado.
Do mesmo modo, as ameaças divinas com o inferno eterno são atos de misericórdia de Deus para com Seus filhos e os demais. A nossa geração perdeu o senso de discernimento do bem no mal aparente, e o senso de discernimento do mal no bem aparente.
Os fariseus colocavam cargas pesadas sobre as pessoas, como motivo de exclusão e de segregação. Já o cristianismo, quando impõe leis e punições severas, não quer mais que a elevação daqueles que são foram por esse meio atingidos aos patamares superiores. Por isso, S. Paulo ensina: “seja esse homem entregue a Satanás, para mortificação do seu corpo, a fim de que a sua alma seja salva no dia do Senhor” (I Cor 5,5).
Jorge, alguns amigos meus estão discutindo sobre uma suposto conflito entre o pecado e o crime canônico. Poderias comentar algo a respeito? Parabéns pelo site, considero tuas publicações bem baseadas e explicadas, sem extremismos de qualquer tipo. Que a Beatíssima Virgem te proteja e que continues a fazer tudo para a maior glória de Deus!
Oi Addrian, não sei se entendi muito bem a dúvida. Que conflito?
Abraços!
Duas dúvidas teológicas para o teólogo recifense:
1. se ” a pena de excomunhão não foi abolida”, que misericórdia é essa que absolve o pecado, mas manda para o inferno (se o pecador está excomungado e morre nesse estado…)? A absolvição dada pelo simples padre não deveria pôr fim à excomunhão?
2. se os padres da FSSPX “administravam invalidamente o Sacramento da Penitência”, os fiéis que com eles se confessaram cientes da situação antes do ano da misericórdia, não tiveram seus pecados absolvidos. Se os pecados eram mortais, precisariam ser confessados “validamente” de novo. Ou então os fiéis vão para o inferno. Estranha lógica, mais estranha misericórdia… Ou talvez as confissões da FSSPX fossem ilícitas (canonicamente falando, ainda que se possa discutir se tal ilicitude é real, diante do estado de necessidade), embora VÁLIDAS, de acordo com o princípio da suplência de jurisdição por erro comum (cf. cânon 144: § 1. Em caso de erro comum de facto ou de direito, e ainda em caso de dúvida positiva e provável, quer de direito quer de facto, a Igreja supre o poder executivo de governo tanto para o foro externo como para o interno.)
Alguém pode esclarecer a “lógica” de tal misericórdia (segundo Seu Jorge, que falou que a excomunhão permanece no caso do aborto e que as confissões da FSSPX eram inválidas antes do ano da misericórdia)?
Torre Queimada,
1. Não entendi. Que “simples padre”, que absolvição? Antes do Ano da Misericórdia o “simples padre” que não houvesse recebido provisão específica do seu bispo para remir a excomunhão do aborto simplesmente não podia absolver um penitente que lhe confessasse um aborto. Desde o Jubileu, por sua vez, qualquer “simples padre” pode suspender a excomunhão e conferir a absolvição no mesmo ato da Confissão sacramental.
2. Sim, antes do Jubileu a validade das confissões da FSSPX era precária, dependente de disposições subjetivas que atraíssem a aplicação do Cân. 144 do CIC, exatamente como continua ocorrendo hoje no tocante ao Matrimônio.
Bom dia. “Paz a esta casa” S. Mateus 10, 12 (e seguinte …)
Em relação ao último ponto do item 3 ( … não existe algum pecado …), como fica São Mateus 12, 31 e 32?
Carlos,
Os pecados contra o Espírito Santo dizem-se imperdoáveis porque é de sua própria natureza repelir o arrependimento — condição de todo perdão. Assim, eles são ditos imperdoáveis porque é muito difícil conseguir-lhes o perdão.
Uma vez contudo que haja «um coração arrependido», deixou de haver pecado contra o Espírito Santo e Deus recebe com alegria o pecador que volta para Ele.