Pode-se deixar de lado a verdade histórica?

O texto-base da Semana de Oração para a Unidade dos Cristãos deste ano provocou estranheza ao dizer, entre outras coisas, que Martinho Lutero — o reformador protestante — seria uma «testemunha do Evangelho». Literalmente, o documento fala logo no início:

Deixando à parte o que é polêmico, nas visões teológicas da Reforma, católicos agora são capazes de ouvir o desafio de Lutero para a Igreja de hoje, reconhecendo-o como uma “testemunha do evangelho” (Do Conflito à Comunhão 29).

Infelizmente, a referida «semana de oração» presta-se muitas vezes ao mesmo papel que, no Brasil, a CNBB desempenha com a sua Campanha da Fraternidade: obscurecer a mensagem do Evangelho com um discurso anódino cujo objetivo maior é quase sempre afirmar lugares-comuns. Porque, ora, «deixando à parte o que é polêmico» pode-se afirmar qualquer coisa, é lógico. Afinal de contas, sempre e por definição, tirando tudo o que está ruim tudo está sempre muito bem e não há como ser diferente. À parte tudo o que tem de errado a Reforma Protestante só tem coisas corretas, e o mesmo se pode dizer de absolutamente qualquer coisa na face da terra.

O problema é que «deixando à parte o que é polêmico» nós estaremos deixando de lado o próprio protestantismo, exatamente naquilo que o faz ser o que é, no que o distingue do Catolicismo. Deixando de lado o fato de que Lutero, falsificando o Evangelho, levou milhões de almas à perdição nos séculos seguintes, então se pode dizer, é claro, que ele tenha sido «testemunha» da mensagem cristã. Mas a pergunta que interessa aqui é: pode-se deixar de lado, desse jeito, a verdade histórica?

Porque quando a comissão conjunta atribui a Lutero o pomposo “título” de «witness to the Gospel» o que ela está fazendo é exatamente isto: valorizando as (supostas) intenções do monge atormentado e desculpando-lhe as atrocidades pelas quais ele passou à história. É rigorosamente o que se diz no «Do conflito à comunhão» (p. 22):

29. Aproximações implícitas com as preocupações de Lutero levaram a uma nova avaliação de sua catolicidade que teve lugar no contexto do reconhecimento de que sua intenção era reformar, não dividir a Igreja. Isso é evidente nos posicionamentos do Cardeal Johannes Willebrands e do Papa João Paulo II. A redescoberta dessas duas características centrais [de que não queria dividir e que queria reformar] de sua pessoa e teologia levaram a uma nova compreensão ecumênica de Lutero como “testemunha do Evangelho”.

Ou seja, pode-se chamar o velho alemão de «testemunha do Evangelho» porque, na verdade, a «sua intenção era reformar, não dividir a Igreja». Parece importar pouco que, historicamente, ele tenha dividido a Igreja ao invés de A reformar; a aproximação dita ecumênica autoriza ignorar os fatos para se ater às motivações ocultas. Ora, o problema é que desse jeito se pode justificar quase qualquer coisa! Deve ser muito pequeno o número de indivíduos no curso da história que não tinham, ao menos em alguma medida, intenções boas (e então, pra ficar só em um exemplo, a intenção de Fidel Castro provavelmente era libertar, e não escravizar o povo cubano); o ponto é que não é isso o que importa, e sim o resultado exterior, observável, das ações das personalidades históricas. A ignorância de Lutero, ou a sua demência, ou sua possessão demoníaca ou qualquer outra coisa do tipo, pode até lhe ter mitigado a responsabilidade pelos gravíssimos pecados que cometeu; mas não tem, no entanto, e nem pode ter, o condão de, externamente, transmutá-lo em defensor Fidei!

A investigação psicológica das motivações íntimas — essa espécie de história da vida privada — tem decerto relevância na medida em que o conhecimento verdadeiro é em si mesmo bom; mas é um claro equívoco utilizá-lo para lançar um manto de esquecimento sobre a tradicional história da vida pública, externa e factualmente observável. Não é sem razão que a sabedoria popular diz que de boas intenções o inferno está cheio. Lutero pode ter tido as melhores intenções do mundo: o fato objetivo e incontrastável, no entanto, é que causou um dano terrível à Cristandade, tendo precipitado ao inferno as almas — multidões de almas! — que deram mais ouvidos às suas sandices do que às palavras de Vida Eterna ecoadas pelo Vigário de Cristo.

Pesadas todas as coisas, sem deixar «à parte o que é polêmico», é evidente que a verdadeira testemunha do Evangelho, no contexto da Reforma Protestante, foi Leão X e não Lutero. O silêncio sobre isso corre o sério risco de se tornar uma inverdade histórica por omissão. É preciso haver reconciliação entre os cristãos, sim, porque é preciso que o filho pródigo retorne; mas qualquer reconciliação somente é possível na verdade e não no auto-engano — e simplesmente não tem lá muito sentido dizer que, deixando à parte o fato de se tratar de comida estragada, a lavagem dos porcos foi o alimento que deu ao irmão mais novo o vigor necessário para empreender o retorno à casa paterna.

Nam oportet et hereses esse ut et qui probati sunt manifesti fiant in vobis (ICor XI, 19): importa que haja heresias, para que se manifestem os que são probos. Esta passagem de São Paulo aplica-se também aqui. Lutero só é «testemunha do Evangelho» no sentido em que o erro é testemunha da verdade: por oposição. Aliás, é até curioso que a comissão luterana tenha subscrito aquele texto: de acordo com ele, só é possível reconhecer o testemunho evangélico de Lutero na exata medida em que a sua obra pública contradiz a presumida nobreza de suas intenções privadas.

Publicado por

Jorge Ferraz (admin)

Católico Apostólico Romano, por graça de Deus e clemência da Virgem Santíssima; pecador miserável, a despeito dos muitos favores recebidos do Alto; filho de Deus e da Santa Madre Igreja, com desejo sincero de consumir a vida para a maior glória de Deus.

22 comentários em “Pode-se deixar de lado a verdade histórica?”

  1. PODE SE TAPAR SOL COM PENEIRA?
    Evidente que não, seria o propósito do post em o comprovar, referindo a um ex carniceiro e heresiarca Lutero, o qual doravante no presente, em nome de um incerto e indeterminado ecumenismo de alguns da Igreja que desejariam sacrificar a verdade para se associar a eternos inimigos da Igreja dentro do relativista protestantismo e, de repente, nos apresenta um Lutero II, o qual mais se pareceria maquiado, que teria passado por um excelente salão de beleza e saiu todo enfeitado!
    Ledo engano: o Lutero reestilizado acima é produto de síntese de laboratorios de engenharia socialistas, o politicamente correto, teriam seus promotores intenções de nivelar o erro com a verdade visando relativizar as mentes à fé católica de sempre, e abririam as portas à fundação de uma religião atendente à NOM, para a qual o alienante protestantismo é um dos ingredientes mais importantes!
    Para esses, Lutero seria o reformador, aquele que teve as melhores intenções, no entanto, teria sido prejudicado por certas circunstancias alheias à sua vontade, vítima de inimigos, e os inconvenientes decorrentes de seus planos e ações durante a implantação das reformas teriam sido acidentais!
    Já observaram como os filhotes de Lutero em suas seitas se esforçam com extremo denodo para cooptarem os incautos católicos, valendo-se de diversos embustes para os levarem para as seitas e os colocarem sob as patas de Satã?
    Haja quem creia nessa inverdade de reabilitarem a imagem de Lutero, quem sabe, almejariam até de o excluir da excomunhão que lhe pesa, sem condições algumas de ser abolida por sentença irrevogável do Concilio de Trento e lhe darem novo status, como o de cristão!
    De uma reforma sempre se pressupõe que dela se obterão novos frutos; no entanto, do verdadeiro revolucionario e genocida Lutero apenas apareceram todos os tipos das mais inauditas violencias e perseguições aos que discordassem dele!
    Sem nos desviarmos da verdade de o compararmos aos carniceiros marxistas enfiado em partidos comunistas – caso dos mais de 100 000 mortos anabatistas e feroz perseguição aos católicos à época – em nada se diferencia de Pol Pot, Stálin, Lênin, Fidel Castro etc., em seus expurgos dos desafetos para imporem o revolucionarismo vermelho!
    Frutos da “Reforma”, melhor, da Rebelião de Lutero? Disseminação do relativismo sob a forma de seitas protestantes, sem magisterio definido – ou seja, v decide – mais de 30 000 no presente, dissensas entre si, simpáticas à maçonaria, cada qual atribuindo para si pregar a verdade em detrimento da outra. Cada “fiel” interpreta a biblia como quiser e, nesse caso, cada um é o auto espírito santo a se iluminar!
    A lista de erros dessa DITADURA DO RELATIVISMO é tão extensa, desses grupelhos sedizentes cristãos que existem seitas especialistas para recebimento de sodomitas, até com uma “biblia e pastoral” adaptadas a essa devassidão!

  2. Amigos, salve Maria

    Você sabe que a coisa está verdadeiramente feia quando até o Jorge Ferraz critica publicamente um Conselho que trabalha sobre as benção de Francisco…

    Sandro Pelegrineti de Pontes

  3. Sandro de Pontes, por onde você anda?

    Você não tem mais site?

  4. “A Irlanda é uma nação antiga com uma longa memória. Os católicos da Irlanda (católicos de verdade, não os Loucos Novus-Ordo) olham para Bergoglio e instintivamente dizem, ‘caçador de padres’. O fenômeno histórico do caçador de padres está entranhado na memória coletiva da Irlanda católica. Os caçadores de padres eram geralmente padres apóstatas pagos pelos protestantes ingleses que traíam os padres fiéis informando e testemunhando contra eles – para que fossem condenados por ‘traição’ e depois enforcados-arrastados e esquartejados-estripados (vivos).

    Jorge Bergoglio prega uma religião sem fé sobrenatural e sem uma lei moral objetiva – uma religião que se opõe diretamente à autoridade do Deus revelador.

    Os Papas Conciliares presidiram ao longo e prolongado deslizamento em direção à apostasia. Bergoglio, contudo, não tem sequer o pequeno núcleo da semente de mostarda de fé dos Papas Conciliares; daí ser ele o indicado pela Maçonaria para presidir à demolição controlada da Igreja Católica. Membros de alta hierarquia do Time Bergoglio já deixam saber discretamente que o sínodo de outubro será a ocasião de demolir o que resta da tradição católica na “Igreja conciliar”.

    Então o Pagão Infiel rasgará sua máscara, o “Pontífice” se transformará no Caçador de Padres – e virá a provar-se que os católicos irlandeses tinham razão com a transição de Bergoglio de ‘Sumo Sacerdote’ para ‘Grande Lorde Executor’.”

    (Pe. Paul Kramer, em postagem no Facebook)

  5. Quem dera fosse somente esse o problema. Leiam os “Subsídios para a Semana de Oração”! Qualquer católico minimamente catequizado enxerga as incoerências teológicas do movimento. Chega a ser vergonhoso, para não dizer extremamente prejudicial para a própria Unidade da Igreja.

  6. No penúltimo parágrafo, acho que deveria ser “irmão mais novo” e não “irmão mais velho”. O filho pródigo que comeu lavagem era o mais novo. O mais velho ficou em casa.

    Eu gostaria de saber como o Jorge responderia à pergunta do Cardeal Napier: Por que não os polígamos?

    https://www.lifesitenews.com/news/why-not-communion-for-polygamists-if-we-give-it-to-divorced-and-remarried-s

    A comunhão dos polígamos, tal como no caso dos divorciados/recasados, é apenas uma questão litúrgico-disciplinar?

  7. Isso, JB, é o mais novo. My bad, vai ver que me identifiquei com o rapaz da lavagem. Já corrigi, obrigado.

    A comunhão dos polígamos, tal como no caso dos divorciados/recasados, é apenas uma questão litúrgico-disciplinar?

    Qualquer norma que restrinja o acesso de católicos em estado de graça a sacramentos de vivos só pode ser disciplinar. O que não pode é ser divina, porque Deus julga conforme a verdade e não de acordo com as aparências.

    Em teoria nada obsta a que as condições da A.L. — comungante em candura de consciência, expectativa legítima de que o Sacramento conduza ao abandono da situação objetiva de pecado, se não houver escândalo nem risco de deseducação doutrinária — fossem estendidas para todas as hipóteses. A questão é que se no caso dos adúlteros já é uma coisa raríssima reunir essas condições, no de polígamos, então (uma vez que a poligamia é contrária à lei natural), é praticamente impossível.

    Mas estou tendente a concordar com (acho que é) o Card. Cafarra: se o Papa quisesse mudar a disciplina do CIC 915, então ele teria que o dizer claramente — argumentando de maneira aberta, explícita, detalhada, enfrentando as objeções. Permanecendo o silêncio (mormente diante das dubia), então o mais provável é que a AL mantenha integralmente a disciplina da FC, apenas enfatizando pastoralmente a distinção entre imputabilidade subjetiva e situação objetiva de pecado mortal — e aludindo en passant ao Cân. 1752 in finis.

  8. Jorge,

    Você parece entender que é uma questão de acesso à comunhão, como estar em jejum por x horas antes.

    Mas não se trata disso.

    É o ministrante da comunhão que, baseado nas Escrituras e na Tradição, tem o dever de negar a comunhão àqueles que sabe estarem em situação objetiva de pecado mortal, independente do escândalo. Isso fica claro no texto da FC84.

    “A Igreja, contudo, reafirma a sua práxis, ***fundada na Sagrada Escritura***, de não admitir à comunhão eucarística os divorciados que contraíram nova união. Não podem ser admitidos, do momento em que o seu estado e condições de vida contradizem objectivamente aquela união de amor entre Cristo e a Igreja, significada e actuada na Eucaristia.”

    Não é que um divorciado ou um polígamo, que porventura esteja em estado de graça, não possa solicitar a comunhão; é a Igreja que tem o dever de não o permitir. O seu raciocínio obriga o ministrante da comunhão a fazer o que só Deus pode fazer, ler as almas, isto é, saber que uma pessoa em estado objetivo de pecado mortal está, na verdade, em estado de graça.

    Que Francisco não tenha modificado o CDC 915, apenas mostra anomia do corrente pontificado, já que as recentes diretrizes da Diocese de Roma, onde Francisco é bispo, permitem, em alguns casos, a comunhão dos divorciados e recasados, não obstante esse cânon continuar em vigor.

    “Ma quando le circostanze concrete di una coppia lo rendono fattibile, vale a dire quando il loro cammino di fede è stato lungo, sincero e progressivo, si proponga di vivere in continenza; ***se poi questa scelta è difficile da praticare per la stabilità della coppia, Amoris Laetitia non esclude la possibilità di accedere alla Penitenza e all’Eucarestia.***”

    http://www.romasette.it/wp-content/uploads/Relazione2016ConvegnoDiocesano.pdf

  9. JB,

    Não me parece verdade que a proibição do Cân. 915 dê-se «independente do escândalo». Ora, a própria condição para a incidência da norma é o pecado ser «manifesto», como está no CIC, na Declaração de 06 de julho de 2000 (2. c) e na própria Familiaris Consortio: «se se admitissem estas pessoas à Eucaristia, os fiéis seriam induzidos em erro e confusão acerca da doutrina da Igreja sobre a indissolubilidade do matrimónio» (FC 84).

    Parece bem razoável considerar que essa norma i) é uma presunção contra o católico que vive em situação de pecado objetiva e ii) tem uma forte conotação pedagógica. Isso é suficiente para não admitir à comunhão eucarística a imensíssima maior parte dos adúlteros que há muitos anos comungam em nossas paróquias.

    O seu raciocínio obriga o ministrante da comunhão a fazer o que só Deus pode fazer, ler as almas

    Este é exatamente o papel do pastor de almas! É isso o que deve fazer um confessor, um diretor espiritual. Do fato de não se poder alcançar certeza absoluta a respeito das disposições interiores (o que é verdade) não segue que o sacerdote não possa julgar o fiel (inclusive para poder negar a absolvição eucarística – cf. CIC 980).

    Em todo caso não é essa a questão. Você parece defender que a norma não faz nenhuma referência nem ao interior do fiel (portanto não importando se ele está ou não em estado de graça), nem ao exterior da Igreja (sendo irrelevante se a administração do sacramento provoca escândalo aos demais participantes da comunhão eucarística), o que me parece um absurdo.

    “Ma quando le circostanze concrete di una coppia lo rendono fattibile, vale a dire quando il loro cammino di fede è stato lungo, sincero e progressivo, si proponga di vivere in continenza; ***se poi questa scelta è difficile da praticare per la stabilità della coppia, Amoris Laetitia non esclude la possibilità di accedere alla Penitenza e all’Eucarestia.***”

    Pois é, este texto está claramente incompleto, uma vez que a mera dificuldade de praticar a continência não é o único critério ao qual faz referência o cap. VIII da Amoris Laetitia.

  10. Jorge,

    1) O próprio documento que você cita diz que:

    “A proibição feita no citado cânon, por sua natureza, deriva da lei divina e transcende o âmbito das leis eclesiásticas positivas: estas não podem introduzir modificações legislativas que se oponham à doutrina da Igreja.”

    Logo, a proibição da comunhão aos divorciados não é mera disciplina.

    2) “Independente do escândalo” significa que mesmo que ninguém mais se escandalize, mesmo que ninguém mais, além do padre, saiba que tal fulano é divorciado e recasado, a sua comunhão deve ser proibida pois implica em sacrilégio. Isso também está no próprio documento que você citou:

    “Tal escândalo subsiste mesmo se, lamentavelmente, um tal comportamento já não despertar alguma admiração(!!!): pelo contrário, é precisamente diante da deformação das consciências, que se torna mais necessária(!!!) por parte dos Pastores, uma acção tão paciente quanto firme, ****em tutela da santidade dos sacramentos****, em defesa da moralidade cristã e pela recta formação dos fiéis.”

    Logo, o ministro deve recusar a comunhão os divorciados e recasados independente se ela causa ou não escândalo entre os fiéis.

    3) Dizer que pastores e confessores são capazes de ler almas é usar linguagem equívoca. Salvo Deus, e alguns raros santos, ninguém propriamente lê almas.

    Qualquer pastor ou diretor de almas faz avaliações com base em dados objetivos: é o que fulano disse, é que fulano fez, é o que fulano escreveu, que contam. Mesmo na hipótese de um divorciado e recasado ou de um polígamo estarem em estado de graça diante de Deus, a informação objetiva, acessível ao ministro da comunhão, é a de pecado persistente em matéria grave. O que você sugere é que o ministro ignore a realidade objetiva diante de seus olhos e aja de acordo com o sentimento subjetivo do divorciado e recasado.

  11. JB,

    1) Imediatamente depois da passagem que você cita, o documento cita 1Cor 11, 27-29 — ou seja, a questão diz respeito «ao próprio fiel e à sua consciência».

    Na verdade o documento distingue duas coisas, o estado de graça (este, sim, que é de lei divina simpliciter) e o estado objetivo de pecado (que é também de lei divina, mas somente secundum quid, i.e., na medida em que provoca um «dano objectivo para a comunhão eclesial»). Veja o texto do dicastério:

    Porém o ser-se indigno por se achar em estado de pecado põe também um grave problema jurídico na Igreja[.]

    A questão da indignidade pública é outra questão («também um grave problema»), esta de natureza jurídica («problema jurídico na Igreja»).

    2) Não, o documento não diz nada disso. Diz exatamente o contrário: o escândalo é «acção que move os outros para o mal». Se, portanto, os outros não forem movidos para o mal (o que é, aliás, uma das condições da A.L.), não há escândalo. Espanta que você tenha conseguido tirar, de um texto que diz textualmente que o escândalo é «concebido qual acção que move os outros para o mal», a idéia de que “mesmo que ninguém mais, além do padre, saiba que tal fulano é divorciado e recasado, a sua comunhão deve ser proibida pois implica em sacrilégio”!

    3) Sim, é linguagem equívoca. O «sentimento subjetivo do divorciado e recasado» é uma das condições para a perfeição do pecado grave, como está em qualquer manual de Teologia Moral. Na verdade, o que você está sugerindo é que o pastor de almas não investigue os pleno conhecimento e livre consentimento que, junto com a matéria grave, perfazem o pecado mortal.

  12. ​​​​​Jorge,

    1) A distinção que você faz é irrelevante. O texto não poderia ser mais claro: “A proibição feita no citado cânon, por sua natureza, deriva da lei divina e transcende o âmbito das leis eclesiásticas positivas:(…).”

    Tenho citações de vários autores que dizem exatamente o mesmo. A proposição que você defende, a saber, a proibição à comunhão dos recasados é mera disciplina litúrgica que pode ser alterada, não é, que eu saiba, defendida nem mesmo pelo Cardeal Kasper.

    2) Muito me espanta que você tenha ignorado o trecho entre asteriscos. Fica óbvio pela leitura que a proibição à comunhão dos recasados objetiva não apenas evitar escândalo mas também a “tutela da santidade dos sacramentos”, isto é, visa evitar o sacrilégio de uma comunhão indigna.

    Mas talvez seja melhor ouvir isso de um canonista:

    “a minister is not assessing personal “worthiness” when withholding holy Communion from one’s whose conduct is described in Canon 915, but rather, is acting in accord with an age-old sacramental discipline designed to protect both the Sacrament from the risk of possible sacrilege and the faith community from the harm of classical scandal caused by someone’s public contrarian conduct.”

    https://canonlawblog.wordpress.com/2015/12/12/clergy-have-consciences-too/

    3) Não, não estou sugerindo isso. Estou dizendo que há ações em que o pleno conhecimento e o livre consentimento, tanto quanto é humanamente possível avaliar, fazem parte da própria definição do ato, como é precisamente o caso do adultério, isto é: relações extra-conjugais por livre vontade concomitantes a matrimônio válido.

    Além disso, todo casamento, civil ou religioso, é público por definição. Assim, o cânon 915 aplica-se mesmo que apenas o padre esteja a par da situação do comungante.

  13. É tão difícil aceitar o desastre do CVII ? Os neoconservadores vão continuar afirmando que nada mudou não importa o que façam os papas conciliares, talvez nem uma “papisa” os faça enxergar a verdade.

  14. JB,

    1) A distinção é relevante para manter a coerência da Doutrina Católica. Sem ela, então surge uma situação em que certas pessoas em estado de graça estão impedidas, e por direito divino, de ter acesso aos sacramentos de vivos.

    2) Se o comungante está em estado de graça então a comunhão não é indigna por definição. O trecho que você cita diz o contrário do que você alega: o que a norma se propõe a evitar é «the risk of possible sacrilege». Ou seja, o sacrilégio ocorre apenas “possivelmente”, e não “necessariamente” como você está defendendo.

    3) Em questões morais o «erro» é sempre possível — é o que dizem os manuais de teologia e é o que repete a Amoris Laetitia. Se o pastor de almas, no exercício do seu mister, naquilo que lhe é humanamente possível avaliar, encontrar pleno conhecimento e livre consentimento do adultério, então ele obviamente deve negar a Eucaristia.

    Abraços,
    Jorge

  15. Jorge,

    1) Você ainda não entendeu.

    Não são as pessoas que são impedidas de entrar na fila de comunhão. É o ministro da comunhão que é impedido de dar-lhes a comunhão. Como já demonstrado, tal proibição “deriva de lei divina e transcende o âmbito das leis eclesiásticas positivas”. Logo, não é mera disciplina litúrgica como você parece acreditar.

    Se fulano, que se encaixa na descrição do CDC 915, acha, honesta e sinceramente, que está em estado de graça, que comungue espiritualmente ou vá comungar onde ninguém o conheça. Deus o julgará.

    Mas se um ministro da comunhão, sabendo que fulano encaixa-se na descrição do CDC 915, permite sua comunhão, então ele, o ministro, torna-se culpado de eventual sacrilégio e de potencial escândalo, independente se fulano está ou não em graça, já que tal conhecimento só pertence a Deus.

    Você parece querer que o ministro da comunhão exerça um julgamento que só a Deus pertence.

    2) Não. Dado que aos seres humanos é impossível saber se fulano está ou não em estado de graça, foi desde sempre proibido aos ministros darem a comunhão às pessoas que se encaixem na definição do CDC 915 dado o risco altíssimo de sacrilégio e/ou escândalo, conforme explicado acima. Se fulano, divorciado e recasado, está mesmo em estado de graça, o ministro jamais saberá. Portanto torna-se culpado de, no mínimo, expor o Sacramento ao risco de sacrilégio.

    3) Você parece acreditar que é possível a um pastor concluir que um adúltero habitual esteja em estado de graça. Talvez até esteja, mas só Deus o saberá. Se há matrimônio válido e há adultério, então é porque há, tanto quanto é permitido aos seres humanos saber, pleno conhecimento, livre assentimento e logo pecado mortal.

    Evidentemente, casamentos à força não são válidos, quem faz sexo contra a vontade não comete adultério e quem é doido não peca. Mas é também evidente que a Amoris Laetitia não se destina a esses casos extremos e sim a pessoas comuns que normalmente possuem conhecimento e liberdade suficientes para serem sujeitos morais.

    A proposta kasperita implica em usar outras fontes (“fulano é bonzinho, frequenta a igreja e seu primeiro casamento falhou por culpa dela e não dele etc.”) para “discernir” que fulano está em estado de graça. Não é possível que você concorde com isso.

    Sugiro-lhe a entrevista abaixo, de ontem, do Cardeal Muller. Para ele, Amoris Laetitia não permite a comunhão dos divorciados pois tal seria contra doutrina católica. Ele também reafirma pontos diametralmente opostos aos seus.

    http://magister.blogautore.espresso.repubblica.it/2017/02/01/the-pope-is-silent-but-cardinal-muller-speaks-who-responds-to-the-%E2%80%9Cdubia%E2%80%9D-this-way/

    “Q: The exhortation of Saint John Paul II, “Familiaris Consortio,” stipulates that divorced and remarried couples that cannot separate, in order to receive the sacraments must commit to live in continence. Is this requirement still valid?

    A: Of course, it is not dispensable, because *******it is not only a positive law of John Paul II, but he expressed an essential element of Christian moral theology and the theology of the sacraments.******** The confusion on this point also concerns the failure to accept the encyclical “Veritatis Splendor,” with the clear doctrine of the “intrinsece malum.”

  16. JB,

    1) Esta distinção entre o dever do comungante e o do ministro é, ela sim, irrelevante. O direito é rigorosamente o mesmo. O ministro tem o dever de negar se e somente se o comungante não tiver o direito de pedir.

    O juízo sobre o estado de graça pertence só a Deus. Mas, naquilo que é humanamente possível, mesmo convivendo com a possibilidade de erro, os ministros precisam fazê-lo o tempo todo como parte integrante de seus deveres de estado.

    2) Sim. O sacrilégio é apenas possível. Não é um “sacrilégio objetivo” (a menos, é claro, que o ministro não queira nem saber se fulano está ou não está em estado de graça). O sacerdote só é culpado na medida em que não perscrutar seriamente as disposições interiores do divorciado. Isso sempre valeu para todo mundo (para divorciados, homossexuais, casais de namorados etc.).

    Não vejo razões para a discordância. Se o sacerdote achar que não tem condições de avaliar se o comungante tem mesmo uma circunstância atenuante, então ele tem o dever de negar a comunhão. Ninguém diz diferente (bom, talvez a Conferência Filipina…).

    3) Claro que é possível a um pastor concluir com certeza moral que um divorciado recasado não está formalmente em adultério. Aliás, o próprio juízo sobre a validade do primeiro matrimônio é um juízo de certeza moral e não uma sentença infalível.

    A proposta kasperita implica em usar outras fontes (“fulano é bonzinho, frequenta a igreja e seu primeiro casamento falhou por culpa dela e não dele etc.”) para “discernir” que fulano está em estado de graça.

    É evidente que não concordo com isso e não é isso o que a A.L. diz. O que a exortação cita é o desconhecimento da norma, a dificuldade em compreender os seus valores inerentes e a existência de condições concretas que não permitam ao fulano agir de maneira diferente (cf. AL 301). E ainda, citando o Catecismo, acrescenta outras fontes: «ignorância, a inadvertência, a violência, o medo, os hábitos, as afeições desordenadas e outros factores psíquicos ou sociais» (AL 302). Nada disso tem nada a ver com fulano é bonzinho.

    Sobre a entrevista, eu ia justamente publicar algo sobre ela ontem, mas não tive tempo. Adianto que não vi nada de «pontos diametralmente opostos» aos que estou dizendo aqui.

  17. A distinção entre os deveres do comungante e do ministro da comunhão, que para você é irrelevante, é feita no próprio CDC que dedica artigos diferentes para cada caso. E é altamente relevante para discussão pois estamos discutindo precisamente o CDC 915 que não trata dos deveres do comungante mas sim dos deveres do ministro. Se, para você, o CDC 915 é irrelevante, então não vejo porque continuar a discussão.

    Você está equivocado. Não, nunca foi igual para todo o mundo.

    Se um casal de namorados aparece na fila de comunhão, o ministro é obrigado a dar-lhes a comunhão independente de ter ou não perscrutado as disposições interiores dos comungantes. Se os comungantes não estão em estado de graça ou mentiram na confissão, a falta é do comungante e não do ministro.

    Por outro lado, se um divorciado-recasado aparece na fila da comunhão e o ministro o conhece, ele, o ministro, é obrigado a recusar-lhe a comunhão. Se isso não for observado, a falta é do ministro quer o fulano esteja ou não em graça. Logo, não é o mesmo procedimento para todos pois a questão não é o comugante e sim o ministro e o grau de informação de este tem a respeito do comungante.

    Sim, um divorciado e recasado não é necessariamente um adúltero pois pode viver fraternalmente com sua companheira, pode ter sido obrigado a casar-se etc. etc. E isso pode sim ser conhecido objetivamente. Mas uma vez concluído que há adultério, não é mais humanamente possível dizer que tal pessoa esteja em estado de graça (embora possa mesmo estar).

    O Cardeal Muller nega categoricamente que seja possível a um divorciado recasado comungar, a menos que viva fraternalmente com sua companheira (pois nesse caso obviamente não há adultério). Isso é o oposto do que você vem dizendo.

  18. JB,

    O CIC 915 não fala de divorciados recasados. Fala que a comunhão eucarística não pode ser concedida aos «que obstinadamente perseverem em pecado grave manifesto». Pouco importa se o pecado manifesto aqui é de adultério, homossexualismo ou militância comunista: em qualquer caso tanto o sacerdote está obrigado a negar quanto o comungante está proibido de pedir. Se um dado casal de namorados tem vida sexual ativa, e isso é público, o sacerdote (não) os pode admitir à comunhão do exato mesmo modo que (não) admitiria os divorciados recasados. É igual.

    A única possibilidade de conferir Sacramentos de Vivos a qualquer um desses é se o fulano, sendo materialmente pecador, não cometa formalmente pecado grave. Para identificar isso é preciso, sim, perscrutar disposições interiores — não há outra maneira de o fazer. Sim, de modo absoluto isso é conhecido apenas de Deus, mas os seres humanos falíveis não trabalhamos com certezas absolutas sobre questões de fato, mas tão-somente com certeza moral.

    Não vi o Card. Muller adentrar na seara do divorciado recasado subjetivamente inculpável da sua situação objetivamente pecaminosa, mas talvez eu precise ler a entrevista com mais calma.

  19. Caro Jorge,

    A diferença óbvia é que o divórcio seguido de recasamento é sempre manifesto. Os outros pecados que você listou dependem de outros fatores para que se tornem públicos.

    Pois então Jorge. Se o pastor verifica que fulano livre e conscientemente contraiu um matrimônio válido e também livre e conscientemente mantém relações íntimas com outras que não sua conjugue, qual a única conclusão possível?

    Se Amoris Laetitia fosse só isso, se Amoris Laetitia fosse só para dizer que nem tudo que parece adultério é de fato adultério, que é necessário saber se as relações íntimas são de fato livres, se não alguma espécie de coerção psicológica, não haveria polêmica. Mas Amoris Laetitia vai muito mais longe.

    Por exemplo, Amoris Laetitia pede que seja avaliado o bem-estar dos filhos do segundo “casamento”. Pede que seja levada em conta se há fidelidade (!?!?) no segundo “casamento”. Ora, esses constituem agravantes e não atenuantes pois mostram que o segundo “casamento” foi querido por fulano e não forçado a contra gosto sobre ele.

    O sentido óbvio da Amoris Laetitia não foi captado só pela conferência episcopal filipina. Em maior ou menor grau, essa mesma interpretação foi adotada pelos bispos malteses, por bispos argentinos, norte-americanos e, ontem mesmo, pela conferência episcopal alemã. Tanto que o Cardeal Muller deu-lhes uma boa resposta em sua entrevista também de ontem (coincidência?).

    É uma entrevista e não um tratado de teologia moral. Mas vou traduzir para você:

    “Pergunta: A exortação de São João Paulo II, Familiaris Consortio, estipula que casais divorciados e recasados que não podem separar-se, para receber os sacramentos, precisam comprometer-se a viver em continência. Esse requerimento ainda é válido?

    Resposta: Claro, ele não é dispensável, porque é não apenas uma lei positiva de João Paulo II, mas expressa um elemento essencial da teologia moral e sacramental Cristã. A confusão sobre esse aspecto deriva também de incapacidade em aceitar a encíclica “Veritatis Splendor,” com a clara doutrina do “intrinsece malum.”

  20. Mais uma coisa.

    Se fulano é subjetivamente inculpável mas está numa situação objetivamente pecaminosa, como é que o pastor vai saber disso?

    O máximo com que o pastor pode contar é com as informações objetivas que fulano lhe transmite: “fui obrigado a casar-me” ou “não queria mas tive que fazer” etc. Essas são informações objetivas e não subjetivas. Elas podem eventualmente alterar a situação objetiva (“parecia adultério mas não é”). Mas culpa subjetiva pertence só a Deus e, talvez, ao pecador.

  21. JB,

    Se o fulano «livre e conscientemente contraiu um matrimônio válido e também livre e conscientemente mantém relações íntimas com outras que [sabe] não [ser] sua cônjuge», então ele não apenas está numa situação objetiva de pecado como comete formalmente um pecado grave. Obviamente, se todos os seus atos são praticados de maneira «livre e consciente», então não há condicionalismos nem fatores atenuantes — uma vez que estes mitigam, precisamente, o conhecimento ou a liberdade do ato humano. Não havendo condicionalismos nem fatores atenuantes, não se aplica o parágrafo 305 da AL. Não se aplicando, o fulano não pode receber os sacramentos. Qual o motivo da confusão?

    O sentido óbvio da Amoris Laetitia não foi captado só pela conferência episcopal filipina.

    O cardeal Müller não concorda que seja este o sentido da exortação:

    «It is not “Amoris Laetitia” that has provoked a confused interpretation, but some confused interpreters of it.»

    Se fulano é subjetivamente inculpável mas está numa situação objetivamente pecaminosa, como é que o pastor vai saber disso?

    É o que tô dizendo desde o começo. O pastor não sabe com certeza absoluta, mas avalia buscando a certeza moral. Em uma outra situação corriqueira, como é que o confessor sabe, por exemplo, que o fiel está realmente arrependido, ou não está omitindo nenhum pecado grave?

    A culpa subjetiva, rigorosamente, pertence só a Deus que é quem «sonda os rins e os corações». O critério humano só pode ser o da consciência reta.

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