Divulgou-se ontem que o Papa Francisco enfim responderia formalmente às questões dos cardeais sobre a Amoris Laetitia, e que o faria através de um livreto escrito pelo cardeal Francesco Coccopalmerio — prefeito do Pontifício Conselho para a interpretação dos textos canônicos. O Rorate Caeli, onde vi a nota ontem, atualizou hoje a postagem informando que o cardeal não compareceu à apresentação da obra; e mais importante, durante o evento foi informado que o livro não é uma resposta [formal] às dubia, mas compõe-se tão-somente de reflexões pastorais privadas da lavra do cardeal.
Ainda bem, porque o trecho do livro divulgado pela mídia tradicionalista simplesmente não é católico. Em curtas palavras, fala que os Sacramentos da Penitência e da Eucaristia devem ser conferidos àqueles que os pedirem, ainda que vivam em situação grave de pecado, independente de qualquer outra coisa a não ser o “desejo sincero de se aproximar dos sacramentos após um apropriado período de discernimento”. Não há nenhuma referência às condições excepcionais da Amoris Laetitia (verdadeira ausência de pecado formal, sacramentos como meio para a superação da situação objetiva de pecado, cuidado pastoral para que não haja escândalos e nenhuma margem para que se julguem diminuídas as exigências do Evangelho); ao contrário, quem lê o trecho fica com a sensação de que a Doutrina Católica foi substituída pelo subjetivismo mais esquizofrênico — como se fosse a coisa mais prosaica e ordinária do mundo alguém ter, ao mesmo tempo, um “desejo sincero” pelos Sacramentos e uma vontade irredutível de continuar vivendo em contradição com a Graça significada e atualizada por estes mesmos Sacramentos que com sinceridade se deseja receber.
Em situações normais, é de todo evidente que quem rejeita as exigências do Evangelho não tem (e nem pode ter) sinceridade no seu desejo pelos Sacramentos, e do mesmo modo o querer sinceramente a graça de Deus necessariamente inclui o querer viver de maneira reta e agradável aos olhos d’Ele. Em situações normais, quem quer de verdade os Sacramentos instituídos por Cristo quer também as condições estabelecidas pelo mesmo Cristo para se ter acesso a estes Sacramentos: afinal, quem quer o fim, quer os meios. Não há (e aliás nem pode haver) nenhuma revolução na Doutrina Católica e nem muito menos nos pressupostos metafísicos básicos da realidade. A coerência ainda é um valor que se deve sempre ter em conta em qualquer faceta da vida humana.
Mas o pior é a parte final do parágrafo. De acordo com o opúsculo, a Eucaristia deveria ser conferida para os adúlteros porque “a perfeição absoluta é um dom precioso, mas que não está ao alcance de todo mundo” (no original italiano, la perfezione assoluta è un dono prezioso ma che non può arrivare a tutti). A sentença é tão absurda que não chega nem a ser crível, e é legítimo indagar se o cardeal escreveu mesmo esse disparate ou, tendo de fato escrito, se acredita realmente no que escreveu.
Em primeiro lugar, e mais grave, reservar a prática dos atos conjugais para o interior do Matrimônio sacramental não é, sob nenhuma circunstância, “a perfeição absoluta”! Ao contrário, é o básico do início de qualquer vida moral minimamente digna deste nome. É um dos Mandamentos, é um ditame da Lei Natural que está ao alcance até mesmo dos pagãos! Quando foi que o mero cumprimento dos preceitos negativos diretos do Decálogo se transformou na “perfeição absoluta”? Desde quando a observância dos Mandamentos não é para todo mundo? Afinal de contas, somos católicos ou hereges cátaros?
Os Mandamentos são para todos sim, mesmo para o índio politeísta e canibal no meio do mato, ainda para o sarraceno crescido entre os explosivos do ISIS, mesmo para o católico que tenha «grande dificuldade em compreender «os valores inerentes à norma» católica» ou que se encontre «em condições concretas que não lhe permitem agir de maneira diferente e tomar outras decisões sem uma nova culpa»! Ninguém é positivamente chamado a adorar demônios, assassinar inocentes ou adulterar. Se certos condicionamentos são capazes de mitigar a imputabilidade subjetiva por semelhantes práticas, não é menos verdade que elas não deixam jamais de ser um mal — e o homem é sempre capaz do bem. Não existe ninguém a cujo alcance o bem não esteja! A observância dos Mandamentos pode chegar a todos sim, é lógico e evidente que pode. Somos todos seres humanos criados para Deus — para o bem portanto.
Mas há ainda uma outra questão que torna infelicíssima a colocação do cardeal Coccopalmerio: será mesmo que se pode dizer que a «perfeição absoluta» não está ao alcance de todos? E quanto àquele «estote vos perfecti sicut et Pater vester cælestis perfectus est» de Nosso Senhor no Sermão da Montanha (cf. Mt V, 48)? Porventura Cristo não falou para todos?
Dizer que a perfeição não está ao alcance de todos contraria também a doutrina do Concílio Vaticano II. De fato, o capítulo V da Constituição Dogmática sobre a Igreja abre-se assim:
A nossa fé crê que a Igreja, cujo mistério o sagrado Concílio expõe, é indefectivelmente santa. Com efeito, Cristo, Filho de Deus, que é com o Pai e o Espírito ao único Santo», amou a Igreja como esposa, entregou-Se por ela, para a santificar (cfr. Ef. 5, 25-26) e uniu-a a Si como Seu corpo, cumulando-a com o dom do Espírito Santo, para glória de. Deus. Por isso, todos na Igreja, quer pertençam à Hierarquia quer por ela sejam pastoreados, são chamados à santidade, segundo a palavra do Apóstolo: «esta é a vontade de Deus, a vossa santificação» (1 Tess. 4,3; cfr. Ef. 1,4). Esta santidade da Igreja incessantemente se manifesta, e deve manifestar-se, nos frutos da graça que o Espírito Santo produz nos fiéis; exprime-se de muitas maneiras em cada um daqueles que, no seu estado de vida, tendem à perfeição da caridade, com edificação do próximo; aparece dum modo especial na prática dos conselhos chamados evangélicos. A prática destes conselhos, abraçada sob a moção do Espírito Santo por muitos cristãos, quer privadamente quer nas condições ou estados aprovados pela Igreja, leva e deve levar ao mundo um admirável testemunho e exemplo desta santidade.
Lumen Gentium, 39. Grifos meus.
Por fim, a idéia de que a santidade possa não estar ao alcance de alguém é estranha também ao Papa Francisco: «a santidade não é uma prerrogativa só de alguns: é um dom oferecido a todos, sem excluir ninguém, e por isso constitui o cunho distintivo de cada cristão» (Audiência Geral de 19 de novembro de 2014).
Em conclusão: não existem pessoas que não sejam chamadas às exigências do Evangelho, não há hipótese em que uma situação objetiva de pecado seja a realização da vontade de Deus, não há ninguém para quem a prática das virtudes seja uma perfeição absoluta que esteja fora do seu alcance. De tudo o que se tem escrito no bojo da Amoris Laetitia, o obscurecimento desta verdade básica (talvez um dos pontos centrais do Cristianismo) é provavelmente o mais de se lamentar.
COLOCANDO A RECEPÇÃO DOS SACRAMENTOS À FRENTE DE CONVERSÃO E DO SACRAMENTO DA PENITENCIA?
Teria sido a conclusão que se tiraria do apresentado pelo cardeal Francesco Coccopalmerio de concessão dos sacramentos aos arraigados nos pecados, indispostos a se converterem até “discernirem”!
Bem sabemos que alguns comentaristas afirmaram que a Amoris laetitia não contém ensinamentos magisteriais como tais, no entanto, reflexões pessoais do Papa sobre os assuntos que aborda, inclusive D Leo Burke e, segundo ele, seriam pontos de vista pessoais do papa Francisco mesclados de doutrina da Igreja.
D Cafarra, por outro lado, disse que a confusão existente e contaminante via A laetitia só não vê quem não quiser, e os prelados conservadores estão mais que nunca irredutiveis na defesa de introdução do modernismo na Igreja, ainda bem!
As afirmações dos acima e diversos idem outros, não eliminaria o perigo para a fé e a moral colocado pelo documento, com situações duvidosas, ambiguas, capciosas etc, e expressando uma opinião pessoal num documento tido como magisterial seria inconveniente, além de o papa Francisco ter deixado claro que mais a ele interessa a prática pastoral que apego à doutrina rígida, à letra, tem sido essa mais sua abordagem.
Não há nenhum obstáculo, como tal, ao uso do Papa de uma exortação apostólica para ensinar infalivelmente sobre fé e a moral, mas nenhum ensinamento infalível estaria contido na Amoris Laetitia, uma vez que nenhuma das suas afirmações satisfaria os requisitos rigorosos para uma definição infalível um exercício não-infalível do magistério papal e, como o papa Francisco estaria se esquivando de responder aos 4 cardeais, o comprovaria.
Ter-se-ia impressão que o papa Francisco apreciaria fazer concessões às “familias feridas” em varias circunstancias – eufemismo de adúlteras? – e permitiria a elas por suas reflexões participarem dos sacramentos até “discernirem”(?), embora se cresse que mais os corações se endureceriam por essas concessões.
Os Mandamentos do Senhor Deus não são pesados e trazem até mesmo imensa harmonia social; porém, o antropocentrismo atual perverteu e rebelou as mentes a ponto de o homem por si mesmo caótico querer ser seu proprio deus!
Concílio de Trento, Sessão 6, cânon 18: “Se alguém disser que, também para o homem justificado e constituído em graça, os Mandamentos de Deus são impossíveis de observar: seja anátema” (DH 1568)
Será mais um que o papa dirá que faz teologia de joelhos?
Não entendi. Os hereges cátaros reduziam a perfeição absoluta a observar os 10 mandamentos?
Se a opinião do citado cardeal é reflexo de sua interpretação da AL, fica claro que os quatro cardeais têm razão quanto à confusão dentro da Igreja.
A impressão que tenho é que a AL veio apenas para causar confusão, visto que as questões abordadas já tinham sido muito bem definidas por São João Paulo.
O estilo subjetivo inaugurado (segundo dizem) no CVII serve apenas aos que querem errar escorando-se em interpretações possíveis de documentos “pastorais”.
AL serve para que então? Eu me pergunto porque Deus mantém um pároco socialista na cátedra de Pedro e porque o grande teólogo se mantém como papa emérito. Cristo é o dono da Igreja e sabe o que faz, mas eu realmente entendo nada neste caso.
Alexandre,
Acho que o Jorge faz menção ao fato que os cátaros, como os gnósticos em geral, acreditavam que a perfeição e a salvação eram reservadas para uns poucos escolhidos.
Jorge,
Não entendo seu espanto com as reflexões pastorais do Cardeal Coccopalmerio. Afinal, como você sabe, ele é o responsável no Vaticano pela interpretação de textos legais. Será possível que logo o Cardeal Prefeito do Pontifício Conselho para Interpretação de Textos Canônicos tenha interpretado mal a Amoris Laetitia?! Será possível que o bom cardeal não saiba que o CDC 915 continua, teoricamente, valendo?
Além disso, não está claro para mim porque a interpretação do Cardeal Coccopalmerio não seria católica mas a interpretação do Jorge Ferraz seria. Tanto quanto pude perceber, tanto você quanto ele fazem tábua rasa de dois mil anos de tradição católica.
Ainda aguardo que você me explique como pode um sacerdote dar absolvição e comunhão a quem mantém, e continuará mantendo, relações íntimas com alguém com o qual não é sacramentalmente casado.
O CIC 1490 diz que “O movimento de regresso a Deus, pela conversão e arrependimento, implica dor e aversão em relação aos pecados cometidos, e o propósito firme de não tornar a pecar no futuro”. Mas acho que não há muito que entender mesmo, afinal, that’s amoris!
https://www.youtube.com/watch?v=a3r9lmhZf08
JB,
Meu espanto não é com «as reflexões pastorais» do Cardeal Coccopalmerio, mas sim (como disse no post) com «o trecho do livro divulgado pela mídia tradicionalista». Penso que as razões do espanto estão suficientemente explicadas no corpo do artigo.
A «interpretação do Jorge Ferraz» não passa da minha interpretação particular, que procura na medida do possível ser fiel quer à doutrina católica tradicional, quer à letra da Exortação Apostólica. E é melhor (na minha opinião) que a do Cardeal no trecho citado porque considera mais aspectos tanto da teologia básica quanto da Amoris Laetitia.
De todo modo, a dar crédito às outras notícias, parece que a «mídia tradicionalista» falsificou o pensamento do cardeal. Segundo ACI, a tese do cardeal é que podem ser admitidos «à Penitência e à Eucaristia os fiéis que se encontram em união não legítima, desde que observem duas condições essenciais: desejem mudar situação, porém não podem concretizar o seu desejo» — o que é bem diferente do prosaico «desejo sincero de se aproximar dos sacramentos após um apropriado período de discernimento» contra o qual protestei aqui no blog.
Bem, Jorge, o texto traduzido pelo blogue tradicionalista é o que está no site da Panorama, que não é tradicionalista. O autor da notícia explicitamente diz que suas palavras podem ser lidas no livro (“si legge nella nota ministeriale”). Portanto, se houve erro de tradução, este não foi do blogue tradicionalista e sim da revista.
Mesmo na hipótese benigna, a simples possibilidade de alguém divorciado e recasado, vivendo more uxorio, poder comungar já significa na prática o fim da CDC 915, ainda mais agora com o endosso do próprio “ministro da justiça” do Vaticano.
>”desejem mudar situação, porém não podem concretizar o seu desejo»
Ou seja, o sujeito não quer continuar vivendo more uxorio com sua companheira mas não consegue parar de fazer sexo com ela.
Bem, a menos que Amoris Laetitia esteja se referindo a casos de estupro por meios físicos ou psicológicos, e obviamente não está, eu realmente queria saber o que foi feito da necessidade do “firme propósito de não mais pecar” para receber o sacramento da penitência e da eucarisia.
Para balizar sua resposta, copio abaixo trechos do “Catecismo de São Pio X”:
729) Em que consiste o propósito?
O propósito consiste em uma vontade determinada de nunca mais cometer o pecado, e de empregar todos os meios necessários para o evitar.
730) Que condições deve ter esta resolução, para ser um bom propósito?
Para ser um bom propósito, esta resolução deve ter principalmente três condições: deve ser absoluta, universal e eficaz.
731) Que quer dizer: o bom propósito deve ser absoluto?
Quer dizer que o propósito deve ser sem condição alguma de tempo, de lugar ou de pessoa.
732) Que quer dizer: o bom propósito deve ser universal?
O bom propósito deve ser universal, quer dizer que devemos ter a vontade de evitar todos os pecados mortais, tanto os que já tenhamos cometido no passado, como os que poderíamos cometer ainda.
733) Que quer dizer: o bom propósito deve ser eficaz?
O bom propósito deve ser eficaz, quer dizer que é necessário termos uma vontade decidida de perder todas as coisas antes que cometer um novo pecado, de fugir das ocasiões perigosas de pecar, de destruir os maus hábitos, e de satisfazer a todas as obrigações lícitas contraídas em conseqüência dos nossos pecados.
“Segundo ACI, a tese do cardeal é que podem ser admitidos «à Penitência e à Eucaristia os fiéis que se encontram em união não legítima, desde que observem duas condições essenciais: desejem mudar situação, porém não podem concretizar o seu desejo”.
Jorge, v não acha que o inferno está de desejosos de mudarem e vida e deixaram sempre para amanhã?
Não saberá o diabo tapear os desejosos e mantê-los no “cras”, não acha?
Jesus nunca ofereceu esse tipo de alternativa a ninguém, e isso dá margem a muitos desejosos de mudarem de vida – quando eu puder, mais adiante, oportunamente… – ou dia de São Nunca!
Eu já me vi muito convicto de alguns propósitos. Hoje vejo que provavelmente era um dia de São Nunca. Não sai dos propósitos, mas os percebo enfraquecidos, ou ao menos com abordagem mudada. Passaram-se anos. É natural que o homem mude o pensamento, pois estamos sempre recebendo mensagens, sejam elas verdadeiras informações ou enganação.
Nós não temos o controle da vida. Tomamos decisões mas algo muito maior nos envolve.
Bom dia amigos.
Venho por meio deste alertar-vos a respeito de um Projeto de Lei que está para ser votado ainda nesta semana que pretende garantir os fundos necessários para estruturação dos serviços de aborto no Brasil, tendo em vista a vigência da Lei Cavalo de Tróia (12.845/2013), que ainda não foi suprimida pois o PL 5.069/2013 que a revoga ainda não foi aprovado em plenário. Mais informações podem ser obtidas no meu blog
http://emdefesadavidadaigreja.blogspot.com.br/2017/02/urgenteprojeto-de-lei-que-garante-o.html
Precisamos nos manifestar o quanto antes para que esta proposta não seja aprovada ou que possa pelo menos ser modificada para que não sirva de meios para instrumentalizar hospitais públicos no aborto.
Conto com sua ajuda divulgando no seu blog e nos ajudando a fazer este trabalho entrando em contato com as autoridades relacionadas ao Projeto.
Deus abençoe
Obrigado