Ainda outras considerações sobre a ignorância

É incorreto dizer, como amiúde se ouve por aí, que “a ignorância é o oitavo sacramento”. Um sacramento é um sinal sensível e eficaz da graça de Deus, na definição que nós aprendemos a repetir nos antigos catecismos. Isso significa que um sacramento, para sê-lo, precisa transmitir a graça. Os sacramentos ou produzem a graça em quem não a possui — são os chamados sacramentos de mortos: o Batismo para quem nunca a recebeu, a Penitência para os que, tendo-a recebido, perderam-na pelo pecado mortal — ou aumentam-na nos que já se encontram em estado de graça (os sacramentos de vivos: todos os outros).

Ora, em hipótese alguma a ignorância tem o condão de transmitir a graça. O papel da ignorância é o de mitigar a culpabilidade de um ato humano que, em condições normais, seria pecaminoso. Assim, por exemplo, o sujeito não sabe que precisa assistir uma Missa em determinado dia santo. A obrigação de participar da Missa nos dias de preceito é matéria grave, constante do Terceiro Mandamento do Decálogo e do Primeiro Mandamento da Igreja; portanto, em condições normais, o sujeito que voluntariamente deixa de ir à Igreja quando a isso era obrigado comete um pecado grave, cuja primeira consequência é a perda da graça santificante.

Mas, no nosso exemplo, o sujeito não sabia que, em determinado dia concreto, estava obrigado a ouvir Missa. Não a ouviu e sequer passou por sua cabeça que, agindo assim, pudesse estar pecando. O que acontece? Se essa ignorância é desculpável (e, atenção!, que somente Deus, o Justo Juiz, é capaz de aquilatar as nossas ignorâncias), então o fiel não sofre as consequências do pecado de faltar à Missa — ou, melhor dizendo, ele não peca formalmente. Não é que a ignorância perdoe o pecado: ela, rigorosamente, faz com que o ato não configure pecado.

Mas isso em absolutamente nada muda a situação anterior deste hipotético fiel. Se antes ele estava em estado de graça, manteve a graça santificante porque não pecou; mas, ao contrário, se antes se encontrava em pecado, privado da graça de Deus, então permanece sem a graça porque não fez nada capaz de lha restituir. A ignorância não é um sacramento, portanto, porque — ao contrário dos sacramentos — apenas mantém o fiel na mesma condição em que ele já se encontrava. Pela mesma razão também a ignorância não “salva” ninguém, porque o que salva é a graça e a ignorância não produz graça.

No limite, se o sujeito é um índio na América pré-descobrimento, ele não pode ser salvo “por ignorância invencível”. A ignorância pode lhe escusar de um sem-número de pecados, mas não pode lhe conferir a graça necessária à salvação. No limite, se o índio pré-cabralino salvou-se, então foi salvo pelo Batismo de Desejo — que, este sim, é verdadeiro sacramento, modalidade do único Sacramento do Batismo que existe — e não “pela ignorância”.

Mas a ignorância não serve somente para teorizar sobre a salvação dos ameríndios. Falar em ignorância (invencível) é o mesmo que falar em consciência (invencivelmente) errônea, e aquilo que se aplica aos que nunca ouviram falar de Cristo aplica-se também, mutatis mutandis, aos fiéis católicos.

A consciência errônea, segundo o Aquinate, sempre obriga (Summa, I-IIae, q. 19, a.5) mas nem sempre escusa (id. ibid., a. 6). É uma situação que pode parecer paradoxal — o sujeito estar obrigado a seguir a sua consciência na prática de um mal e, ainda assim, praticando-o, poder cometer pecado –, mas é assim porque os dois pecados (o de dissentir da consciência errônea e o de segui-la) o são em ordens distintas. O pecado de alguém agir em desacordo com a própria consciência é o de direcionar a sua vontade para o (que lhe parece) mal; já o pecado de praticar o mal que a sua consciência lhe apresenta como bem, é o de ter sido descuidado na formação da própria consciência. E, aqui mais uma vez, apenas o Altíssimo, Aquele que sonda os corações e os rins, pode discernir com retidão e justiça aquilo que é negligência e aquilo que é erro escusável. A verdade é que tanto a ignorância vencível quanto a invencível são indistinguíveis “de fora” (e, aliás, provavelmente até mesmo “de dentro”): descabe julgá-las quer aos homens, quer à própria Igreja, sendo esta uma prerrogativa de Deus somente.

Em resumo, o ato praticado de acordo com a consciência errônea

i) não muda a situação anterior do fiel, uma vez que o fulano, se estava na graça de Deus, pode mantê-la, mas se já se encontrava privado dela então permanece dela privado; e

ii) não necessariamente escusa, uma vez que pode ser fruto de negligência, o que acarreta culpabilidade e pode levar à perda da graça santificante.

Vê-se assim, claramente, que é uma situação estéril e insegura, que ninguém pode voluntariamente escolher para si próprio e da qual, aliás, todo homem tem o dever de resgatar o seu semelhante. Não é uma condição que se possa promover ou chancelar; não é nem mesmo uma condição ante a qual se possa ficar indiferente. A caridade manda-nos desejar o melhor para o nosso próximo. É de todo evidente que há coisas melhores do que uma consciência errônea para desejarmos àqueles que a Divina Providência põe no nosso caminho.

Ora, o papel da Igreja é o de levar as almas a Deus, do Qual elas somente podem se aproximar revestidas da graça de Cristo. Não pode portanto Ela contentar-se em manter os homens na ignorância e “torcer” para que esta ignorância seja de tal jaez que um dia lhes escuse os maus atos perante o Justo Juiz — isso seria de uma irresponsabilidade terrível! Não dá para “arriscar” a salvação de uma alma desse jeito, não é possível deixar de munir um filho de Deus com tudo aquilo de que ele precisa para que seja encontrado irrepreensível no dia da vinda do Senhor.

Não pode a Igreja manter os homens na ignorância em primeiríssimo lugar porque esta ignorância não salva ninguém e, em segundo lugar, porque os atos realizados em consonância com a consciência errônea, embora obrigatórios, podem vir a ser inescusáveis. Não existe e não pode existir, como já falei alhures, uma pastoral da ignorância. Ela é contra a caridade, contra a lógica, contra a missão divina da Igreja.

Publicado por

Jorge Ferraz (admin)

Católico Apostólico Romano, por graça de Deus e clemência da Virgem Santíssima; pecador miserável, a despeito dos muitos favores recebidos do Alto; filho de Deus e da Santa Madre Igreja, com desejo sincero de consumir a vida para a maior glória de Deus.

4 comentários em “Ainda outras considerações sobre a ignorância”

  1. “Se é evidente que um homem ignorante pode ser virtuoso, é igualmente evidente que a ignorância não é uma virtude.” F. J. Sheed

  2. Excelente postagem. Mas afinal, demos uma volta de 180 graus ou um giro completo de 360?

  3. Jorge,

    Você já leu as diretrizes pastorais da Arquidiocese de Braga, Primaz das Espanhas, sobre a comunhão para os divorciados?

    http://www.diocese-braga.pt/media/contents/contents_It6SIR/construir%20a%20casa%20sobre%20a%20rocha.pdf

    Entre muitas, na página 34-35:

    “Pode ser conveniente que um eventual acesso aos sacramentos se realize de modo reservado, sobretudo quando se prevejam situações de escândalo ou de conflito. Todavia, simultaneamente, não se deve deixar de acompanhar e educar a comunidade para que cresça no espírito de compreensão e de acolhimento, sem que isso implique criar confusões no ensino da Igreja sobre o matrimónio indissolúvel.”

    Ou seja, quem ainda se escandaliza é que vai acabar tendo que ser recatequizado para aprender o novo catecismo. Nem imagino o que já não devem estar ensinando às crianças que ainda se dão trabalho de ir a catequese.

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