Não obrigamos ninguém a se converter à nossa doutrina

[O excerto abaixo é do século XIII, e contém uma história de que os frades dominicanos provavelmente se utilizaram vezes sem conta em suas pregações públicas, pelas ruas e praças medievais, diante do povo comum. São alguns episódios da vida do Apóstolo São Tiago, o Maior, que, tendo ficado de fora das páginas canônicas das Escrituras Sagradas, foram recolhidos e compilados pela piedade cristã. A leitura é bastante agradável e edificante. Dentre outras coisas, chamo atenção para alguns detalhes: i) a afirmação de que S. Tiago pregou na Espanha enquanto era vivo, tendo obtido lá bem pouco fruto — o que impressiona, dada a devoção espanhola a Santiago que persiste até os nossos dias; ii) o tema, recorrente, do perseguidor que se converte em contato com o santo — mais com o seu exemplo do que com a sua pregação! –, primeiro o mago Hermógenes, depois o judeu Josias; iii) a instrutiva questão demonológica, onde os demônios podem exercer poder sobre os corpos tanto dos conversos (Fileto) como dos pagãos (Hermógenes), sendo contudo impotentes diante dos santos de Deus.

Chama também atenção a afirmação, singela, bruta, direta, que foge totalmente ao lugar-comum que se tem atualmente sobre a Idade Média, daquela verdade fundamental do Cristianismo: os cristãos “não obrigamos ninguém a se converter à nossa doutrina”. Isso está estampado com todas essas letras em um texto medieval da mais alta popularidade, e deveria nos levar a, no mínimo, questionar a alegada “intolerância” cristã da tal “Idade das Trevas” que os detratores do Cristianismo gostam tanto de alardear.]

I. O apóstolo Tiago, filho de Zebedeu, depois da ascensão do Senhor pregou na Judéia e em Samaria e foi para a Espanha onde semeou a palavra de Deus. Mas vendo que não tinha êxito e só havia ganho nove discípulos, deixou ali dois deles para pregar e com os outros sete voltou para a Judéia. O mestre João Beleth diz que Tiago converteu na Espanha somente uma pessoa.

Já de volta à Judéia, enquanto Tiago pregava a palavra de Deus, um mago chamado Hermógenes fez acordo com os fariseus e mandou seu discípulo Fileto encontrar o apóstolo para que, frente a frente com ele, convencesse os judeus de que sua pregação era falsa. Mas como diante de todos, o apóstolo racionalmente o convenceu e realizou muitos milagres, Fileto voltou até Hermógenes aprovando a doutrina de Tiago, contando os milagres que vira e tentando persuadi-lo a também se tornar discípulo. Irado, Hermógenes recorreu então à sua arte mágica para imobilizar Fileto, que não conseguiu se mover de forma alguma, e disse: “Veremos se Tiago pode soltá-lo”. Fileto encarregou um criado de contar a Tiago o que havia ocorrido. Este deu ao criado seu lenço dizendo: “Que ele pegue este lenço e diga ‘o Senhor levanta os oprimidos e livra os que estão atados’”. Logo que Fileto tocou o lenço, os vínculos das artes mágicas de Hermógenes foram rompidos. Fileto insultou Hermógenes e foi à procura de Tiago.

Cheio de raiva, Hermógenes passou a invocar demônios para que trouxessem Tiago e Fileto amarrados, porque queria vingar-se deles para que seus outros discípulos, sabendo o que ocorrera, não o insultassem. Os demônios vieram e dirigiram-se a Tiago vociferando pelo ar: “Tiago apóstolo, tem compaixão de nós, pois ainda não chegou nosso tempo e já estamos ardendo”. Tiago perguntou: “Por que vieram?”. Eles responderam: “Hermógenes nos enviou para que levemos você e Fileto até ele, mas assim que viemos para cá um anjo de Deus nos amarrou com correntes de fogo que nos atormentam enormemente”. Tiago: “Que os anjos do Senhor os soltem. Voltem para Hermógenes e tragam-no até mim amarrado, porém ileso”. Os demônios partiram, apoderaram-se de Hermógenes e amarraram suas mãos às costas, dizendo: “Você nos mandou a um lugar no qual fomos queimados”.

Depois o levaram atado até Tiago, a quem pediram: “Dê-nos poder sobre este homem para que possamos nos vingar por tê-lo ofendido e provocado assim nossas queimaduras”. Tiago: “Fileto está diante de vocês, por que não o prendem?” Eles: “Não temos poder para sequer tocar em uma formiga que esteja em seu aposento”. Tiago dirigiu-se a Fileto: “Conforme o ensinamento de Cristo, vamos retribuir o mal com o bem. Hermógenes prendeu-o, agora o solto”. Isso aconteceu, deixando Hermógenes confuso. Tiago olhou-o e disse: “Vá, você está livre para ir aonde quiser, não obrigamos ninguém a se converter à nossa doutrina”. Hermógenes disse: “Conheço a ira dos demônios, e se você não me der algo que possa levar comigo, eles me matarão”. Tiago deu seu báculo, Hermógenes foi buscar seus livros de artes mágicas e entregou-os para que fossem queimados. Mas Tiago, temendo que o forte odor da fogueira molestasse os desprevenidos, ordenou que os livros fossem jogados ao mar. Depois de fazê-lo, Hermógenes voltou para junto do apóstolo e prostrando-se a seus pés disse: “Libertador de almas, acolhe este arrependido que até agora o difamou, levado pela inveja”. Ele passou a se destacar no temor de Deus e a realizar muitas boas obras.

Vendo os judeus que Hermógenes havia sido convertido pelo zelo de Tiago, passaram a repreendê-lo por pregar Jesus, o crucificado. Ele no entanto recorreu às Escrituras, mostrou nelas as evidências do advento e da paixão de Cristo e muitos passaram a crer. Abiatar, que era sumo sacerdote naquele ano, sublevou o povo, que se apoderou de Tiago, amarrou uma corda em seu pescoço e o conduziu até Herodes Agripa, que mandou degolá-lo. Quando o conduziam ao local de decapitação, um paralítico que jazia estendido no caminho pediu ao apóstolo que lhe concedesse saúde. Tiago disse: “Em nome de Jesus Cristo, por cuja Fé sou conduzido à decapitação, levante curado e bendiga ao seu Criador”, e imediatamente o paralítico se levantou curado e bendisse ao Senhor.

O escriba chamado Josias, que havia colocado a corda no pescoço de Tiago e a puxava, ao ver isso se jogou a seus pés e pediu que ele o recebesse como cristão. Vendo isso, Abiatar agarrou Josias: “Se não maldisser o nome de Cristo, farei que você seja degolado junto com Tiago”. Josias: “Maldigo-o e maldigo todos os seus dias. Bendito seja o nome do Senhor Jesus Cristo pelos séculos!”. Abiatar ordenou que o esbofeteassem e mandou um mensageiro a Herodes solicitando permissão para decapitá-lo com Tiago. Quando iam ser degolados, Tiago pediu ao carrasco uma botija com água com a qual batizou Josias. Imediatamente suas cabeças foram cortadas e o martírio deles consumado. A decapitação do bem-aventurado Tiago aconteceu no dia 25 de março, quer dizer, na data da anunciação do Senhor. Seu corpo foi trasladado a Compostela em 25 de julho, mas seu sepulcro ficou pronto apenas em janeiro. A Igreja determinou 25 de julho como a época mais conveniente para celebrar universalmente sua festa.

JACOPO DE VARAZZE.
Legenda Áurea: vidas de santos. Trad. Hilário Franco Júnior.
São Paulo : Companhia das Letras, 2003. PP. 562-564

Publicado por

Jorge Ferraz (admin)

Católico Apostólico Romano, por graça de Deus e clemência da Virgem Santíssima; pecador miserável, a despeito dos muitos favores recebidos do Alto; filho de Deus e da Santa Madre Igreja, com desejo sincero de consumir a vida para a maior glória de Deus.

Um comentário em “Não obrigamos ninguém a se converter à nossa doutrina”

  1. E ainda dizem que a Igreja Católica é intolerante…
    Belo texto Jorge! O livro A LEGENDA ÁUREA é maravilhoso!

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