Parece que, recentemente, em certo programa de televisão, um entrevistador malicioso quis provocar determinado político dizendo que ele — o político — era cristão e contra os imigrantes quando, na verdade, o próprio Jesus havia sido um refugiado. A frase, no contexto em que foi dita, é uma daquelas coisas sem pé nem cabeça que você não sabe nem por onde começar a comentar. Dita em um debate, não passa de frase de efeito, muito boa como slogan mas com pouco ou nenhum significado.
Vamos começar por dar os créditos a quem de direito. A referida afirmação não foi nenhuma “sacada” repentina do entrevistador e nem muito menos faz parte do discurso de esquerda: ela já foi dita pelo Papa Francisco em 2014 (“Pensemos que Jesus foi um refugiado, teve que escapar para salvar a vida com são José e Nossa Senhora, e fugiu para o Egipto. Ele foi um refugiado.”) e, antes dele, por Bento XVI em 2011 (“Na festa da Sagrada Família, logo após o Natal, recordámos que também os pais de Jesus tiveram que fugir da própria terra e refugiar-se no Egipto, para salvar a vida do seu menino; o Messias, o Filho de Deus, foi um refugiado.”). Comparar Nosso Senhor a um refugiado, assim, não é ofensa cristológica nem canonização de determinada política externa contemporânea de matiz “progressista”. Não tem nada a ver.
É de se espantar que as pessoas gastem mais do que cinco minutos com isso, quer tomando a lembrança do refúgio do Egito como uma provocação, quer negando a Nosso Senhor a condição de refugiado!
Aliás, é bastante evidente que as condições geopolíticas da Judéia sob dominação romana no século I guardam bem pouca analogia com a Europa globalizada do século XXI: não é portanto necessário ninguém se apegar ao tecnicismo de que, à época da infância de Nosso Senhor, tanto Nazaré quanto o norte da África integravam ambos o Império Romano e, portanto, a rigor a Sagrada Família não se deslocou senão dentro do mesmo território (!). Tal alegação não passa de um jogo de palavras ainda mais esdrúxulo do que a afirmação original que ela pretende responder. O único fato relevante nesta falsa polêmica — fato perturbadoramente óbvio — é que “refugiados” consiste em uma categoria bastante ampla, que envolve realidades as mais díspares, e que portanto o “argumento” que diz “você não pode ser contra os imigrantes porque Jesus era um refugiado” não é uma argumentação de verdade. A questão migratória é complexa e não comporta posições em bloco “contra” ou “a favor” como os nossos jornalistas parecem desejar.
Polêmicas e dificuldades concretas à parte, é preciso não esquecer que existe um óbvio dever cristão de se tratar bem os “refugiados” — dever que precede e transcende a atual crise imigratória européia. Esta obrigação se encontra na própria Escritura Sagrada (“Não oprimirás o estrangeiro, pois conheceis o que sente o estrangeiro, vós que o fostes no Egito.” Êxodo 23, 9; “Se um estrangeiro vier habitar convosco na vossa terra, não o oprimireis, mas esteja ele entre vós como um compatriota, e tu o amarás como a ti mesmo, porque fostes já estrangeiros no Egito.” Levítico 19, 33-34) e, mais recentemente, no Compêndio de Doutrina Social da Igreja:
505 (…) Uma categoria particular de vítimas da guerra é a dos refugiados, constrangidos pelos combates a fugir dos lugares em que vivem habitualmente, até mesmo a encontrar abrigo em países diferentes daqueles em que nasceram. A Igreja está do lado deles, não só com a presença pastoral e com o socorro material, mas também com o empenho de defender a sua dignidade humana: «A solicitude pelos refugiados deve esforçar-se por reafirmar e sublinhar os direitos humanos, universalmente reconhecidos, e a pedir que para eles sejam efetivamente realizados».
O texto do Compêndio é de 2004, mas este parágrafo em específico remete a uma mensagem de S. João Paulo II para a Quaresma de 1990. E esta mensagem, por sua vez, faz referência à encíclica Pacem In Terris de S. João XXIII escrita em 1963:
105. Não é supérfluo recordar que os refugiados políticos são pessoas e que se lhes devem reconhecer os direitos de pessoa. Tais direitos não desaparecem com o fato de terem eles perdido a cidadania do seu país.
106. Entre os direitos inerentes à pessoa, figura o de inserir-se na comunidade política, onde espera ser-lhe mais fácil reconstruir um futuro para si e para a própria família. Por conseguinte, incumbe aos respectivos poderes públicos o dever de acolher esses estranhos e, nos limites consentidos pelo bem da própria comunidade retamente entendido, o de lhes favorecer a integração na nova sociedade em que manifestem o propósito de inserir-se.
Ou seja, os Papas dos últimos cinquenta anos sustentaram em uníssono, em diferentes ocasiões, com diversos graus de autoridade, que existe um dever cristão — mais ainda, um dever humano — de tratar com solicitude os refugiados. Os ecos veterotestamentários desta obrigação encontram-se no cerne da história do povo judeu. Tal ensinamento é eloquente demais, constante demais para poder ser honestamente ignorado; as dificuldades contemporâneas provocadas pelos inimigos da Igreja, conquanto sem dúvidas existam e sejam sérias, não nos autorizam a menosprezar este dever de caridade, como parece vir sendo cada vez mais fácil fazer.
Diante de uma convergência magisterial de tal magnitude, é de espantar que os católicos aceitem tão facilmente a versão “progressista” da questão migratória — onde a defesa dos imigrantes é pauta privativa dos esquerdistas e onde associar Nosso Senhor a um refugiado é uma traição ao Catolicismo. É preciso dizer que isso é falso. Os católicos precisam reencontrar a sua identidade, estabelecida positivamente em relação àquilo que a Igreja ensina e vive — ao invés de continuar se definindo mediante a simples oposição àquilo que alardeiam os anticlericais.
Mais de 50 anos, Jorge, que é pra não ter dúvida:
A emigrante Sagrada Família de Nazaré, fugindo para o Egito, é o arquétipo de toda família de refugiados. Jesus, Maria e José, vivendo em exílio no Egito para escapar da fúria de um rei perverso, são, para todos os tempos e lugares, os modelos e protetores de todo migrante, estrangeiro e refugiado de qualquer tipo, que, seja compelido por medo de perseguição ou por desejo, é forçado a deixar sua terra nativa, seus amados pais e parentes, seus amigos próximos ao procurar uma terra estrangeira. (Pio XII)
http://www.papalencyclicals.net/Pius12/p12exsul.htm
Triste é ver o bem ser considerado propriedade de um ou outro grupo, e a Fé um instrumento às conveniências.
Precisamos divulgar até a exaustão os ensinamentos da Doutrina Social da Igreja, isto é, os verdadeiros princípios do Cristianismo, pois essa é a única garantia de que poderemos alcançar a verdadeira justiça social.
O texto de Jorge Ferraz é muito oportuno e esclarecedor, adequado ao momento politico que vivemos no Brasil.
A transcrição acima, por Gustavo em seu comentário, de um Documento Pontifício do século passado (Papa Pio XII), sobre o mesmo assunto dos refugiados, reforça as colocações de Jorge Ferraz. Vale a pena entrar no sítio indicado por Gustavo, link http://www.papalencyclicals.net/Pius12/p12exsul.htm. O texto da Constituição Apostólica do Papa de Pio XII, sobre o Exílio da Família de Nazaré, publicado em 1952, continua com uma flagrante atualidade. O texto está em inglês, mas poderá ser lido em português, com tradução razoável do tradutor Google.
Boa tarde, Jorge! Tem fundamento esta notícia? Igreja Católica altera doutrina para se opor a pena de morte em todos os casos http://a.msn.com/01/pt-br/BBLoIbX?ocid=se
Aldo,
Não. Há muito tempo que a Igreja já atua pela abolição da pena de morte nos dias de hoje. Parece que alguém achou que alterar o Catecismo seria uma boa forma de impulsionar essa atuação.
A doutrina, no entanto, é a mesma. Já falei sobre o tema, entre outros lugares, aqui:
https://www.deuslovult.org/2014/11/13/sobre-a-inadmissibilidade-da-pena-de-morte/
Desculpe, Jorge, mas a argumentação de Ladaria é fundamentalmente diferente da de João Paulo II.
Impressiona o “malabarismo teológico” afim de justificar a uma “fumaça de satanás” que adentrou a Igreja de Cristo no Concílio do Vaticano II; evoca-se, temporalmente(50 anos) uma identidade MAIOR do que os Papas anteriores, como se de fato o cristianismo se iniciou na década de 60.
Sim, de fato…aquele que tentou Jesus Cristo, re(re)refundou….
Sr. Joao Neves, eu realmente não entendi do que o senhor está falando.
Que me conste, o Concílio Vaticano II não se manifestou sobre se Nosso Senhor era ou não era refugiado.
Ademais, como o próprio Gustavo lembrou mais acima (veja o primeiro comentário deste post), o próprio Pio XII já havia feito a correlação entre a Sagrada Família e os emigrantes e refugiados.
Por fim, não consigo sequer imaginar que “Papas anteriores” possam ter dito o contrário das citações trazidas neste texto.