Não faltam apenas bons pastores na Igreja: também se precisa de bons súditos

Nestes dias terríveis, nesta hora lancinante, neste momento agônico onde a crise da Igreja parece atingir o paroxismo, é preciso — mais do que nunca! — manter os pés no chão e os olhos voltados para o Alto; é preciso não se precipitar e não se deixar levar pelos instintos da turba, por justos que eles pareçam neste momento; é preciso respirar fundo e tomar a decisão mais racional e mais correta, por mais antipática que ela se apresente agora.

É um momento particularmente difícil e que nos deixa desnorteados! Grandes baluartes do Catolicismo tradicional, em pungente descompostura, vêm a público quais camponeses desesperados, munidos de archotes e forquilhas, cercar a Cidade Eterna em uma noite de lua minguante para pedir — quem o ousaria imaginar jamais? — a cabeça do Cristo-na-Terra. Católicos tradicionais, conservadores, pedindo em público a renúncia do Papa! Seria inacreditável, uma piada de mau gosto, uma burla grotesca, se não fosse a terrível e dolorosa verdade.

E nem estamos falando dos críticos inveterados de tudo o que sucede e procede do Vaticano II. Agora são pessoas equilibradas, apostolados sérios, nomes respeitáveis que fazem coro à denúncia e ao brado do Mons. Viganò pela renúncia do Papa Francisco por conta do escândalo do Card. McCarrick. É o Rorate Caeli que publica um editorial dizendo que “[o Papa] Francisco deve ir”; é o Michael Voris dizendo que o “Papa Francisco deve renunciar”; é o Thomas Peters — compartilhado pelo Scott Hahn! — dizendo que se as acusações de Viganò forem verdadeiras “a única coisa responsável que o Papa pode fazer é renunciar”.

É preciso ter calma. É preciso ter paciência. É preciso sofrer as dores, a vergonha, a infâmia, é preciso entornar corajosamente o cálice até a última gota, até lhe ver o fundo. É preciso, na falta de expressão melhor, resignar-se.

Neste momento de grave crise é preciso ser tradicional, é preciso ser conservador, é preciso ser católico. E a coisa católica, conservadora e tradicional a ser feita certamente não é pedir a renúncia do Soberano Pontífice. Nem mesmo situações extraordinárias autorizam que se lance mão de expedientes revolucionários; não é lícito fazer o mal para que dele advenha um bem. Súditos exigirem nas ruas a renúncia do monarca não é uma atitude conservadora, subordinados clamarem nas praças pela abdicação dos superiores não é uma coisa tradicional, leigos publicarem manifestos para que o Papa renuncie ao Trono de Pedro é coisa inaudita em vinte séculos de Cristianismo.

É preciso dizer “não”. É preciso resistir.

E não se trata de menoscabar as denúncias do Mons. Viganò. Elas são graves e precisam ser levadas a sério por toda a Igreja. Como disse alguém, não é uma disputa intestina entre conservadores e progressistas no seio da Igreja Católica: é a dor provocada a todos por um clero corrompido, um clero por cuja santificação cada membro do Corpo de Cristo é chamado a derramar as suas lágrimas.

Não se trata, insista-se, de desprezar as denúncias do ex-núncio. Ao contrário, é para que elas sejam levadas suficientemente a sério que é preciso separar, no seu testemunho, o que é denúncia e o que é opinião, o que é problema apontado e o que é solução apresentada. A rede de homossexuais que existe no clero é a denúncia, clara e inequívoca, que ou é verdadeira ou é falsa; a demissão de todos os de alguma maneira envolvidos no acobertamento desta rede, isso é uma proposta de solução, que não necessariamente é a única solução possível. Para uma coisa ser verdadeira não é necessário que a outra também o seja; para se dar crédito à denúncia feita pelo Arcebispo, não é necessário adotar a mesma opinião do Arcebispo quanto à resposta que se lhe deve dar.

A íntegra do testemunho de Mons. Viganò pode ser lida aqui. Não acho, sinceramente, que lhe seja possível questionar o conteúdo; acredito que o Arcebispo é sincero e, o seu relato, é substancialmente verdadeiro. Não acho que a defesa do Papa exija desacreditar as palavras do Arcebispo, como parece ser a linha adotada pelo Andrea Tornielli (primeiro aqui e, mais detalhadamente, aqui): com isso se corre o risco de perder de vista a dimensão da corrupção do clero e de deixar de tomar as medidas necessárias à sua purificação.

Porque é evidente que há corruptos entre o clero; é evidente que a Igreja agoniza e precisa de profunda reforma doutrinária e moral. Todo mundo sabe disso; sem dúvidas o Papa Francisco o sabe também.

Estou disposto a aceitar que o Papa Francisco estava certamente informado das acusações contra o Card. McCarrick. Quem, no entanto, será capaz de aquilatar o quanto ele efetivamente lhes dava crédito? Ou se ele acreditava que os pecados do Cardeal pertenciam a um passado do qual Sua Eminência já estava arrependido? Ou se achava que as medidas tomadas contra ele já tinham cumprido o seu caráter ressarcitório, e, afinal de contas, toda pena há de ter o seu fim? Não há, absolutamente!, nenhum liame necessário entre reabilitar um cardeal homossexual e apoiar a agenda gay. Há erros de juízo prático de diversas matizes; nem todos eles têm a mesma dimensão; e nenhum, absolutamente nenhum erro do Romano Pontífice nesta seara autoriza os católicos a saírem às ruas para lhe coagir a renunciar.

Defender o Papa, como eu dizia, não exige desacreditar o Mons. Viganò. É o contrário: é defender a denúncia do Mons. Viganò que exige desacreditar a campanha pública pela saída do Papa Francisco. Tal campanha é moderna e revolucionária, é anti-tradicional, desnecessária e contraproducente. O Papa obviamente não é “infalível” em seus atos de governo (a categoria nem se pode aplicar aqui), mas é soberano. E ser soberano significa, justamente, que ninguém lhe pode exigir que responda pelos eventuais erros que cometa.

O Papa pode perfeitamente renunciar. Mas pode também, e também perfeitamente, não renunciar, e não há poder algum sobre a terra que tenha o direito de lhe exigir a Grã Renúncia. E se os fiéis não podem demandar a renúncia do Papa — como de fato não o podem –, então essa mobilização toda nas redes sociais é fumaça e pirotecnia, e pior, é desperdício de esforços e desvio de rumos.

Que choremos pela Igreja, que Lhe ofereçamos as nossas dores e coloquemos o nosso trabalho à Sua disposição. E que rezemos pelo Papa, rezemos pelo Doce Cristo-na-Terra, peçamos a Deus que o ilumine e que nos ilumine. Que o Espírito Santo nos ajude: que ensine o Papa a ser Pastor, e nos ensine a nós, leigos, a sermos súditos.

Publicado por

Jorge Ferraz (admin)

Católico Apostólico Romano, por graça de Deus e clemência da Virgem Santíssima; pecador miserável, a despeito dos muitos favores recebidos do Alto; filho de Deus e da Santa Madre Igreja, com desejo sincero de consumir a vida para a maior glória de Deus.

14 comentários em “Não faltam apenas bons pastores na Igreja: também se precisa de bons súditos”

  1. Olha, com todo o respeito ao autor, mas a história da Igreja, em especial no medievo, já viu coisas análogas acontecerem. Já houve Papas que foram forçados a renunciar, expulso pela população romana de Roma outras centenas de histórias parecidas (e mesmo mortos e aprisionados). Não estou querendo aqui justificar qualquer tipo de ação contra o Romano Pontífice, mas dizer que em 2 mil anos de história esse tipo de situação jamais aconteceu é totalmente irreal.

  2. Texto lúcido e consolador, daqueles que fazem bem a uma alma aflita. Não nos tortura escondendo a realidade, mas também não busca soluções fora da realidade.

    De fato, há muitos caminhos a se percorrer antes de pedir a renúncia de um Papa, caso se admita essa possibilidade, entre os quais rezar pelo Papa, para que Deus o ilumine e que ele governe a Igreja com sabedoria. Às vezes, parece mesmo que ele poderia fazer mais pela Igreja, aliás, não só ele, mas seus antecessores também poderiam tê-lo feito, principalmente quando parecem querer calar aqueles que são desagradáveis por excesso de zelo, ao mesmo tempo em que enaltecem aqueles que são desagradáveis por excesso de desprezo.

  3. Meu irmão, que primor de texto. Ajudou a formar a minha opinião. Peço licença para reproduzi-lo em meu minúsculo blog, com a devida referência. Paz de Cristo, forte abraço.

  4. Como ler esse texto faz bem à alma! Obrigado de coração, que Deus lhe console e ilumine nessa missão de escritor.

  5. Parabéns Jorge!!

    Mais uma belo e oportuno texto de sua lavra! Em especial destaco dois trechos:
    `Neste momento de grave crise é preciso ser tradicional, é preciso ser conservador, é preciso ser católico. E a coisa católica, conservadora e tradicional a ser feita certamente não é pedir a renúncia do Soberano Pontífice`.

    Por outro lado, gostaria de fazer uma observação no trecho onde bem escreveste:
    `Não se trata, insista-se, de desprezar as denúncias do ex-núncio. Ao contrário, é para que elas sejam levadas suficientemente a sério que é preciso separar, no seu testemunho, o que é denúncia e o que é opinião, o que é problema apontado e o que é solução apresentada. A rede de homossexuais que existe no clero é a denúncia, clara e inequívoca, que ou é verdadeira ou é falsa; a demissão de todos os de alguma maneira envolvidos no acobertamento desta rede, isso é uma proposta de solução, que não necessariamente é a única solução possível`.

    A minha observação refere-se a rede de homossexuais. Ora, ela é uma denúncia, gravíssima, mas que está longe de ser falsa Jorge, lamentavelmente! E não é somente por causa da carta do Mons. Viganó. Não!! As denúncias e acusações, sérias, e não meros boatos, explodem aqui e acolá, principalmente nos Estados Unidos, mas em alguns outro países também. E, infelizmente, já existe farto material sobre isso, e de gente séria. Não podemos cair nessa de uma possível falsidade da denúncia (embora você não tenha descartado que possam ser verdadeiras também), porque, lamentavelmente, são verdadeiras. E temos, como Igreja, que enfrentar isso de frente, ir a luta, com arma em punho e arrojada valentia!! Todos nós, sacerdotes em primeiro lugar e os leigos logo atrás! Logicamente, que temos que fazer isso com muita oração e penitência, mas omissão, jamais!
    Aliás, omissão é não acharmos que a demissão de todos os sacerdotes envolvidos com esta monstruosidade não seja a solução. É claro que é! Todos precisam ser sumariamente demitidos de seu estado clerical. Concordo que não é a única solução, mas dentro de um elenco de medidas `sanitárias` que a Igreja deve tomar nesta história, a demissão é uma delas e não deve ser descartada, embora não seja realmente a única solução…

  6. “…mas é soberano. E ser soberano significa, justamente, que ninguém lhe pode exigir que responda pelos eventuais erros que cometa.”

    Aqui discordo Jorge. O soberano faz o que quer e ninguém o pode impedir. Mas quando este querer prejudica seus súditos, ele tem o dever de pelo menos explicar seus atos. Ou estamos diante de um tirano, coisa que não combina com o posto deixado por São Pedro. A monarquia referente ao Papa lhe vem da ordem humana, mas um papa ao que me consta deveria ser o “servo dos servos”, não?

    Deus é soberano e por ser Deus, não precisa dar satisfação a ninguém. Até porque é perfeitíssimo e tudo o que faz é bom. Agora um Papa que, com todo respeito que lhe devemos por seu posto na ordem espiritual, é um ser humano. Se não dá explicação aos que o buscam como luz do mundo, para o que veio??? ….

  7. Ygor, o Papa tem diversos deveres, não somente de explicar os seus atos.

    O ponto é que quando um Papa eventualmente falha no cumprimento de algum dos seus deveres os súditos podem no máximo SOLICITAR com humildade e reverência que ele os cumpra. Jamais EXIGIR-LHE nada.

  8. Perfeitamente! Nós não devemos e não podemos exigir tal coisa, somos leigos. Neste ponto sim, concordo. Mas quem o denunciou é um irmão na fé, sucessor dos apóstolos e isso pesa bastante.

    Outro ponto é que o silêncio do Papa para com várias questões como os Dubia e agora esta acusação grave deixa margem para inúmeras interpretações. E como eu digitei acima, um papa deve ser, segundo São Gregório, o Servo dos servos, não um tirano. Se nem satisfação dá a seus irmãos na fé, como poderá perceber e corrigir seus possíveis erros?

  9. Não concordo nada com a ideia monarcizante do Papa e com o apodo de “revolucionário” ao imperativo incontornável de uma renúncia à luz dos factos constantes na Carta do Núncio Viganò.

    Como é possível uma tamanha traição à Fé, cuja dimensão sobrenatural, impediria — repito — impediria o pecado inveterado, a predação de crianças e jovens, e a protecção e encobrimento de tamanhos desmandos?

    Estas pessoas — incluo Bergolio — não têm [não podem ter!] o coração ancorado em Cristo. Tem toda a exterioridade beata e ritual, mas não reconhecem qualquer poder transformador do coração e da Vida ao facto afinal palpável de se Estar em Cristo. Estas pessoas desprezam as Sagradas Escrituras e cerne do Evangelho o qual desnormaliza o viver para si e para os apetites e tendências carnais, porque vivemos de todo o coração para o Altíssimo.

    Em suma, se não merecem a nossa confiança, não podem liderar-nos. Se a Verdade Total não for mais importante que a Hipocrisia das Aparências, mais vale apostatar pois o Inimigo infiltrou as ramagens mais altas do Arbusto-Árvore da Mostarda.

  10. O Papa vai-se pronunciar sobre a queda do poder politico no Rio de Janeiro para as mãos dos Evangélicos ? Se o Vaticano não declarou “Guerra Santa” no Brasil, após a queda do Rio de Janeiro para os Evangélicos….

  11. Jorge, para enfatizar o que muito me incomoda, deixo um link relacionado e “copio e colo” do mesmo apenas a última parte onde mais um bispo da Santa Igreja reclama …

    https://www.ofielcatolico.com.br/2008/09/no-meio-da-tempestade-arcebispo-pede-ao.html

    “1. A Igreja dos Estados Unidos está passando por uma crise profunda, em meio às acusações de diversos bispos e sacerdotes de cumplicidade com os abusos sexuais dos quais é acusado o ex-cardeal Theodore McCarrick, Arcebispo emérito de Washington. No último dia 25 de agosto, o ex-núncio dos Estados Unidos, Dom Carlo Maria Viganò, acusou cardeais, bispos e sacerdotes de encobrir McCarrick. O ex-diplomata do Vaticano também responsabilizou o Papa Francisco de não agir diante das denúncias contra o Arcebispo Emérito de Washington e retirar as sanções que haviam sido impostas por Bento XVI. Diversos bispos dos Estados Unidos, incluindo o Cardeal DiNardo, presidente da USCCB (sigla em inglês para a Conferência dos Bispos Católicos dos Estados Unidos), encorajaram uma investigação profunda sobre o caso McCarrick e as denúncias de Viganò: “Sem oferecer respostas concretas a estas acusações”, disse DiNardo numa clara crítica à decisão de Francisco de não se manifestar, “homens inocentes poderiam ser manchados por falsas acusações e os culpados poderiam ser libertados para repetir os pecados cometidos no passado”.”

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