O sacrifício de Caim

A crise da Igreja é a crise da Liturgia, é a crise do culto a Deus. Porque a Fé enfraquece na medida em que não se cultua, ou se cultua mal, Aquele em quem se crê; e, do mesmo modo, e ao revés, em um ciclo vicioso, o culto empobrece na medida em que esmorece a crença. Se o nosso culto não se dirige a Deus, então ele pode ser feito “de qualquer jeito”; do mesmo modo, se as nossas cerimônias sagradas são feitas “de qualquer jeito”, então é porque, no fundo, elas não se dirigem, de verdade, a Deus. Esse raciocínio pode não ser verbalizado, pode ser até que alguém não tenha consciência, dele, nestes termos formais: mas ele é inelutável e se impõe a todos, instintivamente, como uma lei não escrita e mesmo não pensada.

É por isso que lex orandi lex credendi e é por isso, por exemplo, que Deus se agradou do sacrifício de Abel e aborreceu o de Caim. Abel sacrificou ao Senhor os primogênitos do seu rebanho; Caim ofereceu-Lhe “frutos da terra”, assim, sem adjetivos, sem qualificações, sem nada. Quem lê o início do quarto capítulo do Gênesis fica com a sensação de que foi isso que o hagiógrafo quis ressaltar: um dos irmãos reservou para Deus o melhor que possuía, enquanto o outro pegou para Ele a primeira coisa que encontrou.

E o fratricídio já estava todo anunciado naquele offerret Cain de fructibus terræ munera Domino. Nem era necessário ler o resto da história: no descaso para com Deus já se insinuava o descaso para com o próximo, e a ofensa a Deus já eram os prolegômenos da ofensa ao irmão.

Mas voltemos ao nosso tempo, e às nossas missas mal-celebradas, muitas das quais fariam o próprio Caim corar de vergonha. Não digo que os católicos desleixados com a Liturgia são pessoas perigosas, das quais se deve guardar prudente distância, porque estão sempre na iminência de cometer algum assassínio em massa. Não, a graça do Evangelho já se derramou irreversivelmente sobre o mundo e à blasfêmia não necessariamente se segue o homicídio, como se o Gênesis devesse sempre se repetir literalmente pelos séculos sem fim. Mas o desleixo litúrgico diz muito acerca do que somos e do que cremos, e da credibilidade que emprestamos à mensagem que nos propomos a passar. Ao rezarmos mal, aproximamo-nos mais do sacrifício de Caim do que do sacrifício de Abel, e isso não pode deixar de ter consequências.

A excelência litúrgica é coisa difícil de ser alcançada em meio à mediocridade generalizada em que vivemos; mas cada um pode fazer alguma coisa para conferir ao menos o devido zelo ao serviço do altar. O simples fiel tem por vezes — por muitas vezes, eu diria até mesmo quase sempre — pouca influência na celebração dos Santos Mistérios; mas mesmo ele pode e deve cumprir o seu papel. Que geralmente vai ser, dentro da missa, o não se deixar contaminar e nem desanimar.

E esse combate solitário e, a todas as aparências, improdutivo, não passará despercebido aos olhos de Deus. Ele fará a Seu tempo os céus orvalharem e o campo florescer. O último fiel ajoelhado diante do Santíssimo Sacramento presta um testemunho cujo valor ultrapassa a compreensão humana — afirma a Fé de uma maneira que mil abusos litúrgicos não são capazes de silenciar. Em meio ao deserto, qualquer filete de água é um oásis vivificante. E, a despeito do fratricídio, o que o Gênesis nos ensina é que, ao final, o sacrifício de Abel suplantou o de Caim.

Publicado por

Jorge Ferraz (admin)

Católico Apostólico Romano, por graça de Deus e clemência da Virgem Santíssima; pecador miserável, a despeito dos muitos favores recebidos do Alto; filho de Deus e da Santa Madre Igreja, com desejo sincero de consumir a vida para a maior glória de Deus.

4 comentários em “O sacrifício de Caim”

  1. Bem verdade,porque a liturgia expressa a identidade da Igreja.No entanto,tão prejudicial quanto isso, também pode se citar as homilias pobres de conteúdo e de estudo e preparação.Os celebrantes não estão fazendo jus aos títulos de teólogos e filósofos;os textos sagrados não são explicados devidamente,deixando muito a desejar.

  2. Conversei este assunto ontem (15/09/19) com minha esposa, logo após missa das 9.
    A capacidade dos leigos de comprometer a liturgia e consequentemente dispersão da assembléia é imensurável.
    A bateria do grupo de música ontem, simplesmente trouxe euforia e completa desatenção do sacrifício de Jesus, ou seja, chama-se a isto no mínimo SACRILÉGIO.
    Enfim, início essa discussão para que a nossa amada igreja seja edificada e estejamos atentos aos sinais, pois os dias são difíceis.

  3. Parabéns Jorge pelo belo artigo!
    Quando acho que tenho que criticá-lo, eu o faço, com no no artigo anterior, embora apenas dando o meu “pobre” ponto de vista, sem essa de “dono da verdade…”
    Realmente, em poucas palavras, você sintetizou de forma muito feliz a crise atual em nossa Igreja, que é nada mais e nada menos que a crise do “modernismo”, que tem como seu “grande fruto podre” o enfraquecimento da liturgia e do culto.
    Valeu!!

  4. A crise atual da Igreja é a crise de fé do sacerdócio e esta crise de fé do sacerdócio se dá porque a Igreja está dominada por uma heresia brilhantemente condenada pelo papa São Pio X na Pascendi: o MODERNISMO.

    O modernismo gera a crise de fé do sacerdócio porque como muito bem colocou São Pio X na Pascendi, tem sua fundamentação filosófica no agnosticismo e ataca a própria concepção de fé. O modernismo, portanto, vai com seu machado diretamente na raiz da árvore.

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