Eu pus um post scriptum no texto que escrevi ontem sobre a lei anti-homossexualismo da Uganda, mas a honestidade intelectual manda que se fale com um pouco mais de vagar sobre o assunto. Ao comentar o conteúdo do projeto de lei ugandense, baseei-me no que fora escrito pelo sr. Luis Nagao em maio de 2011. Lá, o articulista dizia, verbis, o seguinte:
[O] projeto estabelece diferentes níveis de punição. Começam com prisão por determinado tempo, passando pela pena perpétua (no caso de sexo com menores de 18 anos) e avançam até morte (em casos de relações com menores de 14 anos, transmissão de AIDS, incesto ou “ofensas em série”[)].
Considerei que “ofensas em série” eram estupros em série por conta do contexto e por uma questão de proporcionalidade para com os demais crimes mencionados no mesmo parágrafo (especificamente, “relações com menores de 14 anos”, “transmissão de AIDS” e “incesto”). Mas parece que a minha interpretação não era exata.
Alguém me mostrou a íntegra do projeto de lei de 2009 (atenção, este não é o projeto atual!), e lá existe uma parte preliminar que fala sobre a “interpretação” da lei e onde são feitas diversas definições de termos. Em particular, “serial offender” significa «uma pessoa que já tenha condenações anteriores pelo crime de homossexualidade ou crimes correlatos». Como o “crime de homossexualidade” é definido na mesma lei e abrange até mesmo coisas genéricas como «ele ou ela toca outra pessoa com a intenção de cometer ato homossexual» [Parte II, 2., (1), (c)], a interpretação mais imediata da lei diz que um homossexual que for condenado duas vezes por tocar libidinosamente o seu parceiro (em princípio, mesmo que seja em privado, mesmo que seja consensual e mesmo que o parceiro seja maior de idade) pode ser classificado como “serial offender” e receber punições mais severas – o que me parece uma clara barbaridade.
Como eu disse ontem, considero este tipo de punição injusta nos dias de hoje; citando-me, «a situação atual do mundo é de tal modo que não legitima que o homossexualismo em si seja objeto do Código Penal». Concedo inclusive que uma proposta dessas justifique a redação da petição de Avaaz que eu critiquei ontem, e certamente justifica que as pessoas protestem contra semelhante projeto de lei. Creio até ser bastante evidente que é muito difícil encontrar alguém que defenda com razoabilidade tal medida extremada.
Mesmo assim, há certas coisas que não encaixam. Além da evidente desproporção entre o homem gay que toca por duas vezes com lascívia o seu “namorado” e o aidético que estupra o próprio filho, há outra incoerência de ordem prática: o “crime de homossexualidade”, neste projeto de 2009, é punido com prisão perpétua! Ora, a gente aumenta a pena em crimes reincidentes com base no princípio de que a pena original foi pouca para emendar o criminoso. Alguém se lembrar de tipificar a reincidência de um crime que se pune com prisão perpétua (!) me parece de um legalismo tão exagerado que se me afigura completamente incompreensível. Chego honestamente a duvidar da exatidão do texto deste projeto de lei que encontro somente de segunda mão, transcrito em inglês num site chamado “Box Turtle Bulletin”…
Infelizmente, eu não encontrei nenhuma fonte oficial do Governo Ugandense onde o inteiro teor da proposta pudesse ser conhecido. A gente só encontra coisas de segunda mão. A notícia recente que vi em G1 (reproduzindo Reuters) diz muito laconicamente que a pena de morte «foi retirada diante da forte reação internacional», mas que «a versão que tramita atualmente no Parlamento prevê duras penas de prisão» (perpétua inclusive) para homossexuais – sem entrar em mais detalhes e sem citar fontes primárias. O verbete na Wikipedia anglófona também não traz a letra do projeto, e só linka para dezenas de notícias e artigos. Difícil dizer exatamente o que está acontecendo na Uganda neste momento.
Só o que dá para saber é que está para ser votada uma lei que pune o homossexualismo, cujo (suposto) texto de 2009 era – na minha opinião e na de muita gente – injustamente duro. O resto é especulação, à qual o bom senso recomenda parcimônia. Protestar especificamente contra a pena de morte para o homossexualismo em si é legítimo; no entanto, induzir outrem a protestar apaixonadamente contra genéricas “leis anti-gay” (quando o termo é elástico o suficiente para englobar tudo o que contraria a agenda homossexual) é se aproveitar do sofrimento alheio para passar fraudulentamente gato por lebre.