Manhã de domingo. E lá estava eu, assistindo a uma determinada aula de Crisma. O tema era “pecado”. Até então, a palestra estava demasiadamente fluida, desencarnada, com um monte de abstrações acadêmicas pairando muito acima do mundo dos fatos onde se desenrola o drama da vida humana, totalmente anódina para qualquer pessoa que a pretendesse empregar com o objetivo concreto de, fugindo do pecado, levar uma vida mais santa. Do que era mesmo que precisávamos fugir? No meio daqueles circunlóquios, era muito difícil de saber.
Lá pelas tantas, o palestrante fala sobre o Juízo Final. Sentencia: no dia do Juízo, diz, Deus não nos vai julgar fazendo uma conta de mercearia, colocando os atos bons de um lado da balança e os maus do outro, para ver qual o que pesa mais. O que vai determinar a nossa sorte eterna vai ser a «opção fundamental» que tenhamos feito em nossa vida. Lá no fundo da mente, acende-se-me uma luzinha vermelha: eu já ouvira isso antes. Acompanho o raciocínio do professor com atenção. Ele fala, fala, fala: ao fim, pode-se interpretar qualquer coisa. Não fico satisfeito. Levanto a mão:
– Professor, então resumindo: existe o estado de Graça, a Graça Santificante, que é a vida de Deus em nós, que obtemos por meio do Batismo, perdemos com o pecado mortal e recuperamos em seguida por meio do Sacramento da Confissão. Se morremos em estado de Graça vamos para o Céu e, se não, vamos para o Inferno. Não é isso?
Ele parece se ofender com a pergunta; diz que não vai responder, porque na faculdade onde ensina é necessário um semestre inteiro para chegar a uma resposta satisfatória sobre isso. Diz que não vai cair nessa pergunta “casca-de-banana” (!) para que depois precise se contradizer. Dou de ombros. Até o final da aula, não pergunto mais nada. Não tenho sequer fôlego para pontuar que “pecado mortal” é aquele que se comete consciente e deliberadamente em matéria grave, e que esta é grosso modo aquilo que está consignado nos Dez Mandamentos. Depois faço a minha parte e explico isso para os meninos. Por enquanto, o palestrante não parece muito aberto ao diálogo.
Mais tarde, em casa, vou procurar onde foi que eu já ouvira essa história de «opção fundamental». Encontro: foi na Veritatis Splendor do Beato João Paulo II. Números 65 e seguintes. Remeto os meus leitores à leitura da íntegra, mas cito aqui somente a seguinte importante síntese:
«[H]á-de evitar-se reduzir o pecado mortal a um acto de “opção fundamental” — como hoje em dia se costuma dizer — contra Deus», entendendo com isso quer um desprezo explícito e formal de Deus e do próximo, quer uma recusa implícita e não reflexa do amor. «Dá-se, efectivamente, o pecado mortal também quando o homem, sabendo e querendo, por qualquer motivo escolhe alguma coisa gravemente desordenada. Com efeito, numa escolha assim já está incluído um desprezo do preceito divino, uma rejeição do amor de Deus para com a humanidade e para com toda a criação: o homem afasta-se de Deus e perde a caridade. A orientação fundamental pode, pois, ser radicalmente modificada por actos particulares. (…)»
Em resumo, se por “opção fundamental” nós entendemos uma certa disposição interior do indivíduo humano que precede aos atos concretos e não necessariamente se modifica à força deles (p.ex., se dizemos que fulano fundamentalmente “ama a Deus” ainda que eventualmente traia a sua esposa, desde que com estes seus adultérios não queira rejeitar explicitamente a Deus), então isso não se pode conciliar com a moral católica. Para esta, o pecado mortal pode ser obtido até por um único ato consciente e deliberado cometido contra a lei de Deus em matéria grave, e este único ato é suficiente para arrastar à danação eterna quem dele não se arrependa.
E vice-versa. Ilustremos quanto foi dito com um casuísmo, tão repulsivo ao nosso palestrante matutino mas ao mesmo tempo tão útil para sedimentar conceitos importantes. Pensemos em São Dimas, o Bom Ladrão. Levou uma vida inteira de crimes e injustiças. No último instante, dependurado na cruz, olha para Nosso Senhor e Lhe pede misericórdia. Ganha o Céu.
Ora, qual fora a sua “opção fundamental” até ser levantado no patíbulo da Cruz? O pecado e a iniqüidade. No instante em que se volta para o Filho de Deus, qual a “opção fundamental” dele? Cristo Jesus. De onde se vê como um único ato é capaz de mudar radicalmente o destino humano. Um homem que optara por ser um criminoso a vida inteira, no instante derradeiro se arrepende e ganha o Paraíso.
E se o homem tem a capacidade de alterar assim tão formidavelmente a sua «opção fundamental» através de um único ato para o bem, também pode fazê-lo para o mal. Assim como há um Bom Ladrão que, sendo ladrão a vida inteira, no instante derradeiro amou a Deus e se salvou, também pode haver um “Mau Cristão” que, sendo verdadeiramente homem justo a vida inteira, ao último suspiro rejeite a Deus e seja condenado. Que ninguém, portanto, se fie presunçosamente na sua opção por Deus do passado e nem se desespere da vida de crimes que porventura tenha levado até então: a cada instante o homem pode decidir-se pelo Céu ou pelo Inferno. Eis os assombrosos prodígios de que é capaz a liberdade humana!
A única «opção fundamental» que nos conta é aquela que fazemos neste exato instante. É aquela que se confunde com a decisão por amar a Deus ou por desprezá-Lo que tomamos em cada ato concreto de nossas vidas. É, em suma, exatamente o que diz a Igreja quando nos exorta a permanecermos na Graça de Deus, evitando o pecado mortal (porque com um único pecado mortal nós perdemos o estado de Graça e nos tornamos merecedores do Inferno) e recorrendo aos Sacramentos (mormente o da Confissão) para que a Morte nos encontre na amizade com Deus. É isso o que se precisa ensinar nas nossas catequeses. Elucubrações teológicas refinadas podem até ser úteis em certas circunstâncias, mas somente se forem feitas sobre uma base catequética extremamente sólida. Sem esta, elas se tornam daninhas e perniciosas. Sem o bê-a-bá do Catecismo, podem acabar fazendo um terrível mal às almas.