Uma reportagem que eu li ontem n’O Globo (“Criação de igreja é negociada até em anúncio de classificados”) me levou à seguinte divagação.
Não é incomum encontrarmos casos de pastores protestantes acusados de estelionato – uma rápida busca ao Google me revelou um caso em Araçatuba, outro em São Bernardo e um terceiro em Sergipe, e isso só nos primeiros resultados. Ora, estelionato é o famoso 171 do Código Penal, cuja definição se inicia da seguinte maneira: «Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro». O itálico é meu.
A pergunta óbvia é: com que autoridade os poderes civis podem sentenciar que uma determinada doutrina religiosa é um erro? A resposta é igualmente óbvia: com nenhuma. É por isso que as supracitadas acusações foram feitas não com base nas barbaridades apregoadas pelos pastores, mas sim se referindo a certos “deslizes” que eles cometeram. O primeiro prometeu devolver uma doação e não o fez, o segundo passou a vida fazendo maracutaias com empréstimos financeiros e, o terceiro, vendeu casas populares que nunca foram entregues.
Estes casos independem da religião de seus autores: tanto faz aqui se são pastores evangélicos, umbandistas ou neo-ateus. No entanto, o estigma carregado especificamente pelos pastores evangélicos não é oriundo desse tipo de “criminalidade comum” pela qual alguns deles são condenados. Na percepção popular, o engodo está perfeitamente caracterizado a partir do instante em que o “pastor” associa qualquer tipo de benefício espiritual a doações realizadas pelos fiéis. Ora, isso não é um crime civil e sim um eclesiástico: isso, mesmo prescindindo de qualquer avaliação sobre se o sujeito é ou não capaz de fazer o que promete, chama-se em boa linguagem teológica de simonia.
O irônico da história é que o Estado inimigo da Igreja encontra-se completamente alijado do embasamento religioso que lhe possibilitaria identificar (e conseqüentemente punir) o crime da simonia. No entanto, a falcatrua religiosa não deixa de existir pelo fato das autoridades públicas deliberadamente voltarem as costas para ela e – mais importante! – os cidadãos comuns não dispõem de suficiente ideologia para deixarem de perceber a simonia como uma coisa escancaradamente errada, à qual não se pode dar livre curso na sociedade.
Qualquer pessoa em sã consciência percebe naturalmente que esta prática é abusiva, socialmente deletéria e deve ser coibida. No entanto, para os casos em que não é possível encontrar um crime comum para enquadrar o herege (punindo assim uma coisa por outra), como este impasse é resolvido?
Nas esferas mais baixas, o estigma de «crente ladrão» ou «pastor safado» é um mecanismo sociológico de defesa empregado para uma tentativa – incipiente e imperfeita, sem dúvidas – de restabelecimento da ordem social, ameaçada por uma situação anômala e escandalosa cuja proliferação é impiedosamente favorecida pela ausência de mecanismos institucionais de regulação. Este preconceito sozinho, no entanto, se não conseguir oferecer resistência à propagação da injustiça religiosa, termina por pressionar as esferas mais altas a tomarem alguma providência.
Nas esferas mais altas, a “solução” encontrada é dupla: ou se dá livre curso a toda sorte de mercenários da fé (e isso fortalece o preconceito acima referido), ou – e este é o ponto mais perigoso aqui – o Estado se arroga o direito de arbitrar questões de fé e se imiscui no relacionamento entre fiel e líder religioso, extrapolando a sua competência e sentenciando uma «coação moral e psicológica» exercida sobre a «vulnerabilidade emocional» do pobre fiel lesado – ou coisa parecida. O acerto de fato desta condenação concreta não nos pode fazer olvidar a questão de princípio, que é sobre a inexistência de jurisdição dos poderes civis em matéria religiosa. Banida a Igreja da vida pública, termina-se por forçar o Estado a absorver cercas competências que ele, em absoluto, não pode exercer.
Casos como o da criação de igreja anunciada em classificados de jornais provocam uma justa indignação e, por serem extremamente caricatos, servem para ilustrar com eloqüência aquela máxima medieval que justificava a imposição de penas civis para questões religiosas. Sobre isso dizia Santo Tomás de Aquino:
É muito mais grave corromper a fé, que é a vida da alma, do que falsificar a moeda, que é o meio de prover à vida temporal. Se, pois, os falsificadores de moedas e outros malfeitores são, a bom direito, condenados à morte pelos príncipes seculares, com muito mais razão os hereges, desde que sejam comprovados tais, podem não somente ser excomungados, mas também em toda justiça ser condenados à morte.
Se a pena aplicada é de prisão ou de morte, trata-se de questão secundária e acidental: trata-se do ordenamento jurídico de cada época. O que é interessante aqui é verificar o ressurgimento (ou será que ele nunca desapareceu?) deste princípio tão criticado pelos modernos. Ao que parece, na cabeça de alguns, se é a Igreja que aponta os desvios religiosos para os poderes públicos, então isso é uma coisa absurda e inadmissível; mas se são os próprios poderes públicos a, por conta própria, identificarem, julgarem e punirem crimes de Fé, então está tudo muito bem e a isso se chama avanço e progresso. O perigo escondido nesta contradição não pode ser ignorado. A mim, esta prerrogativa de César não me parece nada sadia.
Não é correto punir alguém mediante acusação de outra falta que não aquela que se deseja punir. É injusto. E outra: aquele “mecanismo sociológico” é LIXO!
Alexandre, arranjar uma justificativa que caiba na lei para punir uma conduta que nela não se enquadra é a coisa mais comum e corriqueira do mundo. Al Capone era gângster e a justiça americana só o conseguiu “pegar” por sonegação de impostos.
Injusto é dar livre curso à conduta reprovável por não se conseguir enquadrá-la.
Abraços,
Jorge
Jorge, se o gângster sonegou impostos, ótimo ter sido punido por isso, por sonegar impostos. Mas é erradíssimo aumentar a pena do sonegador por ele ser “gângster”. Invencionismo circunstancial humano.
Não é justo deixar o sonegador impune. Claro. Mas ele deve ser julgado e penalizado exatamente como sonegador. Se ele tiver outros crimes, que tudo some. Obviamente.
A lei dos homens não alcança e nunca alcançará a lei de Deus. Que os homens busquem a coerência e encarem a limitação de suas leis. Você está defendendo arbitrariedade. A diferença disso para fazer justiça com as próprias é que o justiceiro pelo menos enfrenta [a reprovação de] o mundo sozinho, sem se esconder debaixo das saias de uma Justiça hipócrita, incoerente, que ata e desata ao gosto dos frequeses.
* para fazer justiça com as próprias mãos
* ao gosto dos fregueses
Que fique claro: não sou a favor do justiceiro. Apenas da coerência.
* A diferença
disso para[entre aquilo e] fazer justiça com as própriasAlexandre,
A Justiça não consiste numa aplicação mecânica das leis. Se fosse assim, bastava um computador. Fazer justiça é entender o caso concreto, discernir nele o que é justo e, só então, buscar na legislação vigente os meios para realizar a Justiça.
A lei positiva é e tem que ser instrumento. Não se pode erigi-la em fonte da moralidade e da justiça.
A diferença entre um juiz e um “justiceiro” é que o primeiro é a instância social com potestade de aplicar penas. Se o particular saísse lendo artigos do Código Penal antes de jogar os criminosos numa jaula que ele tem no quintal, seria “justiceiro” da mesmíssima maneira.
Abraços,
Jorge
Sim.
Por outro lado, os juízes não devem “reinventar” — ad hoc — o Código Penal para satisfazer ânsias de justiça. Estarão ele e seus ansiosos sendo “justiceiros” também.
Pior ainda quando o penalizado o é através de falsa acusação.
Os fins não justificam os meios.
Alexandre, não sei do que você está falando.
O CP não está sendo “reinventado”, e sim aplicado. Al Capone sonegava impostos. A acusação tampouco é falsa, é verdadeira.
O que você está dizendo é que, na impossibilidade de se condenar alguém por uma conduta socialmente deletéria, o juiz deva “deixar pra lá” por conta da limitação das leis humanas, o que é um absurdo completo. As leis positivas existem para exercer a Justiça, e não para “limitá-la”!
Jorge, se a pena máxima por sonegação é X, e um réu só pode ser acusado de sonegação, então a pena máxima possível para esse réu é X. Ponto final.
Lembremos que nem toda conduta socialmente deletéria é coisa para tribunal.
Não entendi. Em nenhum momento eu falei contra o trabalho legislativo.
A questão é que entre você sonegando impostos, o Eike Batista sonegando impostos e o Al Capone sonegando impostos, o que se espera da Justiça é que você não seja punido, o Eike seja brandamente e o Capone pegue a pena máxima. Se a gente conseguir enquadrar o gangster em mais meia dúzia de miudezas (que em pessoas normais a gente nem se preocuparia em levantar) para aumentar-lhe a pena, melhor ainda, mais justo ainda.
É assim que o mundo funciona, e é assim que ele deve funcionar: com as leis servindo para os juízes fazerem justiça, e não para lhes amarrar as mãos.
Eu não sou contra. Desde que ele seja culpado de tudo e as penas sejam legalmente “as cabíveis”.
Ah… Jorge… se tem uma coisa que me irrita na “justiça dos homens” é saber que aquele moralista que fala na televisão — ou mesmo o meu pai! — seria o primeiro a correr atrás de advogados “competentes” para livrar o filhinho do devido xadrez.
O xadrez que é devido a um pequeno sonegador não é o mesmo que é devido a Al Capone, é esta a questão =)