Hoje, no site do Vaticano, foram tornados públicos dois documentos: uma carta que o Papa Francisco enviara ao prefeito da Congregação para o Culto Divino e Disciplina dos Sacramentos no final de dezembro de 2014, onde solicitava uma alteração nas rubricas do Missal Romano referentes à Missa da Quinta-Feira Santa para que estas autorizassem o uso de mulheres na cerimônia do Lava-Pés (e não apenas fiéis do sexo masculino — viri selecti — como se dispunha até então); e o Decretum daquela Congregação determinando a mudança do Rito, datado de seis de janeiro p.p. (em italiano aqui). Uma tradução não-oficial da carta pontifícia pode ser encontrada aqui, e é de onde tiro o seguinte excerto:
[D]esde há já algum tempo que estou a reflectir sobre o Rito do “lava pés”, inserido na Liturgia da Missa in Coena Domini, com a finalidade de aperfeiçoar o modo com que se realiza, para que exprima plenamente o significado do gesto realizado por Jesus no Cenáculo, a sua entrega “até ao fim” para a salvação do mundo, a sua caridade sem fronteiras.
Antevendo as críticas, talvez não seja despiciendo lembrar aquela declaração solene do Concílio de Trento segundo a qual «a Igreja sempre teve o poder de, ao administrar os sacramentos, determinar e mudar, salva [sempre] a sua substância, o que julgar conveniente à utilidade dos que os recebem e à veneração dos mesmos sacramentos, conforme a variedade dos tempos e lugares» (Trento, Sessão XXI, Cap. 2 (931)). Portanto, não há espaço para os já tradicionais rasgar de vestes de um lado e lançar confetes do outro, como se o Papa estivesse dilapidando o patrimônio divino do Cristianismo ou abrindo enfim as portas da Igreja às reivindicações do mundo moderno. Desde que o mundo é mundo que a Igreja pode «mudar (…) o que julgar conveniente» em Seus ritos litúrgicos. O Papa está, portanto, no mais pacífico exercício do seu munus de governar a Igreja. O resto é tentativa desprezível de capitalizar as atitudes papais em benefício da própria agenda político-ideológica. Não merece atenção.
São outras as coisas que aqui merecem uma consideração mais atenta. Primeiro, uma consideração de ordem, digamos, sociológica: da forma como as normas litúrgicas são recebidas no seio das Igrejas Particulares. No interior do caos litúrgico em que nós infelizmente vivemos, a presença de mulheres na celebração de Lava-Pés não se pode chamar de novidade inaudita. Em parte devido à terrível ignorância dos católicos — conticuit populus meus eo quod non habuerit scientiam… –, em parte pelo aberto descontentamento de alguns a respeito da posição da Igreja sobre a diferença entre os sexos, o fato é que a utilização de mulheres entre os viri selecti exigidos pelas rubricas já se havia constituído em um verdadeiro costume contra legem.
A idéia de legalizar o abuso para o coibir não é indene a críticas, principalmente porque ela evoca — mutatis mutandis — certas práticas de política criminal pouco honestas que intentam reduzir os índices de criminalidade por meio da descriminalização dos crimes. No entanto, dela se pode ao menos dizer que é mais honesta e coerente do que a situação anterior, onde o Papa vinha a público lavar os pés de mulheres quando as rubricas expressamente o proibiam. Sendo o Papa a autoridade competente em matéria litúrgica para determinar quais os pés que se podem lavar na Missa In Coena Domini, não fazia o menor sentido que ele, podendo mudar a lei, insistisse na sua violação. Por mais que se trate de um aspecto que alguém pode dizer de somenos importância, a fidelidade é de ser buscada mesmo nas pequenas coisas. Com o Decretum do início deste mês, o Papa Francisco deixa de praticar abusos litúrgicos neste quesito — o que não deixa de provocar um certo alívio.
Uma segunda coisa importante a ser considerada é o motivo pelo qual as rubricas previam que apenas homens fossem escolhidos para o Lava-Pés. A argumentação tradicional ia na linha de que aquela cerimônia estava inserida no contexto da Última Ceia, para a qual Nosso Senhor não convocou senão os Apóstolos — homens todos eles. É o argumento, aliás, usado para vedar às mulheres o acesso ao sacerdócio ministerial: foi Cristo quem expressamente as excluiu deste ministério específico, não obstante as tenha enviado para fazer uma centena de outras coisas importantes (como, por exemplo, serem testemunhas privilegiadas da Ressurreição). À parte quaisquer discordâncias interpretativas que possa haver aqui, o fato histórico inconteste é que, na primeira Quinta-Feira Santa, apenas homens tiveram os seus pés lavados por Nosso Senhor.
Pode-se lamentar o fato de que esta mudança litúrgica, além de negligenciar a exatidão histórica dos fatos que na Semana Santa se celebram, possa enfraquecer o sentido do sacerdócio ministerial. Afinal (já ouço os inimigos da Igreja bradarem…), se até mesmo ao Lava-Pés as mulheres se fazem presentes, por que excluí-las da Ceia que vem logo em seguida? Não seria o caso de se repensar a Ordinatio Sacerdotalis?
Em resposta a este sofisma vem a terceira coisa importante desta mudança litúrgica. Com ela, o Papa Francisco introduziu oficialmente uma clivagem na celebração da Última Ceia, explicitando uma distinção teológica que, conquanto fosse evidente, não tinha ainda — ao menos não neste contexto — expressão litúrgica que lhe correspondesse.
Na Quinta-Feira Santa há duas cenas distintas e muito bem definidas. Em uma delas, Nosso Senhor lava os pés aos Apóstolos; na outra, oferece o Sacrifício do Seu Corpo e Sangue sob as espécies do Pão e do Vinho. Na primeira delas proclama o mandamento do serviço; na segunda, institui o sacerdócio ministerial. Parece bastante óbvio que os destinatários de ambas as mensagens não são os mesmos: embora apenas os sacerdotes ordenados tenham o poder de oferecer o Santo Sacrifício da Missa, é a todos os cristãos que se estende o mandato do serviço expresso no «também vós deveis lavar-vos os pés uns aos outros». Na mesma Noite, em seus dois momentos distintos, os Apóstolos estão representando parcelas diferentes do povo de Deus. À Mesa, enquanto convivas que recebem o Pão e o Vinho das mãos do Divino Redentor, fazem as vezes dos sacerdotes ordenados; mas enquanto servidos por Cristo que, toalha à cintura, lava-lhes os pés, representam a totalidade dos cristãos. Apenas os sacerdotes têm o poder e o dever de celebrar a Missa; mas o mandatum da Caridade, têm-no todos os católicos — homens e mulheres, velhos e jovens, doentes e sãos, leigos, clérigos e religiosos — e não apenas os sacerdotes ordenados. Sob essa ótica, a separação dos dois momentos antes distingue que confunde os papéis.
Há sem dúvidas a possibilidade de que homens maliciosos empreguem a mudança para tentar rediscutir sentenças definitivas do Magistério da Igreja; cumpre, portanto, desautorizá-los desde já. O Papa pediu que aos fiéis que fossem escolhidos para o Lava-Pés «seja dada uma explicação adequada do significado do próprio rito»; o Decretum que o regulamenta manda também, explicitamente, aos pastores «istruire adeguatamente sia i fedeli prescelti sia gli altri» — instruir adequadamente tanto os fiéis escolhidos quanto os outros. Sejam, portanto, todos devidamente informados. O mandatum caritatis, expresso no Lava-Pés, é coisa distinta do potestas sacerdotalis conferido ao partir do Pão. Tendo o Romano Pontífice distinguido claramente as duas coisas, não seja dada aos lobos a oportunidade de confundir o rebanho do Senhor.
Mais um lamentável texto!
No tempo de Cristo a bebida por excelência era o vinho e portanto seria “o sangue” de nossas veias. Nos dias atuais, eu diria que a cerveja é mais representativa, se “o aggionamento” é indispensável, poderiamos apenas evitar marcas muito ruinzinhas, como já fazem os padres com os vinhos.
Wilson,
Na verdade o aggiornamento não é indispensável, senão legítimo; ainda, o poder da Igreja de modificar a Liturgia encontra barreiras intransponíveis na «substância» dos Sacramentos, como determina o Concílio de Trento — categoria em que se inclui a matéria dos Sacramentos que Cristo instituiu in specie, como é o caso do Vinho da Santa Missa.
Quantas vezes vemos isso acontecer? É dado um passo “aceitável” para se chegar no “inaceitável”. A autorização do vernáculo baniu o latim, a aceitação de outros instrumentos musicais baniu o canto gregoriano…definitivamente não gosto do pontificado de Francisco. Oremos!
Na verdade, gostaria de retificar o primeiro comentário (se possível deveria ser até apagado). O texto é bem escrito e tem um argumento interessante. Lamentável mesmo é a mudança que o Papa fez e a defesa irracional do absolutismo, que é o erro, o abuso da monarquia.
Que Deus me perdoe ,mas considero esse papa um desastre!
É uma discussão bastante pertinente e polêmica Jorge. Não posso dizer que gostei da alteração nem do certo – ouso dizer – desapego do Papa Francisco às formas tradicionais.
Contudo, cabe enxergar certo paralelo com o que ocorreu com o Cardeal Levebvre quando da edição do Missal de 1970, revisando enfim a Missa Nova conforme solicitado. Levebvre não aceitou a alteração e Ratzinger lhe escreveu:
“Com o consentimento do Santo Padre, eu posso lhe dizer ainda uma vez que toda crítica dos livros litúrgicos NÃO ESTÁ A PRIORI EXCLUÍDA, QUE MESMO A EXPRESSÃO DO DESEJO DE UMA NOVA REVISÃO É POSSÍVEL, da maneira como o movimento litúrgico anterior ao concílio pôde desejar e preparar a reforma. MAS ISSO NA CONDIÇÃO DE QUE A CRÍTICA NÃO IMPEÇA E NEM DESTRUA A OBEDIÊNCIA, E QUE NÃO PONHA EM DISCUSSÃO A LEGITIMIDADE DA LITURGIA DA IGREJA.”
Espero que nosso Santo Padre não esteja se abrindo demais à modernidade, mas aguardo obedientemente – e não necessariamente omisso – suas determinações. Que permaneçamos em oração…
Nada a objetar.
Umas mocinhas a mais ou menos no presbitério não farão diferença numa igreja que foi emasculada décadas atrás.
“”Na Quinta-Feira Santa há duas cenas distintas e muito bem definidas. Em uma delas, Nosso Senhor lava os pés aos Apóstolos; na outra, oferece o Sacrifício do Seu Corpo e Sangue sob as espécies do Pão e do Vinho. “”
Cristo levantou-se da mesa e lavou os pés das mesmas pessoas que participavam da ceia, esta “clivagem” de muita má fé jamais poderemos colocar na intenção de Cristo, esta é a mesma e única cena em uma ceia com Deus e seus escolhidos.
Todo o texto e as justificativas propostas servem apenas para tornar palatável o que seria escabroso.
Não que mulheres não possam a vir a serem sacerdotisas, apenas que este desejo não nasce na igreja mas é uma luta pelos movimentos que consideram a igreja retrógrada, rígida e fora do tempo, e falam isto como se fosse um defeito.
Se estava havendo erros na prática de uma regra, isto não depõe contra a igreja toda, mesmo que devendo ser evitado podemos citar Garrigou-Lagrange: A Igreja é intolerante nos princípios porque crê; mas é tolerante na prática, porque ama.
Parabéns,Jorge,pela abordagem corajosa e equilibrada do assunto em questão.Na verdade não há nada novo,mas apenas um olhar detido e atento a uma realidade que possibilita a percepção de um detalhe que para uma observação aparente e comum passa facilmente despercebido.Entretanto,é bom frisar que a decisão do Sumo Pontífice não é,de forma nenhuma, autoritária e arbitrária,pelo contrário tem um respaldo doutrinário e teológico como você, resumidamente, bem ventilou.
A autêntica vida cristã não é estanque,mas dinâmica,pois aberta a um contínuo aprofundamento e ampliação da compreensão da ação da vida divina que incessantemente age no Corpo Místico de Cristo.
Que Deus, Nosso Senhor, lhe recompense com graças e bênçãos centuplicadas.Avante!
Isso mesmo, José Juarez. Este blog está cada vez melhor.
A mudança proposta por Francisco é atualização há muito necessária e visa aproximar a igreja da realidade vivida pelo Povo de Deus, que, numa era de conquistas democráticas, não mais compreende rituais hierarquizados.
O artigo do Jorge está muito bem escrito e procura mostrar que as aparentes inovações de Francisco na verdade resgatam a verdadeira igreja apostólica, aberta a todos e fundada na mensagem libertadora dos evangelhos.
Até a vitória!
“numa era de conquistas democráticas, não mais compreende rituais hierarquizados” (jb)
“decisão do Sumo Pontífice não é,de forma nenhuma, autoritária”(José Juarez
)
Não é interessante que defesas da atitude papal, sepultem a doutrina católica?
Nunca mais um papa com autoridade, jamais uma igreja com hierarquia.
A decisão do Bergóglio quanto a cerimônia do Lavas-Pés, em si, é correta; O próprio texto chama a atenção para o fato da decisão ser uma prerrogativa Papal. O problema é, junto com outras decisões do Bergóglio, o contexto em que o seu pontificado está sendo exercido. Enfim, a dúvida é com que intenção…? Para onde nos levará? Quanto a parte mística da Igreja Católica Apostólica Romana sabemos que leva à Salvação! Mas, e o lado humano: a Santa Sé de hoje, para onde quer nos levar? Que seja a vontade de Cristo!
Luiz Alberto: Não correta, mas legítima.
Wilson: A ironia é a forma suprema do humor. É a melhor reação diante da fase “aggiornada”, digamos assim, do atual Jorge Ferraz a qual, rezemos e esperemos, deve passar logo.
Caro JB, bom. Sinto pela minha lerdeza.
Esse texto mostra o que significam essa mudança:
http://pelafecatolica.blogspot.com.br/2016/01/quebra-tradicao-lava-pes.html
Caro editor, qual é o seu sofista predileto? Você não deixa a desejar aos grandes da História, viu? Numa dessas, o antipapa Bergoglio de convida para fazer parte de seu staff de milongueiros. Qual é a sua ambição, hein, rapaz? Ser o mais famoso CLEANER por terras tupiniquins?
Estou ansioso para ver colocada em prática toda a sua habilidade sofística, quando o antipapa começar, neste ano e mais intensamente no ano que vem, seu périplo pelos círculos heréticos, para comemorar, e quem sabe louvar, os 500 anos da reforma protestante.
Ah, Cleaner, como será difícil para você se contorcer todo para limpar a barra do antipapa! Quando será que você vai ter a humildade em aceitar que o verdadeiro papa é Bento XVI – que sofreu um golpe sórdido -, e esse pobre herege chamado Jorge Bergoglio é apenas um antipapa vulgar?
Caro Leonardo, minha ambição é somente não ser repreendido um dia, diante do Justo Juiz, por ter empregado mal os dons que Ele me concedeu. O resto pra mim é lucro.
Sobre a tese de que Bento XVI tenha sofrido «um golpe sórdido», eu já me manifestei aqui:
https://www.deuslovult.org//2015/02/10/e-se-a-renuncia-de-bento-xvi-for-invalida-i/
https://www.deuslovult.org//2015/02/11/e-se-a-renuncia-de-bento-xvi-for-invalida-ii/
https://www.deuslovult.org//2015/02/12/e-se-a-renuncia-de-bento-xvi-for-invalida-iii-final/
Faz um quase um ano, aliás. É meio irritante o sujeito pegar o bonde andando e querer sentar na janelinha, mas, bom, humildade é coisa que parece que só se exige dos outros né…
Abraços,
Jorge
Prezado Jorge, salve Maria.
O que acha do travesti que teve os pés lavados por Francisco ter comungado na mesma missa?
Cordialmente,
Sandro de Pontes
Sandro, salve Maria!
Eu comentei sobre o assunto à época.
Abraços,
Jorge
Respeitável Jorge,eu não lhe conheço pessoalmente mas passei a lhe admirar por conta das suas explanações sempre bem ponderadas.Quando leio algumas críticas que lhe são feitas,até mesmo inescrupulosas e ofensivas,não poupando nem as autoridades legítimas da Igreja,redobro a minha atenção e expectativa positiva,pois lembro-me das palavras da grande Santa Tereza D’Ávila que ao ser criticada,incompreendida,ultrajada e perseguida, desconcertantemente se alegrava porque dizia que o diabo já começava a agir e isso era um bom sinal de que a Obra de Deus estava se realizando.Santa Tereza,com certeza vivenciava a alegria da bem-aventurança evangélica proclamada por Nosso Senhor Jesus Cristo.Portanto,alegrai-vos e exultai porque será grande a vossa recompensa na terra e especialmente nos céus.Shalom irmão!
Caro Jorge, eu já vi muitos bons católicos utilizarem a passagem que você citou do Concílio Tridentino (Sessão XXI, Cap. 2), como justificativa para mudanças litúrgicas em geral. Mas, pelo contexto, pode-se ver que esta sessão/trecho trata exclusivamente do modo da distribuição dos sacramentos eucarísticos (pão e vinho transubstanciados), isto é, se eles são distribuídos em duas espécies ou não. Não é logicamente possível ampliar seu escopo a todas as cerimônias sacramentais/litúrgicas. Peço que reveja sua argumentação.
Joathas, embora o trecho tridentino esteja de fato inserido no capítulo «da comunhão sob ambas as espécies», o que não me parece logicamente possível é restringir o seu escopo a esta modificação somente e a mais nenhuma.
A passagem fala em sacramentorum, no plural, fala em salva illorum substantia, para pôr os limites ao statueret vel mutaret, fala em quae (…) magis expedire iudicaret para deixar intencionalmente amplo o espectro daquilo que pode ser estabelecido ou mudado.
O que me parece é que existe aqui um silogismo, onde a premissa maior é “a Igreja pode modificar a maneira de distribuir os Sacramentos”, a menor é “a comunhão sob a espécie do pão somente é uma modificação da maneira de distribuir o Sacramento da Eucaristia” e, a conclusão, “a Igreja pode determinar a comunhão sob a espécie do pão somente”.
É verdade, Jorge, lendo agora com mais atenção, você parece ter razão.