O Carnaval é a antessala da Quaresma. Isso, nós o aprendemos quase que por instinto, quase que por osmose, quase como um truísmo apanhado displicentemente no campo das verdades apodíticas. Nem discutimos. Está na nossa cultura, está no ciclo festivo a que somos expostos ano a ano, está nas máscaras dos palhaços e nas marchinhas de Carnaval. Ao Carnaval segue-se a Quaresma, à Terça-Feira Gorda segue-se a Quarta-Feira de Cinzas — e, aqui, talvez sejamos tentados a complementar: como ao pecado se segue a penitência.
A Missa de Cinzas é para quem cometeu pecados no Carnaval: também já ouvi isso algures. Por essa lógica, você pecaria no Carnaval para se purificar durante a Quaresma. E assim ficaria parecendo que as Cinzas — e, por extensão, toda a Quaresma — seriam uma benevolência da Igreja para com as ovelhas desviadas durante os festejos carnavalescos, um aceno misericordioso às viúvas de Momo.
Tudo isso, no entanto, é balela. É preciso ter coragem de afirmar com veemência, com firmeza, mesmo contra o senso comum que talvez impere entre os que desconhecem o Catolicismo: não, o Carnaval não está para a Quaresma assim como o pecado está para a penitência, não, a Igreja não instituiu as Cinzas para arrebanhar os foliões arrependidos. Não, a Quaresma não existe em função do Carnaval, é exatamente o contrário: é o Carnaval que existe em função da Quaresma. A Quaresma é que é o essencial; o Carnaval é acessório.
E a natureza do acessório deve ser proporcionada à do principal. Ora, a Quaresma é santa e santificante. O Carnaval, portanto, deve ser santo e santificante também. Já esbocei este raciocínio outras vezes aqui, em outros carnavais, mas vale a pena repeti-lo: o tempo do Carnaval é um tempo essencialmente bom, proporcionado à natureza humana, espiritualmente profícuo. Se sobreviesse à humanidade um período de trevas puritanas, e se os homens se esquecessem do que é o Carnaval, e se ao Tempo Comum após o Ciclo Natalino se seguisse a penitência quaresmal sem solução de continuidade, então a Igreja teria que inventar (de novo) o Carnaval, então Momo teria que ser trazido de volta à vida para servir a Cristo.
Porque é preciso dizer adeus à carne! É preciso reconhecer a beleza da música para amargar o silêncio, é preciso deleitar-se com as cores para enlutar-se com o roxo, é preciso apreciar a comida para oferecer a Deus o jejum. É óbvio. O Carnaval é a antessala da Quaresma não porque o pecado precede a penitência, mas porque a preparação da vítima precede o sacrifício. A fartura de hoje ressalta o jejum de amanhã. Nós comemos e bebemos para valorizar a nossa abstinência iminente. Neste tríduo profano, nós reafirmamos a bondade daquilo que, pelos próximos quarenta dias!, vamos oferecer em sacrifício ao Todo-Poderoso.
Se não fosse possível viver santamente o Carnaval então não seria possível viver de forma meritória a Quaresma, cuja penitência consiste em oferecer a Deus o que há de bom no mundo e não o que temos de ruim em nós. Os protestantes não entendem a penitência porque só valorizam o pecado e o arrependimento. Nós, católicos, sabemos que, para além do arrependimento, existe um longo e doloroso caminho de mortificação que deve ser palmilhado Calvário acima se quisermos um dia chegar à glória de Deus. Não se trata de pecar e depois se arrepender, trata-se de se mortificar dia a dia para cada vez mais se assemelhar a Cristo. Isso não é uma coisa que se faça de uma vez para sempre, é um processo que, enquanto estivermos respirando, precisaremos sempre enfrentar.
É exatamente por isso, aliás, que devem ser rejeitadas as mensagens (alegadamente) de Quaresma que dizem para fazermos “jejum de fofoca” (ou coisa parecida) no lugar de jejum de comida. Isso não tem sentido absolutamente nenhum. A fofoca é pecado e deve ser evitada sempre, o ano inteiro, todos os dias, e não apenas na Quaresma. Não se faz “jejum de pecado”, o pecado você evita e arranca da sua vida, contra o pecado você trava guerra sangrenta e incansável vinte e quatro horas por dia! O jejum, a penitência, são sacrifícios oferecidos a Deus, e você somente se abstém do que é bom e lícito, você apenas oferece a Deus aquilo que tem valor. A carne é boa e a fofoca é ruim: é por isso que nós comemos carne no Carnaval e jejuamos na Quaresma, ao passo que não nos é lícito fofocar nem na Quaresma, nem no Carnaval e nem em momento nenhum.
E é pela exata mesma razão que o Carnaval deve ser celebrado. Se a alegria carnavalesca fosse uma coisa má em si mesma, a penitência quaresmal ficaria esvaziada de sentido. Reduzir-se-ia a evitar o pecado, que é a tônica básica da vida cristã no ano inteiro (inclusive, evidentemente, no Carnaval). E, assim, os novos iconoclastas, ávidos por despedaçar bonecos gigantes de Olinda, poriam fim a todo um tempo do Ano Litúrgico.
O Carnaval não é o pecado pelo qual vamos fazer penitência na Quarta-Feira de Cinzas: não nos é lícito pecar nem no Carnaval nem em tempo algum. A licenciosidade dos costumes é algo reprovável e degradante, é coisa contra a qual temos que lutar no Carnaval como no resto do ano inteiro. Não nos é lícito entregar à licença no Carnaval para nos penitenciar na Quaresma — como, repetimos, não nos é permitido ser licenciosos em tempo algum! Mas, no Carnaval, por baixo da licenciosidade, da bebedeira, da maledicência, é preciso enxergar o núcleo que é bom, é preciso encontrar o sentido original da festa, é preciso identificar os prazeres lícitos que estamos aproveitando agora porque, já em breve, deles nos vamos abster. Carne, vale! É preciso saber dizê-lo; na boa compreensão desta despedida está o segredo de uma boa Quaresma.