Dentre as muitas ideias ruins que circularam nos últimos dias, por ocasião do Sínodo da Amazônia, a proposta de elaboração de um “Rito Amazônico” para os “povos originais” é das mais chocantes.
E isso por uma razão bem simples: é que a Liturgia não é uma criação humana, mas uma dádiva dos Céus. Não é uma coisa que nós produzimos, confeccionamos, mas que recebemos de Deus e, nesta condição, temos o dever de custodiar, preservar e desenvolver. Esta é talvez uma das diferenças mais marcantes da Religião Verdadeira em relação às falsas religiões: enquanto, nestas, o homem busca alcançar a divindade, n’Aquela é o próprio Deus que vem ao encontro da humanidade decaída.
Não se trata de mero jogo de palavras: é uma diferença essencial. Ora, o homem, enquanto tal, tem sede de Deus. A natureza humana é dotada de uma insatisfação intrínseca, de um anseio pelo absoluto, que se manifesta no sentimento religioso encontrado em todas as culturas. Os homens de todas elas, cada um a seu modo, na medida de suas limitações, como quem abre um caminho desconhecido, como que às apalpadelas, desenvolveram naturalmente sistemas religiosos que pudessem, de alguma maneira, responder, um pouco que fosse, ao seu desejo de Deus. Neste sentido, a religião é um fenômeno humano.
Ora, religião, entre outras coisas, vem de religare. Religar, reunir, tornar a ligar — no caso, a humanidade (pecadora) a Deus (três vezes Santo). Normalmente os caminhos são abertos a partir do ponto de partida e em direção ao ponto de chegada. Ninguém pensa em abrir um caminho partindo da chegada para a partida, porque a chegada é, por definição, o lugar onde nós não estamos e para onde queremos ir. Ninguém pensa em começar o caminho já do lado de lá.
Mas houve quem pensasse. Deus, sabendo que seria impossível aos homens abrirem um caminho que, partindo da terra, chegasse até o Céu, resolveu abrir-lhes Ele próprio este caminho, começando do Céu e descendo até a terra. Todas as religiões naturais são tentativas do homem de alcançar a Deus; o Cristianismo, a Religião Verdadeira é a tentativa de Deus alcançar o homem — aliás, mais do que tentativa, é realização, é o encontro último e definitivo que satisfaz aquela inquietação do coração humano da qual falava Santo Agostinho (feciste nos ad Te, Domine, et inquietum est cor nostrum donec requiescat in Te).
Pois bem, hoje estas verdades andam sumariamente esquecidas. Fala-se em um “rito amazônico” — a proposta consta do Documento Final do Sínodo e não estava presente, ao menos não de maneira explícita, no Instrumentum Laboris — que, “segundo usos e costumes dos povos ancestrais, (…) expresse o patrimônio litúrgico, teológico, disciplinar e espiritual amazônico”. A ideia é tão ruim, e em tantos aspectos, que fica até difícil comentar. A comparação de um tal “rito amazônico” com os demais ritos católicos é tão nonsense que chega a ser acintosa.
Primeiro que a diversidade ritual existente na Igreja tem uma justificativa histórica muito forte: são, todos, ritos milenares, surgidos dos Apóstolos ou dos seus sucessores imediatos, nascidos do primeiro contato do Evangelho com as culturas pagãs, em um movimento de forte expansão do Cristianismo nascente.
Depois, estes ritos integram famílias eclesiais próprias — Igrejas sui juris — que detêm uma certa autonomia dentro do Catolicismo. A razão de essas Igrejas particulares existirem, mais uma vez, encontra-se em circunstâncias históricas específicas e irrepetíveis.
Em terceiro lugar, todos os ritos tiveram um desenvolvimento orgânico e contemporâneo ao próprio processo de evangelização. Foram levados a efeito, de maneira natural, pelos evangelizadores e evangelizados. De modo diferente, propõe-se, agora, que “rito amazônico” seja elaborado — de maneira artificial e burocrática — por comitês e comissões, passados cinco séculos da evangelização da Amazônia.
Finalmente, last but not least, todos os ritos surgiram em momentos de plena vitalidade da Igreja, de Sua expansão apaixonada, de um ardor missionário tal que, nos dias de hoje, seria provavelmente considerado fanatismo. Estes ritos expressam a Fé porque foram forjados nela, em um ambiente onde ela era universalmente considerada um tesouro recebido dos Céus. Hoje a Igreja passa por uma crise terrível, o Cristianismo amazônico se encontra decadente e os responsáveis pela região são claramente incapazes de levar Nosso Senhor às almas que lá vivem. Deveriam ser destituídos de seus cargos, e não chamados para inventar — e aplicar! — soluções mirabolantes para os problemas que eles próprios causaram.
O projeto de um “rito amazônico” é uma tragédia anunciada. Se for realmente levado a cabo será um desastre e uma traição, mais uma chaga aberta no Corpo Místico de Cristo que é a Igreja, mais um capítulo doloroso deste mysterium iniquitatis que Deus permite abater-se sobre nós. Até quando…?
Jorge, estava com muitas saudades dos seus ótimos textos. Concordo com vc quando diz que o estabelecimento de um rito amazônico é de longe a pior proposta do documento final do sínodo. Uma invencionice sem sentido. Um ato de arrogância, e uma atitude demolidora.
Que Deus Nosso Senhor tenha misericórdia de nós.
Maravilhoso e profético texto!
Mas te pergunto uma coisa, Jorge: qual é a diferença entre isso que eles estão tentando fazer agora, através de sínodo, de comissões, de Conferências Episcopais, com a anuência do pap etc, e as bagunças litúrgicas que campeiam pelo mundo afora, sem alarde e sem obstáculos? tipo missa afro, missa crioula, missa com palhacinhos, missa carismática e outras modalidades que existem aos montes, deformando o rosto da liturgia e tornando raras as missas minimamente aceitáveis.
Será que lá no meio dos índios, vai sair coisa pior do que aquilo que já sai a vontade no mundo inteiro em qualquer missa de paróquia? será que saindo com a bênção sinodal as coisas ficarão mais graves do que as que já vem acontecendo mundo a fora com consentimento tácito e nem tão tácito do clero?
Porque a mistureba de cultura indígena com missa normal , lá no meio da selva, feita por pessoas simples e primitivas, vai ser pior , por exemplo, que aquela coisa (missa?) do video que tá rodando na internet de uma mesa de refeição com doces, salgadinhos e garrafas de refrigerante, gente sentada em volta, um padre com estola passando a “travessa” de hóstias consagradas e cálice de vinho consagrado de mão em mão pros circundantes como apenas um prato de salada? (https://www.youtube.com/watch?v=7LY4STe49IU&t=3s&fbclid=IwAR2ahGUP-cxXRIzf0guC3i_aCTbXJ2WEZfh0e40b-EoLUcZcMOOxUqvLF5Q )
Eu entendo o protesto e comungo com ele, mas algo precisa ser feito, e com urgência, e muito mais do que questionar textos esquisitos que saiam desse Sínodo. Até porque com base em documento ou sem documento nenhum toda esse abuso já está sendo feito e a muito tempo.
Voce não acha?
Não vejo qual seria o problema de criar um “Rito Amazônico”. Não criaram um rito maçônico (Bugnini e “São” Paulo VI) do nada, para enterrar o verdadeiro rito latino? Poucos reagiram e os neocons hoje acham lindo. Pois colham os frutos da “primavera” que vocês tanto cultuam (Vaticano II)!!!
E ainda sugeriram ordenar padres pessoas casadas, né?
Aceitem, a tal hermenêutica da continuidade que nada mais era que introduzir o modernismo em doses homeopáticas na Igreja para que aceitássemos a dita heresia ruiu. E tudo ocorreu conforme São Pio X previu na Pascendi.
Somente os empedernidos, de agora em diante, seguirão voluntariamente defendendo a tragédia do Vaticano II. Os maiores inimigos da Igreja são os conservadores que querem conservar a revolução modernista do Vaticano II.
Belo texto Jorge!
Lamentável tudo isso!!
Mas espere o Sínodo da Alemanha…
Entendo o argumento, Jorge. Mas desde a codificação realizada por São Pio V o desenvolvimento propriamente orgânico parece ter se limitado enormemente, de modo que nenhum rito novo seria originado naturalmente (não que eu objete que a Forma Extraordinária seja o rito mais excelente).
Tanto é assim que a reforma do Ofício Divino realizada por São Pio X e a reforma da liturgia da Missa realizada por São Paulo VI foram confecções burocráticas do aparato vaticano, que de modo geral violaram certa continuidade da tradição litúrgica, e nenhuma mudança que não seja pequena seria possível de ser implementada (novamente, não que eu achasse propriamente necessária alguma mudança).
A mesma ação ora empreendida já deu como resultado o rito Zairense (zairois) na África, marcadamente distinto da Forma Ordinária, no entanto, não creio que irreverente, ilegítimo ou “contra a Fé”. Caso seja de fato “produzido” um rito amazônico, poderíamos ver progressistas defendendo as rubricas, o problema maior é que, dado o contexto, temo que o resultado seja bem distinto daquele visto no Congo.