Assisti dia desses a um filme intitulado “Instinto Secreto” (Mr. Brooks, 2007). Não é a melhor obra-prima do mundo, mas é um suspense interessante, com situações criativas e que prende bem a sua atenção. A história, contada de maneira bem superficial, é a seguinte: o sujeito, o tal Brooks, é um empresário bem sucedido, casado, pai de família… uma pessoa bem normal. O único “detalhe” – que o torna capaz de ser protagonista da trama – é o fato de ele ser um Serial Killer.
O filme é recheado de coisas interessantes, como os diálogos que o Brooks tem com o “álter-ego” assassino dele, o chantagista que tem umas fotos do último assassinato, a detetive empenhada no caso, a luta que o assassino trava para parar de matar – sim, porque ele mata por ser viciado e não conseguir parar. Mas tem uma cena que corre o risco de passar despercebida na trama, por ser secundária, e que é todavia bastante expressiva.
A filha de Brooks volta para casa, e a polícia está investigando a garota por causa de um assassinato na faculdade. O pai – não sem muitas dúvidas – decide proteger a filha. Qual o plano? Simples: ele procura detalhes do assassinato, vai até a faculdade – fica em uma outra cidade – e mata outra pessoa do mesmo jeito que (supostamente – pois o filme não deixa isso explícito) a filha matou. Dois assassinatos iguais, a polícia vê o padrão, traça o perfil de um serial killer e, como a garota estava em outra cidade na noite do segundo assassinato, a suspeita sobre ela é descartada. Voilà.
Os fins justificam os meios – disse uma vez Maquiavel. E, para justificar a máxima, os homens são capazes de recorrer às mais absurdas situações. Pra salvar a própria filha – que, afinal, pode até estar sendo injustamente acusada -, o pai não deveria fazer tudo o que está ao seu alcance – até matar? A versão atual do dilema, que escutei ad nauseam por ocasião dos infinitos debate sobre as células-tronco, era a seguinte: “se fosse o teu filho numa cadeira de rodas, tu serias a favor das pesquisas”. “Ou então” – às vezes era acrescentado – “tu não amarias o teu filho”.
O problema com esta argumentação é que a resposta à capciosa pergunta vai estar, provavelmente, enviesada, pois a situação é de tal maneira construída que o sujeito vai julgar em favor de si mesmo, defendendo os próprios interesses! E esta “auto-defesa” – até psicologicamente justificável, mas evidentemente falha enquanto apreciação objetiva e juízo isento – é tomada como se fosse a mais nobre expressão da virtude e da solidariedade, porque estaríamos “nos colocando no lugar” das pessoas a quem realmente interessa determinada questão.
“Colocarmo-nos no lugar” de uma parte interessada num resultado específico de uma dada querela é exatamente o que não pode ser feito para quem quiser formar uma opinião justa sobre o assunto em questão, e isso é óbvio. Ninguém pode apreciar um assassinato colocando-se no lugar do assassino; já pensou o advogado dizendo ao juiz “ah, se fosse Vossa Excelência que estivesse no banco dos réus, não ia ser a favor da condenação”? Todavia, contestar esta idéia equivocada nos transforma, incontinenti, em monstros insensíveis aos sofrimentos alheios. A virtude deixa de ser a isenção, e transforma-se no interesse. A atitude correta seria tomar partido. “Se você fosse uma raposa” – é como se dissessem – “ia ser a favor dos saques ao galinheiro”. Oras, mas acontece que, absolutamente, não é isso que está em discussão! Queremos saber se é lícito que as galinhas alheias sejam surrupiadas pelas raposas, e não se as raposas têm motivos para atacar os galinheiros, porque é óbvio que elas os têm!
Em suma, ninguém precisa ter um filho com uma doença incurável para saber a importância que tem para um pai a cura do filho. E, ao mesmo tempo, ninguém pode julgar a licitude de uma questão olhando somente para o próprio filho – real ou imaginado – que esteja doente. Além dos fins, deve-se olhar para os meios; e a moralidade ou imoralidade destes vê-se com mais clareza quando não se está advogando em causa própria. Afinal, de entender os motivos do mr. Brooks a legalizar os assassinatos vai um longo passo. A mesma coisa faz com que seja justificável o desejo das pessoas de buscarem a cura para si próprias ou para as pessoas que amam; mas, mesmo assim, não se justifica a destruição de seres humanos em pesquisas científicas.