O in dubio pro reo é um princípio do Direito cristalino que significa, literalmente, o seguinte: havendo dúvida, decide-se [uma ação judicial] em favor do réu. É um princípio para garantir, tanto quanto possível, que ninguém seja punido injustamente. No entanto, no Brasil, parece que as coisas mais óbvias passam longe do senso comum das pessoas que detêm a autoridade.
Demonstrar o óbvio é uma tarefa demasiadamente ingrata porque, segundo a boa filosofia, o que é evidente não é passível de demonstração. Prova-se o que não é evidente; o evidente, aceita-se. O raciocínio existe para as pessoas que têm apreço pela razão humana, de modo que é dificílimo demonstrar um raciocínio qualquer para pessoas que aceitam premissas e/ou conclusões irracionais.
Da premissa latina supracitada (que, ao que me consta, não foi (ainda) contestada por ninguém) segue-se, entre outras coisas, que uma determinada lei (justa ou injusta; passemos ao largo desta problemática por enquanto) em desfavor de uma pessoa ou de um grupo de pessoas, ainda em julgamento, não pode ser aplicada, enquanto não for aprovada, às pessoas ou ao grupo de pessoas que ela punirá caso seja aprovada, porque, se ela ainda não foi julgada, não se pode saber com certeza (e, portanto, há dúvida sobre) se ela será aprovada ou não. A repetição maçante é necessária à enfadonha tarefa de argumentar sobre o óbvio.
No Brasil, entretanto, as coisas não funcionam assim. As coisas que estão ainda sendo julgadas são, amiúde, aplicadas como se já fossem cláusulas pétreas constitucionais. Um exemplo “saído do forno” desta aberração jurídica é a notícia que foi publicada ontem n’ O Globo Online, segundo a qual uma mulher em Ribeirão Preto foi autorizada a abortar uma criança anencéfala no quarto mês de gestação. Considerando que este tipo de aborto ainda está sendo discutido no Supremo Tribunal Federal, nada justifica que a Justiça de Ribeirão Preto tenha autorizado o assassinato da criança deficiente antes do STF dizer se é permitido ou não assassinar crianças deficientes.
Com relação ao aborto, entretanto, aquilo que é irracional (a aplicação de dispositivos jurídicos enquanto eles ainda estão sendo discutidos) revela-se um refinado plano de transformação da sociedade “na marra”, na medida em que o cínico descumprimento da lei transforma-se em motivo para se debater a lei e em lobby para ser utilizado a favor da mudança da legislação. Assim, por exemplo, o aborto é crime no Brasil, ponto. No entanto, é praticado, mesmo sendo crime, quer de maneira clandestina (que os poderes públicos coibem de maneira ineficiente), quer institucionalizado de maneira cínica pelo Estado (o famoso caso do inexistente aborto legal), e então – voilà! – os abortistas de todos os naipes “argumentam” a favor da mudança da lei com base no descumprimento da lei. É óbvio que isto é um raciocínio estúpido; mas quem disse que os abortistas são criaturas racionais?
A mesma técnica está sendo usada agora para o caso dos abortos dos anencéfalos, com as instâncias inferiores da Justiça concedendo pareceres favoráveis ao assassinato de crianças que ainda está em julgamento no Supremo. Não é (somente) irracionalismo, é tática deliberada de forçar o sistema jurídico a ser alterado. Se o carro consegue andar na frente dos bois, então para quê servem os ruminantes? Para manter a aparência de carroça, e mais nada. Quando as aparências não forem mais necessárias, o churrasco será marcado. Se o Supremo permite bovinamente que as instâncias inferiores da Justiça “antecipem-se” a ele, cedo ou tarde vai chegar a hora do abate. E aí estaremos tão no fundo do poço que eu não faço idéia de quando voltaremos a ver a luz do sol.
P.S.: Em Pernambuco, o aborto eugênico já tem jurisprudência. Kyrie, eleison.