Embora longo e de leitura relativamente difícil para quem não é da área, este texto de Roger Scruton vale muito a leitura. Sou um completo ignorante em arquitetura urbana e confesso, envergonhado, não conhecer nenhum dos nomes citados no artigo; não obstante, o articulista tem o mérito de se fazer entender mesmo para quem (como eu) é leigo no assunto.
Porque as coisas que ele fala fazem bastante sentido e todos nós as percebemos, mesmo que não saibamos organizá-las sistematicamente do jeito que ele o faz. Em brevíssimas palavras, o autor fala da arquitetura como uma modalidade de arte intrinsecamente coletiva e que, como tal, não pode estar sujeita aos caprichos grandiloqüentes – e amiúde insanos – daquilo que ele chama de “arquitetos-superstars”, sempre preocupados em elaborar construções novas e totalmente destoantes da paisagem urbana que foi tradicional e organicamente moldada para se adaptar ao estilo de vida de uma população. E os exemplos que ele traz são bastante eloqüentes, como p.ex.:
Glazer é um sociólogo que dedicou à arquitetura e aos seus efeitos sociais uma atenção considerável ao longo dos anos; o seu livro reúne ensaios bem escritos que relatam a sua desilusão crescente com os estilos e arquétipos modernistas. Como muitos socialistas bem-intencionados (coisa que ele era na época), Glazer em princípio foi um entusiasta da mentalidade planificadora que fincou raízes na Grã-Bretanha do pós-guerra e que procurou varrer os cortiços superlotados e insalubres, substituindo-os por torres higiênicas cercadas de espaços onde a população pudesse desfrutar de luz e ar. Essa receita para melhorar a situação da classe trabalhadora das cidades foi mais influenciada por Gropius e a Bauhaus do que por Le Corbusier. Coincidia com o programa socialista, segundo o qual a habitação era responsabilidade do Estado, todos os arquitetos da época tendiam a endossá-la, e parecia oferecer vantagens insuperáveis em comparação com a receita antiga – que em todo o caso era antes um subproduto da liberdade do que uma escolha consciente -, segundo a qual as casas deviam ficar uma ao lado da outra ao longo da mesma rua.
Contudo, Glazer chama a atenção para o fato de a principal oposição ao projeto modernista de habitação não ter vindo dos críticos, mas das próprias pessoas a que esses projetos eram destinados. Para a surpresa dos planejadores, a população resistiu à tentativa de demolir as suas ruas e de eliminar as doenças familiares e domesticadas que grassavam nos seus quintais atulhados. As pessoas não gostavam nada de viver dependuradas no ar, nem de olhar por uma janela e não ver coisa alguma; queriam a vida da rua, queriam sentir a vida ao seu redor e ao mesmo tempo saber que podiam trancá-la do lado de fora ou deixá-la entrar conforme quisessem. Queriam ter os vizinhos ao lado, não acima ou abaixo. E a maioria delas queria uma casa própria, não uma que fosse propriedade da prefeitura e que depois não pudesse ser transmitida como herança para os filhos. A tentativa de “bauhausizar” a classe operária foi, portanto, rejeitada pelos próprios operários, que nesse caso como em tantos outros se recusaram a fazer o que os socialistas lhes ordenavam até serem coagidos a fazê-lo pelo Estado.
Se é verdade que a arte é veículo transmissor de idéias e de valores, isto se aplica também à arquitetura urbana e a forma como as cidades são organizadas diz muito sobre os seus habitantes. Este texto surgiu em uma lista após alguém perguntar sobre o porquê das cidades medievais possuírem ruas estreitas. A melhor resposta, a meu ver, foi a que incluiu na sua explicação a importância das ruas estreitas de um ponto de vista militar, para facilitar a organização das tropas em defesa da população contra um exército invasor estrangeiro – e, por outro lago, avenidas largas são úteis quando o inimigo a ser combatido é a própria população da cidade, facilitando a movimentação rápida de tropas no interior da malha urbana (o que é exatamente o que se deseja evitar no caso de tropas invasoras)…
Curiosidades históricas à parte, isso me fez pensar na organização tradicional de cidades do interior de Pernambuco (que imagino não serem muito diferentes Brasil afora), onde o centro da cidade é a igreja com uma praça defronte, ponto a partir do qual a cidade cresce organicamente conforme for aumentando o número dos seus habitantes. Mas a pracinha e a igrejinha estão sempre lá, no centro, no início histórico da cidadezinha, como que dando testemunho permanente dos hábitos daquela população: a cidade nasceu junto à Cruz, e é em torno à casa de Deus que ela cresce e se desenvolve.
Contrastando com tudo isso está a arquitetura moderna: com seus prédios horrorosos e seus monumentos sem significado, com o planejamento tomando o lugar do crescimento orgânico, as formas das construções obedecendo aos devaneios de “arquitetos superstars” ao invés de refletirem o estilo de vida da população, e a nudez fria e impessoal dos prédios – em nome da “praticidade” e da “utilidade” – ocupando o lugar da variedade de adornos e ornamentos nas fachadas das casas, os mais espontâneos e diversos possíveis porque enfeitavam construções que, antes de prédios precisando ser úteis, eram lares que precisavam ser vivos. A arquitetura moderna é degradante, é desumana, é atéia. Reflete as tentativas modernas de impôr à paisagem urbana uma ideologia materialista, tentando fazer com que as pessoas, imersas neste ambiente que tesmunha anti-valores de modo tão claro, possam assim assimilar com mais facilidade as ideologias anti-naturais nele refletidas.
Mas só o que se consegue com isso é fazer com que os habitantes sintam-se desconfortáveis em suas próprias cidades, e passem a odiá-las e a desejar fugir delas. A arquitetura moderna é muito bizarra para ser aceita assim, sem resistências, por seres humanos criados para Deus e em cujos corações o Todo-Poderoso gravou de maneira indelével um anseio infinito por Ele próprio. E, forçando a vida em um ambiente desagradável (como acontece o tempo inteiro nas nossas cidades totalmente dominadas por esta “arte” moderna nefanda), não é possível obter senão prejuízos para a própria sociedade. Porque uma vez que – como diz Roger Scruton – “a cidade é o centro da vida social e criativa, (…) se fugimos dela acabamos por refugiar-nos numa solidão estéril”. E, portanto, é extremamente importante “o retorno à ordem natural da arquitetura, que permitirá que voltemos a sentir-nos em casa em um ambiente urbano”.