Há algum tempo eu encontrei numa livraria uma bonita edição dos “Autos do processo de Vieira na Inquisição”. Passei um tempo considerável folheando o livro, que me pareceu interessantíssimo; não o trouxe para casa, contudo, porque a curiosidade histórica não me cabia então no orçamento mensal.
O livro não veio comigo, mas o conteúdo dele sim. O processo contra o pe. António Vieira, eu me lembrava perfeitamente, fora instaurado por conta de uma carta enviada a não-sei-que autoridade oriental, na qual o sacerdote dissertava sobre umas (supostas) profecias de um gajo segundo as quais o rei D. João IV haveria de ressuscitar. Estas referências foram-me suficientes para que eu recuperasse, hoje, a história inteira. Encontrei-a na Revista Semear 2, da Cátedra Padre António Vieira de Estudos Portugueses. O silogismo brandido pelo pe. António Vieira foi o seguinte:
O Bandarra é verdadeiro profeta; o Bandarra profetizou que El-Rei D. João o quarto há de obrar muitas cousas que ainda não obrou, nem pode obrar senão ressuscitando: logo, El-Rei D. João o quarto há-de ressuscitar.
Era exatamente isto. Lembrava-me de como me pareceu, à época, que o pe. Vieira estava a troçar dos portugueses, sustentando diante das fuças dos inquisidores um silogismo cuja premissa maior era gigantescamente questionável sem parecer se preocupar muito com esta singular lacuna argumentativa. Cheguei a pensar, a sério, que o interesse do reverendíssimo sacerdote era somente quanto aos aspectos formais da construção silogística, mais ou menos como Chesterton diz que os unicórnios eram importantes para os escolásticos medievais: “se um licorne tem um chifre, então dois deles têm tantos quanto uma vaca”. De qualquer maneira, lembro-me de que este processo do Santo Ofício evoluiu para coisas que faziam muito mais sentido, como a natureza das profecias ou a Revelação: assuntos propriamente teológicos, de leitura deliciosa cuja mera lembrança agora me dá ganas de ter o livro à mão e me faz refletir sobre o porquê de comprarmos livros. Se me é permitida a metáfora, trata-se de um testemunho – dir-se-ia profético! – do valor das estantes repletas…
Mas qual não foi a minha surpresa quando encontrei hoje, na primeira frase desta matéria do Estadão, esta incrível pérola: o pe. António Vieira foi «[c]ondenado pela Inquisição de Coimbra por fazer duras críticas à exploração dos escravos» (!). Como assim?! Não foi este o motivo do seu processo mais conhecido. Semelhante episódio da vida do sacerdote não consta na sua biografia da Wikipedia e nem em nenhuma outra. O próprio conteúdo da acusação é totalmente nonsense e descabido: como se a Igreja condenasse não os que exploravam escravos, mas os que eram contra a escravidão (!). De onde esta informação absurda foi retirada?
Confesso, desconcertado, não fazer idéia. Ou talvez até faça: trata-se aparentemente de mais um exemplar do velho e esclerosado preconceito anti-clerical, desta deficiência intelectual grave que parece ter uma doentia compulsão por dar crédito – ligeiro e leviano – a qualquer bobagem desabonadora que alguém atribua à Igreja Católica. O fenômeno não é novo. Mas encontrá-lo de novo e de novo, em pleno século XXI, é profundamente desanimador. Melhor me seria ler os autos do Santo Ofício! E melhor fariam certos repórteres em ler, senão processos antigos sobre os quais se metem a falar, ao menos os resultados mais relevantes do Google. Assim passariam menos vergonha.
Antes de fazer meu comentário, quero explicitar que não venho com aquele velho preconceito anti-clerical, mas apenas discutir civilizadamente. E caso esteja dizendo algo errado eu pedirei desculpas imediatamente :b
Bem, é notável a defesa da Igreja pelos índios, e fico imensamente orgulhoso que a Igreja de Cristo se opôs a exploração ibérica dos indigenas. Sobretudo a defesa formidável de Las Casas. Mas o que eu tenho a contrapor é que se a Igreja a partir do séuclo XVI vai se mostrar contra a escravidão, no século anterior ela deu aval para a mesma. A Bula Dum Diversas e a Romanus Pontifex, emitida pelo papa Nicolau V, aprovou a escravização dos mulçumanos e dos povos não-cristãos na África. Pode-se argumentar que a escravização dos mulçumanos foi uma defesa contra a escravidão branca, praticada pelos mesmos. Mas toda a escravização é lamentável D:
Jorge, o Bandarra é uma figura conhecida do Sebastianismo português, inclusive é titulo de um dos poemas de Fernando Pessoa, era um sapateiro de trancoso que fazia profecias a respeito do retorno de
D. Sebastião e a fundação do Quinto Império português(o império do espírito), seu nome completo é Gonçalo Annes Bandarra.
Ele próprio foi julgado pela inquição portuguesa em 1500 e alguma coisa(eu escrevo de memória) e condenado a participar de uma procissão em Lisboa(A maior parte das condenações da inquisição eram participar de peregrinações ou procissões penitenciais), depois disso parou de escrever e morreu em Trancoso anos depois.
O Sebastianismo foi abraçado de forma muito interessante pela maçonaria e pelos rosa-cruz portugueses, isso já na epóca de Pessoa, isso uns trezentos anos depois.
Encontrei uma coleção de sermões do padre Antônio Vieira, no site literaturabrasileira.ufsc.br. Pelo que vi, são 243 sermões. E no Google Livros, com visualização completa, há “Sermões, Volume 1” (1264 páginas) e “Sermões, Volume 2” (1264 páginas).
Caro Jorge Ferraz
Nunca me prendi a ler texto do Padre Antônio Vieira, mas com a facilidade de um clique abri o link que a Alexandre Magno informou. Na lista que estava disponível abri de forma aleatória “Sermão da Glória de Maria, Mãe de Deus”.Eu não entendi!!!Ele atribui à Maria a citação de Lucas 10,42.”no entanto, uma só coisa é necessária; Maria escolheu a boa parte, que lhe não será tirada”. (Lc 10,42)
Citada por ele em latin de forma parcial:
“Maria
optimam partem elegit. __ S. Lucas, X.”
Neste link:
http://www.literaturabrasileira.ufsc.br/_documents/0043-01814.html
Posso estar tão errado, ou pode o texto estar falsamente atribuído para ele, ou ainda poderia ele incorrer em um engano tão simples.
A Wikipedia traz considerações sobre o assunto; sobre a Dum Diversas, quando o Papa escreveu: “invadir, buscar, capturar e subjugar os sarracenos e pagãos e quaisquer outros incrédulos e inimigos de Cristo”, leia-se isso num contexto de guerra. Qualquer nação ou povo em guerra (independente do motivo do conflito) invade, busca, captura e subjuga. Foi a orientação espiritual de um capelão a um soldado, tanto que não se fala de matar ou forçar os inimigos a trabalhos.
http://pt.wikipedia.org/wiki/Papa_Nicolau_V
Sim sim, eu conheço o período que foi escrita. Havia todo o espírito cruzadista no homem europeu. Porém, deve-se levar em conta que a bula papal foi endereçada para o rei de Portugal, Afonso V, no momento em que Portugal começou a negociar com as tribos da Guiné e que escravos africanos começam a entrar na Europa. E escravos negros, não muçulmanos. A bula representa assim um apoio da Igreja a escravidão, contato que os escravizados se tornem cristãos. O que eu acho lamentável D: