Dies Irae

Não é propriamente uma composição litúrgica, mas é uma peça da qual gosto bastante com o texto – este, sim, litúrgico – da sequência da Missa de hoje, Dia de Finados. E esta versão de Mozart é provavelmente a mais conhecida do Dies Irae.

A execução litúrgica, em Gregoriano – belíssima! -, eu encontrei no Subsídio Litúrgico. Segue abaixo:

http://www.youtube.com/watch?v=Dlr90NLDp-0

E, no dia de hoje, lembremo-nos de que havemos também nós de morrer. Lembremo-nos de que hoje celebramos os fiéis defuntos para que eles nos digam de que também a nossa hora há de chegar e, por isso, importa desde já – desde ontem! – viver com esta realidade diante dos olhos. A exortação é, se não me engano, de Santo Agostinho: enterramos com freqüência os nossos amigos e parentes, vemos funerais todos os dias e, não obstante, continuamos a nos prometer longos anos de vida. Insensata promessa que ninguém pode fazer para si!

Vivamos com a consciência de que estamos por aqui só de passagem. E que esta passagem pode ser bem curta e, aliás, geralmente é mais curta do que esperamos, não importa por quantos anos a Providência nos permita caminhar pelo mundo dos vivos. Vivamos à perspectiva de que iremos morrer, e em breve! Que o Todo-Poderoso possa Se compadecer das almas dos fiéis que padecem no Purgatório (hoje, a propósito, é dia de lucrar indulgência plenária para eles, em visitas a cemitérios ou igrejas, nas condições habituais: confissão, comunhão e oração pelas intenções do Santo Padre), e que eles ascendam o quanto antes à glória celeste para, de lá, interceder por nós. Que a Virgem Santíssima, Janua Coeli, receba-os o quanto antes no Reino do Seu Divino Filho.

Requiem aeternam dona eis, Domine,
et lux perpetua luceat eis.

Requiescant in Pacem.
Amen.

Santa Hildegarda de Bingen e São João de Ávila, doutores da Igreja

Eu fiquei muito feliz quando soube que Bento XVI declarou dois novos doutores da Igreja no domingo 07 de outubro: Santa Hildegarda de Bingen e São João de Ávila. A proclamação solene foi feita na Santa Missa para a abertura do Sínodo dos Bispos, e a breve apresentação de ambos que o Papa Bento XVI fez foi a seguinte:

São João de Ávila viveu no século XVI. Profundo conhecedor das Sagradas Escrituras, era dotado de um ardente espírito missionário. Soube adentrar, com uma profundidade particular, nos mistérios da Redenção operada por Cristo para a humanidade. Homem de Deus, unia a oração constante à atividade apostólica. Dedicou-se à pregação e ao aumento da prática dos sacramentos, concentrando seus esforços para melhorar a formação dos futuros candidatos ao sacerdócio, dos religiosos, religiosas e dos leigos, em vista de uma fecunda reforma da Igreja.

Santa Hildegarda de Bingen, importante figura feminina do século XII, ofereceu a sua valiosa contribuição para o crescimento da Igreja do seu tempo, valorizando os dons recebidos de Deus e mostrando-se uma mulher de grande inteligência, sensibilidade profunda e de reconhecida autoridade espiritual. O Senhor dotou-a com um espírito profético e de fervorosa capacidade de discernir os sinais dos tempos. Hildegard nutria um grande amor pela a criação, cultivou a medicina, a poesia e a música. Acima de tudo, sempre manteve um amor grande e fiel a Cristo e à sua Igreja.

Confesso que não conheço muito bem a história e a obra de Santa Hildegarda; mas São João de Ávila é-me bem familiar. Já falei sobre ele aqui no Deus lo Vult! outras vezes (em particular, neste texto onde o grande santo espanhol fala sobre a crise da Igreja à época do Concílio de Trento – vale uma (re)leitura); gostei do seu estilo desde a primeira vez que pus os olhos sobre os seus escritos. Por exemplo, é ele o autor do Audi, Filia (disponível aqui: parte 1, parte 2, parte 3 e parte 4), e é com um trecho do início desta obra que eu encerro este ligeiro post:

E se é poderoso o gosto pelas honras vãs, muito mais poderosa é a medicina do exemplo e graça de Cristo, que de tal maneira as vence e desarraiga do coração que as faz ser percebidas como coisas muito abomináveis; de tal modo que, se um cristão vê o Senhor de Majestade abaixar-se a tais desprezos, fica o verme vil inchado com o amor da honra. Por isso o Senhor nos convida e encoraja com Seu exemplo, dizendo (Jo 16, 33): Confiai, que Eu venci o mundo. Como se dissesse: “Antes que Eu viesse, coisa difícil [recia] era lutar com o mundo enganoso [tomarse con el mundo engañoso], descartando o que nele floresce e abraçando o que ele descarta; mas depois que ele pôs todas as suas forças contra Mim, inventando novo gênero de tormentos e desonras, todas as quais Eu sofri sem lhe voltar o rosto, ele já não somente parece fraco – porque encontrou quem pôde sofrer mais – mas também se encontra derrotado para vosso proveito, pois com o exemplo que Eu vos dei e com a Fortaleza que Eu conquistei para vós, vós o podeis rapidamente vencer, sobrepujar e pisotear”.

Audi, Filia, Cap. III

Que os novos doutores da Igreja possam protegê-La neste Ano da Fé; e que, do Alto dos Céus, possam interceder por nós e conseguir-nos uma porção redobrada daquela Sabedoria do Espírito Santo que eles souberam possuir em grau tão admirável. Que eles aumentem e fortaleçam a nossa Fé. São João de Ávila e Santa Hildegarda de Bingen, rogai por nós!

“Nossa Senhora Rainha” – Dom Fernando Rifan

Na esteira da festa da Assunção da Virgem Santíssima (celebrada ontem no Brasil), reproduzo abaixo este bonito artigo de Dom Fernando Rifan que recebi por email. Sua Excelência fala de Nossa Senhora Rainha, mas fala também sobre os dez anos da Administração Apostólica São João Maria Vianney que, na última década, tem realizado um insubstituível trabalho de conservação e propagação das riquezas tradicionais da Igreja Católica no Brasil, neste tempo de tantas confusões que vivemos.

Há dez anos, os padres de Campos regularizavam a sua situação canônica e voltavam, assim, às fileiras dos exércitos do Vigário de Cristo para desempenhar um importante e decisivo papel no combate à crise que assolava então – e ainda hoje assola – a Igreja de Nosso Senhor. Num mundo caótico onde a rapidez das mudanças (infelizmente, muitas vezes dentro das próprias estruturas eclesiais) ameaçava fazer perder de vista os valores eternos, o clero de D. Mayer reconheceu o mal que estava causando por conta de um combate marginal realizado à revelia da própria Igreja e, não raro, contra Ela própria. Perceberam, graças a Deus, qual era o seu papel. E voltaram!

O combate por certo não está terminado, e ainda há muita coisa para ser feita. A situação da Igreja, se hoje se encontra melhor do que há dez anos, ainda exige de nós católicos muito suor e muitas lágrimas. Mas a presença serena dos sacerdotes amigos da Administração nos dá forças para lutar e nos faz ver que, por piores que estejam as coisas, o Evangelho de Jesus Cristo, novidade perpétua e sempre o mesmo, tão antigo e tão novo, é fecundo ainda nos dias de hoje e, mesmo no nosso século, é capaz de dar frutos verdadeiros para o bem da Igreja, para a glória de Deus e a salvação das almas.

O nosso muito obrigado à Administração Apostólica. Que a Virgem Santíssima, Regina in caelum assumpta, possa continuar intercedendo por ela e, através de Suas mãos virginais, consiga aos padres de Campos e ao seu Administrador Apostólico todas as graças necessárias para que eles continuem perseverantes no Bom Combate, a despeito das decepções e das traições de hoje.

* * *

NOSSA SENHORA RAINHA

                                                          Dom Fernando Arêas Rifan*  

            Celebramos no dia 22 de agosto a festa do Imaculado Coração de Maria, Nossa Senhora Rainha, belos títulos de Maria, a Mãe de Jesus.

Na semana passada, celebramos a solenidade da Assunção de Nossa Senhora, em honra da singular graça a ela concedida por Deus, levando-a em corpo e alma para o Céu. Honra singular, como fora a sua Imaculada Conceição. Deus antecipou nela a sorte que está reservada a todos os justos na Ressurreição final. O que já aconteceu com a Santíssima Virgem, acontecerá conosco, esperamos da misericórdia divina: será a nossa vitória definitiva sobre a morte, Por isso, sua Assunção nos enche de esperança e alegria, a nós, pecadores, que ainda gememos e choramos neste vale de lágrimas.

Na festa da sua Assunção, celebramos os 10 anos da criação da nossa Administração Apostólica e o 10º aniversário da minha Ordenação Episcopal, com uma belíssima Santa Missa Pontifical, com o maravilhoso sermão de Dom Fernando Guimarães, bispo de Garanhuns, com a presença de vários Arcebispos e Bispos da nossa região, de inúmeros sacerdotes, seminaristas, autoridades municipais e estaduais e cerca de dois mil fiéis vindos de diversas partes do nosso Estado e do Brasil. Agradecemos aqui mais uma vez a presença de todos e as inúmeras mensagens de congratulações recebidas, especialmente a do Santo Padre o Papa Bento XVI, do Núncio Apostólico, e de dezenas de Cardeais, Arcebispos e Bispos de todo o Brasil e do exterior, expressão da comunhão e amizade que muito nos honra.

A festa de Nossa Senhora Rainha é a continuação da sua Assunção. No Céu, a Virgem de coração mais humilde foi a mais exaltada, conforme prometeu Jesus: “quem se humilha será exaltado”. Foi recebida no Céu pelos coros dos anjos e coroada por seu Divino Filho, recebendo as honras da Santíssima Trindade.

Daí vem o piedoso costume da Coroação de Nossa Senhora, como sempre se fez e faz em muitas paróquias. Este gesto da coroação é simbólico. No século X, o rei da Hungria Santo Estevão consagrou o seu reino a Nossa Senhora, colocando a sua coroa aos pés da imagem de Maria Santíssima. O mesmo fez Dom Afonso Henriques, primeiro rei de Portugal, gesto repetido por Dom João IV, com oferta de vassalagem e promessa de feudo de Portugal a Nossa Senhora. Daí por diante os reis de Portugal não mais usaram a coroa, pois pertencia a Maria Santíssima, e todos são retratados sem coroa, tendo-a ao lado em uma almofada. A Rainha era a Mãe do Céu. O Brasil, pois, já estava incluído. Felizes tempos que tiveram tais governantes!

Em 1904, Nossa Senhora Aparecida foi coroada Rainha do Brasil. Em 1930, no Rio de Janeiro, então capital do país, Nossa Senhora da Conceição Aparecida, Rainha do Brasil, foi proclamada oficialmente padroeira de nossa Pátria em ato solene realizado pelo Episcopado Brasileiro, na presença do Presidente da República, o Sr. Getúlio Vargas, de eminentes autoridades e de uma multidão de brasileiros, ufanos de ter tal rainha e patrona.

 

*Bispo da Administração Apostólica Pessoal São João Maria Vianney

Ele não deixaria inacabada!

O Cristianismo é a religião do Verbo Encarnado, e esta é uma das suas características de conseqüências mais maravilhosamente radicais. Não significa simplesmente que Deus existe, que nos criou e nos ama; não significa apenas que Ele nos destinou a uma Bem-Aventurança superior àquela a que nós seríamos merecedores por natureza. Não quer dizer meramente que Ele Se revelou a nós, comunicando-nos à inteligência verdades sublimes sobre Si. Tudo isso é verdadeiro, mas a Encarnação é um acontecimento muito maior. Trata-se de algo muito mais misterioso e profundo, muito mais sublime e incompreensível: queremos dizer que Deus tomou por Sua a nossa carne, assumiu a nossa humanidade e, assim, fez-Se um de nós.

Fez-Se um de nós! O Deus Altíssimo, Criador dos Céus e da Terra, habitando eternamente em luz inacessível, dignou-Se revestir-Se das coisas criadas e, nos mais limítrofes rasgos de Sua Onipotência, confinou a Eternidade ao tempo e circunscreveu o Infinito ao ser humano. As reais dimensões desta verdade já incontáveis vezes a nós repetida encontram-se, não obstante, para muito além da nossa compreensão. Mas a Igreja Católica com freqüência nos possibilita um vislumbre da excelsa dignidade a que foi elevada a natureza humana e, por meio daquilo que festeja na terra, prepara-nos para o que nos aguarda no Céu.

Hoje é a festa da Gloriosa Assunção da Bem-Aventurada Virgem Maria, da Imaculada e Sempre-Virgem Mãe de Deus. O dogma, todos sabem o que quer dizer; nas palavras da Munificentissimus Deus, significa que «a imaculada Mãe de Deus, a sempre virgem Maria, terminado o curso da vida terrestre, foi assunta em corpo e alma à glória celestial». Mas estas palavras já repetidas à exaustão podem nos fazer considerar de maneira leviana este dogma da Fé. Para uma melhor compreensão do que ele nos revela, é-nos útil considerar o que a Religião nos ensina sobre a relação entre o corpo e alma.

Segundo a antropologia cristã clássica, corpo e alma estão de tal maneira unidos que, juntos, perfazem uma unidade substancial. Isto atrela de maneira irredutível o destino de um ao de outro; a glorificação da alma, ao contrário do que postulam certas filosofias de influência espírita, exige e implica a glorificação do corpo. A primeira vez que isso me ficou claro foi quando um amigo traçava um paralelo entre o Pecado e a Redenção. O pecado arrastara o corpo à corrupção do túmulo e à morte; ora, se a salvação não fosse capaz de resgatar também o corpo humano desta desordem original, então haveria ainda um aspecto da existência humana que permaneceria sob o poder de Satanás a despeito do Sacrifício de Cristo. A culpa seria maior que a Redenção e, o Pecado, maior do que a Graça, o que é absurdo. Logo, também ao corpo humano – a este corpo humano que Deus quis assumir! – está destinada a Bem-Aventurança, também ele é capaz da Glória. Como exatamente se dará isso é-nos desconhecido; nas palavras do Apóstolo, trata-se daquilo que os olhos não viram, os ouvidos não ouviram e o coração humano não imaginou. Mas sabemos, com certeza, que haverá olhos para ver e ouvidos para ouvir o que Deus tem preparado para os que O amam.

E a Assunção da Santíssima Virgem é motivo para que nos alegremos e, juntando-nos aos cristãos de todos os séculos, cantemos as glórias da Bem-Aventurada Mãe de Deus, d’Aquela que foi Imaculada desde o primeiro instante da Sua concepção; d’Aquela a Quem Deus, tendo tomado por Mãe quando desceu à terra, não permitiu que sofresse a corrupção do túmulo à qual Ela, não havendo tido jamais parte com o pecado, não estava por justiça sujeita.

Na verdade, a festa hoje celebrada é a coroação daquela outra que nós celebramos no dia oito de dezembro: é o cumprimento das promessas de Deus, a realização plena de Sua vontade, o arremate de Sua obra mais perfeita que Ele não deixaria inacabada! Porque parece que faltaria alguma coisa na História da Salvação se a Santíssima Virgem não tivesse sido elevada aos Céus: faltaria um troféu importante da vitória sobre a Morte e, sobretudo, faltaria uma graça que o Todo-Poderoso não teria concedido nem mesmo Àquela que foi chamada de “Cheia de Graça”, faltaria um agrado que o Senhor não fizera nem mesmo à Sua própria Mãe – e, se Ele tivesse negado a glorificação do Corpo Àquela que O carregou do ventre, nós outros, pecadores miseráveis, não poderíamos jamais ousar esperá-la para nós próprios. Mas o Deus Altíssimo não é mesquinho e, por isso, nós podemos ter esperança. Maria Santíssima foi assunta aos Céus, e a Vitória de Cristo está completa. Salve, ó Virgem Gloriosa! Lembrai-Vos de nós na presença de Deus. Rogai por nós, os pecadores. Sede em nosso favor. Alcançai-nos as graças de Deus. Sede nossa salvação.

Assumpta est Maria in caelum:
gaudent Angeli, laudantes benedicunt Dominum.

Apontamentos sobre as Escrituras Sagradas e inerrância bíblica

A propósito de alguns comentários recentes sobre as Escrituras Sagradas feitos aqui no blog, aproveito o ensejo para esclarecer:

– A inspiração do Espírito Santo deu-se nos autores originais e em relação aos textos originais, inexistindo no geral a “inspiração do tradutor” e – com muito mais razão! – uma suposta “inspiração” de traduções apócrifas e desautorizadas das Escrituras Sagradas como o são as traduções protestantes.

– Inexistindo ou sendo difícil o acesso aos originais, o Concílio de Trento (e, repetindo-o, a Divino Afflante Spiritu de Pio XII) afirma «que devem reconhecer-se “como sagrados e canônicos os livros inteiros com todas as suas partes conforme se costuma ler na Igreja católica e estão na antiga Vulgata latina” (Concílio de Trento, Sessão IV, decr. l; Ench. Bibl ., n. 45)» (DAS 1).

– Assim sendo, a inerrância bíblica não se estende a todas as traduções e a todos os manuscritos, mas é característica dos textos originais (por desconhecidos que sejam nos dias de hoje, e ainda que tenham sido perdidos) e, para fins práticos, da Vulgata latina, como ensina o mesmo Pio XII: «esta autoridade preeminente ou autenticidade da Vulgata decretou-a o concílio não principalmente por motivos de crítica, mas antes pelo uso legítimo que dela se fez na Igreja durante tantos séculos; uso que prova estar ela, no sentido em que a entendeu e entende a Igreja, completamente isenta de erros no que toca a fé e aos costumes; de modo que, como a mesma Igreja atesta e confirma, se pode nas disputas, preleções e pregação alegar seguramente e sem perigo de errar» (DAS 14).

– Este lugar proeminente ocupado pela Vulgata não desmerece os textos originais; o estudo deles é não apenas legítimo como também encorajado, mas em estreita colaboração com a Vulgata e jamais em oposição a ela. Ainda Pio XII: «[n]em a autoridade da Vulgata em matéria de doutrina impede, – antes nos nossos dias quase exige – que a mesma doutrina se prove e confirme também com os textos originais, e que se recorra aos mesmos textos para encontrar e explicar cada vez melhor o verdadeiro sentido das Sagradas Escrituras» (id. ibid.).

– A inerrância bíblica deve ser entendida em sentido absoluto, e não apenas em um “sentido espiritual” (p.ex., que as Escrituras Sagradas apenas não contenham “erros contra a fé”). Assim pontifica Pio XII remetendo a Leão XIII: «Enfim é absolutamente vedado “coarctar a inspiração unicamente a algumas partes da Sagrada Escritura ou conceder que o próprio escritor sagrado errou”, pois que a divina inspiração “de sua natureza não só exclui todo erro, mas exclui-o e repele-o com a mesma necessidade com que Deus, suma verdade, não pode ser autor de nenhum erro. Esta é a fé antiga e constante da Igreja”» (id., 3).

– A esse respeito, peço vênia para uma citação um pouco mais longa de Leão XIII na Providentissimus Deus:

[N]ão é absolutamente permitido restringir a inspiração só a algumas partes da Sagrada Escritura, ou admitir que o mesmo autor sagrado tenha errado. Com efeito não se pode admitir o método dos que resolvem essas dificuldades sem hesitar em conceder que a inspiração divina se aplique às coisas que dizem respeito à fé e aos costumes e [a] nada mais, julgando erradamente que em se tratando do verdadeiro sentido dos trechos escriturísticos, não se deve tanto procurar o que Deus possa ter dito, mas antes sopesar o motivo pelo qual o tenha dito. Com efeito todos os livros, na sua integridade, que a Igreja recebe como sagrados e canônicos em todas as suas partes, foram escritos sob a inspiração do Espírito Santo, e, portanto, é impossível que a inspiração divina contenha algum erro, que ela, pela sua própria natureza, não somente exclui até o mínimo erro, mas o exclui e rejeita tão necessariamente, como necessariamente Deus, verdade suma, não pode, da maneira mais absoluta, ser autor de algum erro.

Essa é a antiga e constante fé da Igreja, definida também com sentença solene pelos Concílios Florentino e Tridentino e, finalmente, confirmada e declarada mais expressamente no Concílio Vaticano [I] que assim decretou, da maneira mais absoluta: “É preciso ter como sagrados e canônicos os livros inteiros do Antigo e do Novo Testamento com todas as suas partes, como são elencados pelo decreto do mesmo Concílio (Tridentino) e como se encontram na antiga edição [da] Vulgata latina. E a Igreja os tem como sagrados e canônicos, não porque, compostos unicamente pelo talento humano, tenham sido depois aprovados por sua autoridade, e tampouco pelo simples fato de conter a revelação sem erros, mas porque tendo sido escritos sob a inspiração do Espírito Santo, têm Deus como autor”. Por isso não tem valor aqui dizer que o Espírito Santo teria tomado alguns homens como instumentos para escrever, como se algum erro possa ter escapado não certamente ao autor principal, mas aos escritores inspirados. (…) Conseqüentemente deriva que os que admitem que nos lugares autênticos dos Livros sagrados se possa encontrar algum erro, certamente estes ou pervertem a noção católica da inspiração divina ou fazem o próprio Deus autor do erro. Todos os Padres e doutores estavam de tal modo convencidos [de] que as Cartas divinas, assim como foram compostas pelos hagiógrafos, estão absolutamente imunes de todo erro, que não poucos daqueles trechos que parecem apresentar alguma coisa de contrário ou diverso (isto é, quase os mesmos trechos que agora são propostos como objeções sob o nome de ciência nova) procuraram de maneira não menos sutil e religiosamente compô-los e conciliá-los entre si, professando à humanidade que aqueles livros, quer inteiramente, quer nas suas partes singulares, eram igualmente inspirados divinamente e que o próprio Deus que falou por meio dos autores sagrados não pôde absolutamente inspirar algo falto de verdade. Sirva para todos o que o próprio Agostinho escrevia a Jerônimo: “Eu, com efeito, confesso à tua benevolência que aprendi a prestar tal veneração e honra somente aos livros das Escrituras, que já são chamados canônicos, e que creio firmissimamente que nenhum dos seus autores tenha cometido erro algum ao escrever. E se, por acaso, encontrasse neles alguma coisa que parecesse contrária à verdade, não tenho a mínima dúvida de que isso dependa ou do códice defeituoso, ou do tradutor que não interpretou retamente o que foi escrito, ou que a minha mente não conseguiu entender” (PD, 41-42).

– Não obstante, o verdadeiro sentido das Escrituras Sagradas encontra-se nos modos de dizer próprios dos tempos e lugares nos quais foram escritos os diferentes livros sagrados. Ensina Pio XII: «Ora, qual o sentido literal de um escrito, muitas vezes não é tão claro nas palavras dos antigos orientais como nos escritores do nosso tempo. O que eles queriam significar com as palavras não se pode determinar só pelas regras da gramática e da filologia, nem só pelo contexto; o intérprete deve transportar-se com o pensamento àqueles antigos tempos do Oriente, e com o auxílio da história, da arqueologia; etnologia e outras ciências, examinar e distinguir claramente que gêneros literários quiseram empregar e empregaram de fato os escritores daquelas épocas remotas. De fato os antigos orientais, para exprimir os seus conceitos, nem sempre usaram das formas ou gêneros de dizer de que nós hoje usamos; mas sim daqueles que estavam em uso entre os seus contemporâneos e conterrâneos. (…) Nenhum dos modos de falar de que entre os antigos e especialmente entre os orientais se servia a linguagem para exprimir o pensamento, pode dizer-se incompatível com os Livros Santos, uma vez que o gênero adotado não repugne à santidade e verdade de Deus. Advertiu-o já o doutor angélico com a sua costumeira perspicácia por estas palavras: “Na Escritura as coisas divinas nos são apresentadas ao modo usual, humano”. Como o Verbo substancial de Deus se fez semelhante aos homens em tudo “exceto o pecado”, assim também a palavra de Deus expressa em línguas humanas assemelhou-se em tudo à linguagem humana, exceto o erro» (DAS 20).

– Portanto, «não há erro absolutamente nenhum quando o hagiógrafo falando de coisas físicas “se atém ao que aparece aos sentidos” como escreveu o Angélico, exprimindo-se “ou de modo metafórico, ou segundo o modo comum de falar usado naqueles tempos e usado ainda hoje em muitos casos na conversação ordinária mesmo pelos maiores sábios.” De fato “não era intenção dos escritores sagrados, ou melhor – são palavras de santo Agostinho [-] do Espírito Santo que por eles falava, ensinar aos homens essas coisas – isto é, a íntima constituição do mundo visível – que nada importam para a salvação”. Esse princípio “deverá aplicar-se às ciências afins, especialmente à história”, isto é, refutando “de modo semelhante os sofismas dos adversários” e defendendo das suas objeções a verdade histórica da Sagrada Escritura. Nem pode ser taxado de erro o escritor sagrado, “se aos copistas escaparam algumas inexatidões na transcrição dos códices” ou “se é incerto o verdadeiro sentido de algum passo”» (DAS 3).

– Por fim, cabe lembrar que «a Sagrada Escritura deve ser lida e interpretada com o mesmo espírito com que foi escrita» (Dei Verbum, 12); e, portanto, «não menos atenção se deve dar, na investigação do recto sentido dos textos sagrados, ao contexto e à unidade de toda a Escritura, tendo em conta a Tradição viva de toda a Igreja e a analogia da fé» (id. ibid). O Magistério da Igreja permanece a única instância competente para precisar, sem possibilidade de erro, o verdadeiro sentido [de qualquer parte] das Sagradas Escrituras.

Qual o valor de um corpo perfeito?

Belíssima história, que reproduzo abaixo do exato jeito que encontrei no Facebook, com a foto e o texto lá postados. Contra o “argumento” de que é fácil ter Fé em Deus quando se tem saúde e bens materiais, dona Maria dá a excelente resposta do testemunho da própria vida. Porque, como nos diz o Apóstolo, se fosse apenas para esta vida que estivesse voltada a nossa esperança, seríamos, dos seres humanos, os mais dignos de pena. A falta de saúde nos ajuda a colocar as coisas em perspectiva; felizes os que são capazes de perceber esta verdade contemplando a riqueza da criação de Deus! Porque mesmo a dor nos direciona para Ele. Mesmo a deficiência revela a plenitude do Ser Humano à qual aspiramos e a cuja luz somente as nossas limitações fazem sentido.

Não sei se vocês leram este texto do João Pereira Coutinho sobre o culto ao corpo. Caso negativo, façam-no agora. O articulista português expõe impiedosamente a pústula do anti-transcendentalismo moderno:

Se não existe nenhuma continuidade pós-terrena, se tudo que resta é esta passagem breve e incompleta que termina entre quatro tábuas, o olhar humano recentra-se sobre a matéria. Pior: coloca a matéria no altar das antigas divindades e troca as orações e as penitências do passado pelo calvário tangível da malhação matinal. […] Um deus caprichoso e inconstante, sujeito às inclemências da velhice, da doença e da morte. Se existem causas perdidas, o corpo é a primeira delas. Alimentar causas perdidas é um sintoma de demência.

Excelente exposição! E contra esta demência generalizada levanta-se o exemplo de Dona Maria, uma simples senhora de Manaus que nunca terá nesta vida um corpo perfeito. Mas, ao que parece, a sua alma está muito mais sadia e vigorosa do que a de muitos cujos corpos, comparados ao dela, são de uma perfeição olímpica. Na contramão da histeria moderna, esta senhora soube cultivar a própria alma. Aprendamos com ela.

* * *

Fonte: Facebook

Esta é a dona Maria. Ela mora em Manaus e é deficiente de nascença. Como se percebe, ela nasceu sem os braços e as pernas. Todas as terças feiras ela fica na porta do Santuário Nossa Senhora Aparecida participando das novenas perpétuas e pedindo ajuda aos fiéis. E numa conversa que eu tive com com a dona Maria, ela me fez a seguinte confissão: “Meu filho, eu nasci sem as pernas e os braços, mas sou uma pessoa feliz porque o essencial eu tenho: saúde, paz e principalmente fé! Confio muito em Deus e em Nossa Senhora. Sou aposentada, mas peço esmolas porque preciso ajudar a sustentar os meus netinhos que moram comigo e são doentes.” (Dona Maria)

Depois eu fiquei me perguntando: quantas vezes nós reclamamos tanto da vida mesmo tendo saúde, dinheiro, e tantas outras coisas. E ver uma guerreira como esta, na situação que se encontra ainda ajudando a cuidar da família com tanta disposição e alegria!

Realmente a dona Maria nos deixa aqui um exemplo de fé e superação de problemas!

Deus nos mostra por meio dessas pessoas que, por mais que a vida aparenta ter seus grandes problemas, eles só se tornam grandes a medida que permitimos que nossa fé esteja pequena!

O Escapulário da Virgem do Carmo

Hoje é a festa de Nossa Senhora do Carmo e eu me lembrei do artigo da semana passada de D. Fernando Rifan que falou sobre Ela. Recomento a leitura do texto do grande bispo de Cedamusa sobre os aspectos históricos da devoção à Virgem do Monte Carmelo (à guisa de exemplo: «[n]a pequena nuvem portadora da chuva após a grande seca, Elias viu simbolicamente Maria, a futura mãe do Messias esperado»), mas também sobre o Santo Escapulário e os privilégios que a Virgem Mãe de Deus prometeu aos que o usassem devotamente.

O Escapulário do Carmo! É possível conhecer um pouco mais sobre o pequeno sacramental aqui. Mas, para além destas (importantes) “especificações técnicas”, pode ser muito proveitosa no dia de hoje a leitura desta mensagem de Sua Santidade o Papa João Paulo II à Ordem do Carmelo em 2001. Das palavras do Papa, eu destaco (grifos meus):

5. No sinal do Escapulário evidencia-se uma síntese eficaz de espiritualidade mariana, que alimenta a devoção dos crentes, tornando-os sensíveis à presença amorosa da Virgem Mãe na sua vida. O Escapulário é essencialmente um “hábito”. Quem o recebe é agregado ou associado num grau mais ou menos íntimo à Ordem do Carmelo, dedicado ao serviço de Nossa Senhora para o bem de toda a Igreja (cf. Fórmula da imposição do Escapulário, no “Rito da Bênção e imposição do Escapulário”, aprovado pela Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, 5/1/1996). Por conseguinte, quem veste o Escapulário é introduzido na terra do Carmelo, para que “coma os seus frutos e produtos” (cf. Jer 2, 7), e experimente a presença doce e materna de Maria, no empenho quotidiano de se revestir interiormente de Jesus Cristo e de o manifestar vivo em si para o bem da Igreja e de toda a humanidade (cf. Fórmula da imposição do Escapulário, cit.).

São portanto duas as verdades recordadas no sinal do Escapulário: por um lado, a protecção contínua da Virgem Santíssima, não só ao longo do caminho da vida, mas também no momento da passagem para a plenitude da glória eterna; por outro, a consciência de que a devoção a Ela não se pode limitar a orações e obséquios em sua honra em algumas circunstâncias, mas deve constituir um “hábito”, isto é, um ponto de referência permanente do seu comportamento cristão, tecido de oração e de vida interior, mediante a prática frequente dos Sacramentos e o exercício concreto das obras de misericórdia espiritual e corporal. Desta forma o Escapulário torna-se sinal de “aliança” e de comunhão recíproca entre Maria e os fiéis: de facto, ele traduz de maneira concreta a entrega que Jesus, na cruz, fez a João, e nele a todos nós, da sua Mãe, e o acto de confiar o seu apóstolo predilecto e a nós a Ela, constituída nossa Mãe espiritual.

E estas palavras do Papa parecem-me excelentes para responder tanto à sanha iconoclasta dos inimigos da Mãe de Deus quanto a algum presunçoso laxista que porventura exista entre os cristãos e que, enganosamente, acredite ou se queira fazer acreditar ser devoto da Virgem do Carmo. A concepção de mundo expressa nestas palavras do Vigário de Cristo assinala a radical diferença entre uma concepção “mágica” ou “supersticiosa” do Cristianismo e a sua dimensão real: os sinais externos não apenas não substituem uma vida moral reta como também eles só fazem sentido se forem a sincera expressão exterior de uma vida agradável a Deus. O Escapulário do Carmo não é um amuleto da sorte nem um talismã mágico para livrar as pessoas do inferno, e usá-lo desta maneira significa, simplesmente, não usar o escapulário.

Aos que o usam devota e sinceramente, no entanto, ele se transforma em penhor de salvação, como as flores abertas e vistosas de um jardim bem cuidado revelam a vitalidade do jardim e o empenho do jardineiro no seu cultivo. Da mesma forma que jogar um belo ramalhete de flores sobre um terreno descuidado e repleto de ervas daninhas não o transforma em um jardim, cobrir com um escapulário uma alma imunda e repleta de pecados não a transforma em serva dedicada da Rainha do Carmelo. Os devotos da Mãe de Deus o são antes e primordialmente na alma, e os sinais externos são (sempre!) frutos desta fecundidade anterior e interior. O escravo da Rainha do Carmelo não perde a sua dignidade quando o seu hábito lhe é tirado, assim como uma roseira não deixa de ser uma roseira se lhe arrancam uma rosa: com o tempo, um e outra irão se revestir novamente – de escapulário ou de rosas. Ao contrário, um vaso de flores não vira uma roseira nem mesmo se lhe adornam com as mais belas rosas do mundo, pois estas cedo ou tarde fenecerão, deixando o vaso de novo vazio. E o escapulário sobre os ombros do católico deve ser como as rosas da roseira, e não como as do estéril e frio vaso de flores. Se não for assim, ele não é verdadeiro escapulário e não faz sentido utilizá-lo.

“O cristão na casa de Deus” – como se comportar na Santa Missa

[Utilidade pública. Vi no Facebook; serve, naturalmente, não apenas para os fiéis que assistem à Santa Missa na Forma Extraordinária do Rito Romano como também para todos os que entram em um Templo Católico, na Casa de Deus, independente da celebração específica que estejam assistindo. Afinal, a Missa é a Cruz. Há um só Calvário, há uma só Missa, e toda Missa deve ser tratada com o respeito que é devido ao Sacrifício Propiciatório de Cristo-Deus em favor de nós.]

O CRISTÃO NA “CASA DE DEUS”

1 – Bem sabe o cristão que nossos templos são lugares sagrados. Igualmente sabe que nas Igrejas católicas mora o Deus eterno e omnipotente, real e verdadeiro, embora se oculte aos nossos olhos materiais sob os véus eucarísticos.

Na Igreja, portanto, deve haver todo respeito, o maior silêncio e devoção.

[…]

3 – Quando o cristão entra na Igreja, vai logo fazer uma devota genuflexão diante do altar do Santíssimo, que é fácil reconhecer, pois diante dele arde continuamente uma lâmpada, e aí adora o seu Deus na Eucaristia. Para Jesus Sacramentado deve estar polarizada a atenção, a fé, o amor dos fiéis.

[…]

6 – As senhoras devem estar na Igreja com a cabeça coberta, principalmente na recepção dos sacramentos. Os vestidos devem ser discretos e modesto. Nada de decotes exagerados e vestidos sem mangas.

[…]

8 – Ninguém deve sair da Igreja durante o sermão. Isto incomoda o auditório e o pregador e constitui grande falta de educação.

9 – Não se pode ficar sentado nem sair da Igreja durante a bênção do Santíssimo, que aliás dura poucos minutos.

[…]

11 – Eis algumas faltas de educação que ainda devemos evitar na Igreja: Conversar, cochicar, rir – olhar para os que entram ou saem – fixar curiosamente as pessoas – perturbar, como quer que seja, as pessoas que rezam – cuspir no chão – assoar-se com estrondo – fazer ruído com os bancos ou cadeiras – ajoelhar ou assentar-se desajeitadamente – cruzar as pernas – estar de mãos nos bolso – cumprimentar ostensivamente os amigos (basta um aceno de cabeça) – não tomar parte nas práticas e orações em comum – gritar ou arrastar a voz nas orações ou cânticos – não guardar silêncio e respeito durante os casamentos, baptizados e exéquias – fazer algazarra na porta ou nas proximidades – enfim tomar atitudes que revelem falta de fé ou de educação.

Extraído de Compêndio de Civilidade:
para uso das famílias e dos colégios.
11ª edição.

É a internet intrinsecamente má?

Desde o final do mês passado – mais especificamente, desde o Dia dos bem-aventurados apóstolos São Pedro e São Paulo – a ACI Digital está com um novo formato. O portal católico de notícias aponta aquele que é um dos principais desafios dos nossos tempos:

A Igreja no Brasil e no mundo de língua portuguesa em geral, experimenta uma crescente necessidade de penetrar no campo das comunicações, para promover suas iniciativas, incrementar seu alcance e assim levar a mensagem de Cristo aos fiéis nos diversos meios de comunicação, particularmente, na internet.

Eu lia recentemente a palestra do pe. Spadaro sobre os novos meios de comunicação, e o sacerdote falava algo importante que, contudo, parece-me negligenciado por muitas pessoas. Refiro-me ao fato de que a internet é mais do que um simples meio de comunicação: é um – na falta de termo melhor – ambiente no qual as pessoas de fato existem. Na minha opinião, o grande trunfo da internet sobre os meios de comunicação tradicionais está na interatividade: de maneira contrária ao que ocorre (p.ex.) na televisão ou no rádio, as novas mídias sociais possibilitam – ou, eu diria mais ainda, exigem – que os consumidores de conhecimento sejam também eles próprios, por sua vez, produtores de conteúdo. Este fenômeno é completamente universal, abrangendo dos antigos canais do IRC às listas de email, das comunidades do Orkut aos sistemas de comentários dos blogs e do Facebook. Na internet não apenas se lê, mas também se escreve; não apenas se ouve, mas também se fala. Quem não entender a dinâmica deste mecanismo não vai conseguir entender a internet e, por conseguinte, não vai conseguir aproveitá-la.

A partir do momento em que as pessoas são instadas a se relacionarem na internet, esta deixa de ser um mero canal de busca de informações e passa a ser – de certo modo – uma extensão da existência dos seres humanos. Não é como um livro que se lê ou um espetáculo que se assiste, e sim como uma história escrita colaborativamente e à qual é imperativo impôr alguns traços da própria personalidade; como um ambiente no qual está uma parte de nós mesmos e que, portanto, deve refletir de certo modo um quê de nossa individualidade. Diante da internet – e talvez seja por isso que ela é tão sedutora – tem-se um vislumbre deste deslumbramento criativo de um artista diante de matéria bruta: tem-se a impressão de que é possível moldá-la e, mais, que ela clama por ser moldada. Tem-se esta forte sensação de que é possível modificar este espaço ao nosso redor de forma a transformá-lo n’alguma coisa que podemos dizer “nossa”. Não por acaso “site” significa precisamente – e a grafia assim se manteve no português-pátrio do Além-Mar – “sítio”. É um lugar, virtual por certo, mas ainda assim um lugar, que tem as características dos seres humanos que lá estiverem.

Há perigos, sem dúvidas, é inútil negá-lo. Claro está que um ambiente onde todos têm vez e voz corre o risco de se tornar terreno fértil para toda sorte de futilidades e de ocasiões de pecado. Sobre estas, a propósito, nunca me esqueci de uma história contada por Santo Agostinho em suas Confissões. Na época dele ainda havia lutas de gladiadores no Coliseu, e os cristãos as abominavam. Um amigo do santo, após insistentes convites de seus pares para participar de tais eventos, decidiu certa feita ir. Santo Agostinho o repreendeu, dizendo que esta violência gratuita não poderia fazer nenhum bem; mas o seu amigo o tranqüilizou dizendo que iria somente para satisfazer os seus colegas, pois manteria os seus olhos fechados na arquibancada, preservando-se assim daquela violência brutal que os pagãos da época tinham por entretenimento. E exatamente assim ele fez.

Pena – escreveu Santo Agostinho – que ele não se lembrou de fechar também os ouvidos. Ao primeiro golpe mutilador que fez o sangue jorrar na areia do Coliseu, a multidão reunida irrompeu em gritos de euforia; pego de surpresa pelo barulho, o jovem amigo do Bispo de Hipona abriu os olhos e, abrindo-os, foi seduzido pela luta. Tornou-se assim, a partir de então, para tristeza do santo e ruína de sua própria alma, um freqüentador assíduo das lutas de gladiadores.

Este exemplo ilustra perfeitamente o que é uma situação de pecado que se deve evitar. Não havia absolutamente nenhum propósito razoável em ir ao Coliseu e manter-se inerte na arquibancada de olhos fechados. Inexistindo (ou sendo mínimo) o benefício da atitude em comparação com o risco que se corre em tomá-la, a boa teologia moral nos ensina que não nos é lícito expôr desta maneira nossa alma a tão graves perigos. Coisa completamente diversa ocorre quando nós temos um propósito razoável em vista, isto é, quando há certa proporcionalidade entre o risco que se está correndo e as boas obras que se deseja realizar. Nestes casos, cabe ao juízo prudencial sopesar os prós e os contras e decidir o que cada um pode fazer e em que medida é lícito fazê-lo.

A internet pertence claramente a esta segunda categoria. Claro está que há perigos – terríveis! – na rede, mas claro está também que a presença dos católicos nela não é sem propósito, muito pelo contrário: tem o objetivo de viver o Evangelho também neste ambiente, criado pelo engenho humano mas existente de fato. Parece-me, desta maneira, exagerada esta reação contra o Facebook, na qual a rede recebe o temível epíteto de “intrinsecamente mau”. Com a devida vênia, isto é um completo absurdo. Primeiro porque apenas atos humanos são passíveis de serem qualificados como “intrinsecamente maus”, e o Facebook é uma coisa evidentemente distinta de um ato humano (pode-se classificá-lo como um ambiente ou até mesmo como uma ferramenta, vá lá, mas jamais como um “ato”). Segundo porque intrinsece malum, segundo a Igreja [cf. Veritatis Splendor, 80], são aqueles atos assim classificados em razão do seu objeto, e o ato de estabelecer relações com outras pessoas – o que é o fim precípuo de toda rede social – não é, sob nenhuma ótica, um objeto mau em si próprio. Relacionar-se para se vangloriar ou para satisfazer a concupiscência, p.ex., é sim moralmente errado, mas o é por conta da intenção [= a vanglória ou a concupiscência], e não do objeto [= a relação entre seres humanos]. Posso facilmente concordar que há nas redes sociais muitas relações fúteis e desordenadas, mas não dá para concordar que sejam intrinsecamente desordenadas as relações entre seres humanos feitas através dos novos meios de comunicação pelo simples fato de serem feitas “através de redes sociais”. Isto simplesmente não faz sentido.

A existência da internet é um fato do qual não é possível fugir e cuja existência não vai deixar de influenciar o mundo no qual vivemos se nós decidirmos fingir que ela não existe. Se a internet, como dizíamos acima, é um ambiente plasmado pela ação dos seus usuários – e me parece evidente que ela assim o seja -, então me parece totalmente sem sentido defender que é uma boa idéia “abandoná-la” à ação dos bárbaros. Muito pelo contrário até: se o ambiente da internet tem as cores dos seus “habitantes”, então é mister povoá-lo de almas nobres que se empenhem em torná-lo mais civilizado. Importa cultivar os sítios virtuais, a fim de que eles dêem frutos saborosos e não somente ervas daninhas. Afinal de contas, não me consta que haja exceção aos ambientes que devem ser perfumados com o doce odor de Cristo que os discípulos d’Ele têm o mandato de espalhar por todo o mundo.

Quem dá tiro para matar tem que tomar tiro para morrer

À primeira vista, eu achei que era brincadeira aquela história do promotor que mandou um policial que reagiu a um assalto melhorar a sua mira. Foi no Facebook que eu vi a história de Marcos Antônio, que trocou tiros com dois assaltantes e terminou abatendo um deles. No entanto, poucos dias depois, eu vi a notícia em R7 – e parece que é de fato verdade.

A história contada por R7 é exatamente a mesma que correu o Facebook: «De acordo com o pedido do Ministério Público, o policial civil Marcos Antônio Teixeira Marins foi abordado por dois bandidos enquanto dirigia pela rua Antônio Mariane, no bairro do Caxingui, em São Paulo, no dia 16 de setembro do ano passado. Embora estivesse à paisana, ele teria se identificado como policial após ser abordado pelos dois supostos criminosos: Antônio Rogério Silva Sena e Thiago Pereira de Oliveira. Houve, então, uma troca de tiros e um dos suspeitos, Sena, morreu». Legítima defesa, portanto, exatamente como entendeu o promotor de Justiça Rogério Leão Zagallo. Qual a razão da polêmica?

A questão, penso, está nos termos empregados pelo promotor. A maneira irreverente de relatar uma tragédia choca um pouco a sensibilidade politicamente correta dos nossos dias; no entanto, e paradoxalmente, esta linguagem parece ser muito bem aceita pela população que está cansada de conviver com a violência generalizada do nosso país, sustentada por um lado pelo discurso contrário ao direito individual à legítima defesa e, pelo outro, pela turma dos “direitos humanos” que parece estar mais preocupada em salvaguardar a integridade dos marginais do que em proteger os cidadãos de bem.

Creio ser escusado repetir a posição católica sobre o assunto; como todos sabemos,

[q]uem defende a sua vida não é réu de homicídio, mesmo que se veja constrangido a desferir sobre o agressor um golpe mortal:

«Se, para nos defendermos, usarmos duma violência maior do que a necessária, isso será ilícito. Mas se repelirmos a violência com moderação, isso será lícito […]. E não é necessário à salvação que se deixe de praticar tal acto de defesa moderada para evitar a morte do outro: porque se está mais obrigado a velar pela própria vida do que pela alheia».

Catecismo da Igreja Católica, §2264

Ao que parece, a maior parte da população está de acordo tanto com a teologia moral católica quanto com o senso comum da humanidade ao defender que – nas palavras meio duras do promotor de São Paulo – bandido que dá tiro pra matar tem que tomar tiro pra morrer. Mas eu entendo um pouco o que passa pela cabeça dos pacifistas que infestam os nossos dias e os nossos meios de comunicação social. Por exemplo, eu entendo perfeitamente que um bandido é uma pessoa “como eu”. Hoje de manhã eu ouvia na CBN uma história de um sujeito que manteve a filha (pequena) e a mãe – não entendi se a mãe dele próprio ou a mãe da criança, mas não vem ao caso – sob ameaça de uma faca enquanto a polícia negociava com ele a rendição. Ora, em outros lugares tal sujeito provavelmente levaria uma bala ao primeiro vacilo que cometesse; aqui, no entanto, a irmã dele veio dizer (ao final da reportagem) que ele tinha feito isso porque tinha problemas mentais, e gostava muito da sua filha, e a companheira tinha ameaçado levá-la embora, etc., etc. Parece-me que a polícia conseguiu subjugar o sujeito – graças a Deus. Mas, às vezes, eu fico com a terrível sensação de que há uma evidente desproporção de cuidados: quer-se, parece, preservar mais o criminoso do que as suas vítimas. Eu, repito, entendo perfeitamente que o criminoso é um cidadão, tem uma vida, uma história, etc.; mas (pelo menos!) o mesmo vale para as pessoas que ele está ameaçando. E, se há riscos, é mais justo que os assuma quem é o responsável direto pela situação perigosa. Por mais que o bandido seja um ser humano – e ninguém nega que ele o seja -, simplesmente não faz sentido trabalhar como se a situação fosse uma “eventualidade” impessoal da qual tanto os bandidos quanto as vítimas têm ou devem ter igual chance de se safar. Uma situação de violência – um assalto, um seqüestro ou o que seja – só existe por culpa pessoal de alguém, e o que é razoável é que as conseqüências dos (maus) atos recaiam sobre quem os pratica – não sobre quem é vítima inocente deles.

Ainda: eu entendo que uma espada medieval é (bastante) diferente de uma pistola semi-automática, uma vez que o poder letal desta é incomparavelmente maior; e isto de tal modo que a desagradável morte do agressor injusto que poderia ser considerada uma fatalidade relativamente rara numa tradicional resistência com espadas transforma-se, ao contrário, quase que numa trágica conseqüência inevitável do ato de se defender com armas de fogo. Eu entendo perfeitamente isso e, aliás, até concordo um pouco com Don Quijote; em certa passagem da obra de Cervantes, o ilustre cavaleiro de La Mancha queixa-se do maldito inventor da pólvora porque, graças a ele, qualquer covarde poderia facilmente dar cabo – à distância… – de um valoroso cavaleiro, com o qual ele jamais teria a coragem de se indispôr se não estivesse protegido pelos incríveis poderes do pó negro. É claro que eu concedo que, hoje em dia, nós temos armas muito letais. Posso até ser simpático à idéia de que, talvez, vivêssemos em um mundo melhor se não nos fosse tão fácil matarmo-nos uns aos outros. No entanto, não dá para fechar os olhos e fingir que armas de fogo não existem ou que malfeitores não têm acesso a elas. É óbvio que a legítima defesa precisa ser exercida com meios proporcionados à ameaça, sob pena de não ser defesa verdadeira. Provavelmente isto significa que, hoje em dia, mais malfeitores vão morrer com isso do que costumava acontecer quando duelávamos à base de lâminas, mas sinceramente não me parece que exista alguma alternativa razoável. E, a despeito das renitentes tentativas da mídia de inculcar um pacifismo medíocre na nossa população, parece-me que as pessoas são via de regra bem simpáticas à idéia de que cada qual tem o direito de se defender como puder.