Eu posso comungar?

Uma leitora do blog faz a seguinte pergunta:

Sou divorciada,moro sozinha embora tenho um “namorado” mas não moro com ele. Eu posso comungar?

Acho que vale uma resposta mais geral, uma vez que o questionamento deixa entrever uma certa incompreensão a respeito das condições exigidas para se receber a Santíssima Eucaristia.

Quem pode comungar é o católico que está em estado de graça, e somente este. O estado de graça é a condição de amizade com Deus adquirida originalmente por meio do Batismo e, caso seja perdida pelo pecado mortal, recuperada mediante o Sacramento da Confissão. Ou seja,

  1. quem não é batizado não pode comungar; e
  2. quem cometeu um pecado mortal após o Batismo não pode comungar enquanto não o tiver confessado.

É simples. Enquanto não se é batizado, não se pode comungar. Depois de batizado, pode comungar. Uma vez que tenha cometido um pecado mortal — qualquer que seja ele –, não pode comungar. Depois de se arrepender e confessar o pecado, pode voltar a comungar. Se cometer o pecado novamente, de novo fica sem poder comungar (até se confessar de novo) etc. Não existem pessoas que não podem comungar. Existem situações nas quais não se pode comungar.

Pecado mortal é a violação voluntária e consciente da lei de Deus em matéria grave. Existem incontáveis pecados mortais: é pecado mortal faltar Missa aos domingos e dias santos, é pecado mortal cometer aborto, é pecado mortal bater na esposa, é pecado mortal gritar com a mãe, é pecado mortal masturbar-se ou consumir pornografia, é pecado mortal ter relações sexuais com uma pessoa com a qual não se é casado na Igreja, é pecado mortal testemunhar falsamente contra alguém… a lista é longa e, mais importante!, não é exaustiva. Pode até fazer sentido debruçar-se esmiuçadamente sobre todas as maneiras possíveis de se violar cada um dos preceitos do Decálogo, mas isso é tarefa dos moralistas. Aos católicos ordinários, basta saberem que cometem pecado mortal — e, portanto, precisam confessar-se — ao não observarem os Dez Mandamentos da Lei de Deus — um deles que seja. Quais são os Mandamentos?

  1. Amar a Deus sobre todas as coisas.
  2. Não tomar o Nome de Deus em vão.
  3. Guardar domingos e festas.
  4. Honrar pai e mãe.
  5. Não matar.
  6. Não pecar contra a castidade.
  7. Não furtar.
  8. Não levantar falso testemunho.
  9. Não desejar a mulher do próximo.
  10. Não cobiçar as coisas alheias.

Todo Catecismo tem uma seção específica sobre “Os Mandamentos”, onde cada um desses preceitos é esmiuçado e onde se discute, argumenta e ensina exatamente o que o viola. Assim, por exemplo, no Catecismo, na parte onde se fala sobre o Primeiro Mandamento, é possível ler:

2116. Todas as formas de adivinhação devem ser rejeitadas: recurso a Satanás ou aos demónios, evocação dos mortos ou outras práticas supostamente «reveladoras» do futuro. A consulta dos horóscopos, a astrologia, a quiromancia, a interpretação de presságios e de sortes, os fenómenos de vidência, o recurso aos “médiuns”, tudo isso encerra uma vontade de dominar o tempo, a história e, finalmente, os homens, ao mesmo tempo que é um desejo de conluio com os poderes ocultos. Todas essas práticas estão em contradição com a honra e o respeito, penetrados de temor amoroso, que devemos a Deus e só a Ele.

Ou seja: comete pecado contra o Primeiro Mandamento — e, portanto, perde o estado de graça; e, portanto, precisa recorrer à Confissão Sacramental; e, portanto, não pode comungar — o católico que, deliberada e conscientemente, freqüenta centros espíritas para se comunicar com pessoas mortas, por exemplo. Isso é desconfiar de Deus e da Providência, isso é agir de modo frontalmente contrário à Sã Doutrina do Evangelho, isso é fazer pouco caso da Fé Católica e Apostólica, isso é, em suma, um pecado mortal que — como todo pecado mortal — impede quem o comete de comungar.

Parece haver uma certa mistificação a respeito da comunhão eucarística; pelo que se ouve, fica parecendo que todo mundo pode comungar, à exceção de um subconjunto de pessoas às quais, em razão do que são, é vedado o acesso à Mesa Eucarística. Assim, quem é divorciado não pode comungar, e não pode porque é divorciado; homossexual também não pode comungar, e não pode porque é gay; e assim sucessivamente. Esta visão é completamente equivocada, por duas razões muito claras. Primeiro, não existe propriamente um direito — ou pelo menos não um direito inato, inerente — à comunhão eucarística, que é graça; no geral, naturalmente falando, por aquilo que são (humanos feridos pelo Pecado Original), a verdade é que as pessoas não podem comungar, somente adquirindo este direito por conta daquele estado de graça sobre o qual se falava acima. Perdendo-se o estado de graça, deixa-se de poder comungar. Segundo, e mais importante, porque o estado de graça — ao contrário do que acredita certa teologia protestante — não é uma realidade dada de uma vez e para sempre, mas sim uma condição que, em situações normais, perde-se e se readquire incontáveis vezes ao longo do vale de Lágrimas pelo qual se caminha nesta vida. O ponto não é o que se é. O ponto é o que se faz.

Os homossexuais não podem comungar, é verdade, mas não por “serem homossexuais” — i.e., por serem portadores de uma disfunção da libido que os faz sentirem-se sexualmente atraídos por pessoas do mesmo sexo –, e sim por praticarem atos de sodomia. Isso tanto é verdade que as pessoas que possuam tendências homossexuais, mesmo profundamente arraigadas, podem perfeitamente levar uma vida cristã santa e sadia — o que inclui comungar — desde que se abstenham da prática de atos sexuais contra a natureza. O mesmo vale com relação aos divorciados recasados: não é por “serem recasados” — i.e., por dividirem apartamento com uma pessoa do sexo oposto que, na declaração de Imposto de Renda, figura como sua dependente — que eles não podem comungar, mas sim por praticarem atos sexuais com alguém que não é o seu cônjuge legítimo. Ou seja: o problema nunca é o que as pessoas “são”, mas sim aquilo que as pessoas “fazem”. Isso é de fundamental importância e precisa ser entendido com clareza por todas as pessoas, para que elas, mais do que “se”, saibam “quando” podem ou não podem comungar. E mais: para que saibam como podem voltar a comungar!

Voltando à pergunta que motivou toda essa digressão: pode comungar quem, sendo divorciada, tem um namorado? À luz do que foi visto até aqui, creio que o leitor já possa responder à pergunta.

Primeiro, tem-se relações sexuais com este namorado? Em caso positivo, então não, não pode comungar, mas — atenção! — não por ser divorciada, e sim pela prática de atos sexuais com uma pessoa que não é o seu cônjuge legítimo. Em mesmíssima situação estaria a pessoa que, sendo solteira e morando sozinha, tivesse um “namorado” com o qual praticasse atos sexuais: também não poderia comungar.

[Na verdade, a situação não é rigorosamente a mesma porque os pecados são diferentes — em um caso, fornicação e, no outro, adultério; no entanto, ambos são pecados mortais contra o Sexto Mandamento, os quais, cometidos, acarretam a perda do estado de graça e a consequente proibição de receber a comunhão eucarística enquanto eles não forem confessados. No que concerne a poder ou não poder comungar, portanto, a situação de ambas as mulheres é a mesma: nem uma nem outra pode se aproximar da Mesa Eucarística antes de se confessar.]

Segundo, se não se tem relações sexuais com este namorado, então é preciso investigar o propósito do “namoro” — se ele visa um casamento futuro, se é um mero companheirismo (e por isso as aspas, sei lá…) –, uma vez que pode haver, na situação, pecados outros que os contra a castidade: é falta de sinceridade com o companheiro ocultar-lhe a circunstância de que é verdadeiramente casada na Igreja Católica, por exemplo, e portanto não pode casar com ele futuramente; ou, por outra, é grave imprudência colocar-se em situação de pecado em um namoro perpétuo, incapaz de evoluir para um Matrimônio. Em suma, se a situação não for muito simples, é preciso analisar criteriosamente o caso concreto, de preferência junto a um diretor espiritual douto e santo, não sendo possível encontrar respostas definitivas e aplicáveis a todos os casos na internet.

O que dá para fazer aqui é expôr os princípios e, explicando a Doutrina Católica, tentar fazer entender o critério — aplicável a todas as pessoas — para poder ou não poder comungar. Tal, repita-se, não é uma característica concedida (ou negada) de uma vez e para sempre, mas sim uma circunstância profundamente dinâmica que deve ser constantemente avaliada por todos aqueles que se aproximam do Santíssimo Sacramento do Corpo do Senhor. Todos precisam comungar, é verdade. Mas também todos precisam se confessar; e é desconcertante que esta verdade não seja dita com tanta frequência quanto a primeira. O problema não é a pessoa “não poder comungar”, o problema é a pessoa estar em pecado mortal — que é o motivo pelo qual não pode comungar. É de uma tragicidade incomensurável que isto seja tão negligenciado.

São Pedro vive em seus vigários

Ontem, 29 de junho, foi a festa de S. Pedro e S. Paulo – por óbvia extensão, a festa do Papa, vigário de Cristo e sucessor de S. Pedro. No Brasil, nós antecipamos a solenidade: domingo último, as nossas igrejas se revestiram de vermelho para celebrar a memória do Príncipe dos Apóstolos. Vermelho – talvez o detalhe se nos passe despercebido – que é a cor do martírio. Celebramos o Papa; e o martírio do Papa.

Aquele quo vadis, Domine? não é apenas uma expressão latina relativamente bem conhecida: tem, em si mesma, toda uma história. Em resumo: explode a perseguição romana contra os cristãos e S. Pedro, bispo de Roma, com medo de ser martirizado, foge da cidade. No caminho tem uma visão: é Cristo que cruza com ele, caminhando no sentido oposto, de volta a Roma, carregando a cruz. “Onde vais, Senhor?” – quo vadis, Domine? -, pergunta o Príncipe dos Apóstolos. “Vou a Roma, ser crucificado no teu lugar”, responde o Salvador. Pedro cai em si. Tomado de coragem, volta à cidade. É martirizado, como temera e desejava. Recebe a palma do martírio. E lega à Igreja a festa de ontem.

A vida se renova e, em certo sentido, a história se repete: a vida dos sucessores de S. Pedro é a vida do próprio S. Pedro. É a fraqueza humana unidade à força do Alto, é a escolha terrível e quotidiana entre as coisas da terra e as coisas do Céu – entre os pensamentos dos homens e os de Deus -, é, em última instância, o martírio. Pedro sofre!, e não se pense que ele não é crucificado.

Cumpre ao Papa Francisco – cumpre a todos os Papas – seguir os passos do Príncipe dos Apóstolos: S. Pedro vive em seus vigários. E a história da Igreja nascente não pode ser resumida ao glorioso ecce Petrus Pontifex Maximus; quem visse Pedro apenas em seu esplendor não teria uma visão completa daquele sobre o qual Cristo prometeu edificar a Sua Igreja. Ser Papa – é o que quero dizer – não significa apenas ser o Vigário de Cristo gloriosamente reinante. Ser Papa, sempre, significa antes de mais nada ser «o martirizado».

Ontem nós celebramos o martírio de S. Pedro – e simultaneamente rezamos pelo Papa. Há uma inegável sabedoria eclesial nesta solenidade litúrgica, que muitas vezes pode nos escapar. Orgulhamo-nos de cantar, ufanos, o «salve, Santo Padre!, vivas tanto ou mais que Pedro!»; mas por vezes nos esquecemos – e, disso, o Papa Francisco tem insistido em nos lembrar praticamente todos os dias – de rezar por aquele que enverga a batina branca do Sumo Pontificado.

Porque – é o que a meditação serena da História Sagrada nos mostra – Satanás quer joeirar Pedro como trigo; e Pedro precisa, sempre, de quem rogue por ele, a fim de que a sua Fé não desfaleça. Nas páginas dos Evangelhos e da Sagrada Tradição foi Cristo quem tomou para Si este papel – no Cenáculo como na Via Appia. Christianus alter Christus; o cristão – todo cristão – é um outro Cristo e, por isso, é aos cristãos que hoje cabe – é a cada um de nós portanto – rezar por S. Pedro, rezar pelo Papa.

Afinal de contas, ele é martirizado…! S. Pedro sofre em seus sucessores, e importa que ele sofra de modo a completar em sua carne o que falta aos sofrimentos de Cristo em favor da Igreja – como ensina o Apóstolo, também ontem celebrado. Porque, no fundo, a escolha não é entre o sofrimento e a tranquilidade: S. Pedro sofria ao fugir de Roma e sofreu no madeiro da Cruz. A escolha cristã – do Papa e de cada um de nós – é entre o sofrimento inútil e o sofrimento agradável a Deus. E isto não é fácil. Importa, portanto, que rezemos com afinco uns pelos outros. Principalmente pelos que mais precisam e aos quais estamos mais obrigados.

É a solenidade de S. Pedro, o Príncipe dos Apóstolos: que ele olhe pelos seus sucessores! E nós, oremus pro pontifice nostro Francisco, sempre. Ele precisa. Ele o pede. Nós devemos.

Ave, ó Cheia de Graça!

É grande o mistério do dia de hoje: um anjo do Céu foi enviado a uma cidade de Nazaré, à porta de uma Virgem, prometida em casamento, para informar-lhe de que o Altíssimo a escolhera para ser Mãe do Seu Filho. É grande o mistério porque conhecemos o resto da história, sim, sem dúvidas: porque sabemos que aquele “Sim” hoje pronunciado foi o início da maravilhosa obra da Redenção que, hoje, alcança-nos e nos torna gratos. Mas, ainda se não o conhecêssemos em seus detalhes, ainda que não estivéssemos olhando em perspectiva, do futuro, ainda assim haveríamos de pasmar diante do quadro da Anunciação.

Ora, é coisa grandiosa um Anjo envolto no esplendor do Paraíso; e, exatamente por isso, é coisa ainda mais grandiosa uma Virgem por ele saudada. Porque o destinatário da mensagem é maior do que o mensageiro; e se é grande o Arcanjo São Gabriel – quem o haverá de negar? -, imagine-se o quão maior não deve ser a Virgem a quem ele foi enviado…! A Regina Angelorum escondida em Nazaré. A Imaculada Conceição resplandecente no mundo que ainda não fora visitado pelo Verbo de Deus. A Santíssima Virgem ao entardecer, recebendo a visita de um mensageiro dos Céus.

Parece grandioso o Paraíso? Imaginam-se cheios de glórias e esplendores os salões da Jerusalém Celeste onde assenta-Se em Seu trono o Deus Onipotente e Três-Vezes Santo? No dia de hoje, no entanto, o Céu inteiro voltava-se para uma pequena cidade de Nazaré e, em sequência, visitavam a Virgem Maria um mensageiro das falanges angélicas e o próprio Espírito Santo de Deus! Quem é esta que recebe tanta deferência do Todo-Poderoso? Quem é esta a quem acorrem, pressurosos, os habitantes celestiais? Quem é esta por quem o próprio Deus deixa a Eternidade para fazer-se Homem?

O nome da Virgem era Maria, diz-nos as Escrituras Sagradas: é uma Mulher, e isso nos enche de profunda reverência e gratidão. Porque Ela – e nenhuma outra – é a predileta do Deus Altíssimo, o qual A culminou com todas as graças do Céu. Porque Ela é o ápice da descendência de Eva, a criatura mais perfeita, a mais bela flor desabrochada fora das muralhas do Éden: Ela elevou a nossa humanidade aos umbrais da Eternidade.

Ave, gratia plena! É a saudação de Deus por meio de um Anjo que, hoje, ressoou em Nazaré. Estas salvas já foram repetidas incontáveis vezes ao longo dos séculos; mas parece que ainda é pouco para o que Ela é. A saudação angélica é o louvor perfeitíssimo à Virgem Maria; mas a perfeição desta Senhora é tamanha que, dizemos sem medo de errar, Ela ainda não foi saudada o suficiente. Unamo-nos ao coro dos anjos e dos santos neste dever de justiça. Repitamos, hoje e a cada dia, com todas as nossas forças, com toda a nossa alma: Ave, ó Cheia de Graça!

Por quê, afinal de contas, um Deus amoroso criou o Inferno?

Recentemente, iniciou-se uma interessante discussão no Deus lo Vult! a respeito da existência real (e eterna) do Inferno, bem como da sua compatibilidade com a noção de um Deus justo e amoroso. Como o assunto vez por outra surge aqui e em outros lugares, vale talvez a pena buscar sistematizá-lo um pouco.

Basicamente, as objeções dos incréus são duas:

a) é totalmente desproporcional impôr uma punição infinita por uma ofensa finita; e

b) um Deus amoroso não poderia torturar eternamente um Seu filho no inferno.

É até possível respondê-las por via direta. Assim, parece-me que a apologética tradicional tem se esmerado por mostrar a) que uma ofensa à majestade infinita de Deus não é “finita” e sim infinita, uma vez que a gravidade da ofensa mede-se, também, pela dignidade do ofendido (e assim, v.g., um mesmo murro que eu desferisse contra três homens diferentes seria gradativamente mais grave conforme o esmurrado fosse um jovem colega de trabalho, um ancião ou o meu pai) – e a justiça exige alguma proporção entre crime e castigo. Do mesmo modo, b) Deus é amor mas é também, em igual – e infinita – medida, justiça, e é precisamente o amor d’Ele que permite aos Seus filhos optarem por O renegar; de modo que, rigorosamente falando, é possível dizer, em alternativa a “Deus condena as almas ao tormento eterno”, que “as almas rejeitam a Deus e se condenam, portanto, à separação definitiva d’Ele”.

Mas fica parecendo que essas coisas não se compreendem perfeitamente quando não se tem uma noção clara dos seus fundamentos: dito de outra maneira, as perguntas acima estão mal-formuladas. O que importa, na verdade, não é que Deus tenha criado o Inferno, e sim que Ele tenha feito homens livres e, portanto, capazes quer de mérito, quer de culpa. Quando se entende isso com todas as suas necessárias consequências, todo o resto do quebra-cabeça se encaixa sem maiores dificuldades intelectuais.

O que é ser «livre»? É poder ser responsabilizado por suas escolhas e, por conseguinte, ser por elas premiado ou castigado. É evidente que a liberdade humana não é “absoluta” porque o seu conhecimento é limitado e a sua vontade é fraca; isso não está em discussão. O fato é que existe alguma liberdade no homem e, portanto, em alguma medida ele é capaz de mérito ou demérito, de prêmio ou de castigo.

 «Mérito» e «culpa» estão aqui empregados no sentido mais direto de um prêmio devido por uma ação moralmente virtuosa e uma punição imposta em consequência de uma atitude moralmente condenável. As duas coisas estão em estreita relação de mútua dependência: uma vez que ambas dependem daquela liberdade fundamental de optar pelo bem ou pelo mal, não é possível haver mérito se não existir possibilidade de culpa (uma vez que a virtude de uma escolha reside precisamente na rejeição à possibilidade de se fazer a escolha oposta – caso contrário, não haveria liberdade verdadeira) e não é possível existir culpa se não houver possibilidade de mérito (vice-versa). Ambas emanam, direta e imediatamente, da liberdade humana: só há mérito/culpa porque há liberdade e, se há liberdade, há também e necessariamente mérito e culpa.

A raiz, portanto, do prêmio e da punição está na liberdade humana, é-lhe inerente e, aliás, faz parte da sua própria definição: ser livre é ser responsável por seus atos, e ser responsável por seus atos é ser capaz de receber, por eles, retribuições positivas ou negativas. Se qualquer um desses três termos – liberdade, mérito e culpa – deixasse de existir, os outros dois cessariam de haver no mesmo exato instante. Ou os três existem, ou não existe nenhum. Por definição. Não dá para ser diferente.

Ora, qual a característica central da Criação de Deus no que concerne ao ser humano? É que Ele nos fez à Sua imagem e semelhança, i.e., fez-nos dotados de inteligência e de vontade, de livre-arbítrio, fez-nos capazes de mérito e culpa. E a liberdade é um bem: por isso que Deus a criou. E é um dom precioso, preciosíssimo: por isso é que foi por amor a nós que Ele no-lo concedeu. E o livre-arbítrio nos foi concedido para que optássemos por Deus. Se há homens que optam livremente por O rejeitar, aí já é uma coisa cuja possibilidade – pela própria natureza da liberdade humana – não pode ser afastada.

E quanto ao Inferno ser eterno? Ora, só há duas opções: ou a capacidade humana de ganhar méritos e acumular culpas – de ser premiado e castigado – cessa em algum momento, ou ela não cessa jamais, et tertium non datur. Se ela cessa em algum momento (v.g. com a morte – é a posição católica), então as pessoas que estão no Paraíso nele não podem mais pecar para o perder e, pela mesma razão, as que estão no Inferno não podem se arrepender para de lá sair. E, se ela não cessa em momento algum, então não deixará jamais de haver culpas a serem expiadas, posto que sempre haverá novos pecados em almas eternamente capazes de pecar. Em qualquer dos dois casos, portanto, o Inferno precisa ser eterno. A diferença é apenas se algumas pessoas ficarão lá de uma vez por todas ou se todas as pessoas ficarão eternamente entrando e saindo de lá. Olhadas as coisas por esse ângulo, não parece que a segunda hipótese seja melhor do que a primeira, não é verdade?

Vez por outra me perguntam por que raios Deus colocou a árvore do conhecimento do bem e do mal no meio do jardim do Éden, onde Adão poderia facilmente alcançar-lhe os frutos. Ora, os pais terrestres mantêm as facas de cozinha e os produtos químicos fora do alcance das suas crianças: por que motivo Deus, Pai Perfeitíssimo, fez exatamente o contrário disso com Adão e Eva? A resposta é que Adão e Eva não eram crianças sem uso da razão, e sim seres humanos inteligentíssimos e extremamente aptos, adultos capazes de auto-determinação. Eles não comeram do fruto proibido como uma criança que se machuca sem querer com uma tomada, mas exatamente ao contrário: o Pecado Original foi cometido livre e deliberadamente, com plena consciência e manifesta vontade. É exatamente por isso que é pecado.

E por quê, ainda, Deus permitiu que os nossos Primeiros Pais tivessem a possibilidade de cometer uma coisa tão horrenda como o Pecado? Por tudo o que já se disse até aqui, a resposta é imediata: porque Deus os amava e, amando-os, queria premiá-los com a participação na Sua Eterna Bem-Aventurança a título de mérito, e para que os homens merecessem (na medida contingente de sua natureza de criatura) a Vida Eterna era necessário que eles pudessem, ao mesmo tempo, rejeitar a oferta de Deus. Liberdade, mérito e culpa existem sempre e necessariamente os três juntos, lembremo-nos. Eis aqui, pois, nascidos ao mesmo tempo, de um mesmo gesto de liberalidade divina, o livre-arbítrio, o Céu e o Inferno.

Num dos primeiros cantos (o terceiro, se a memória não me falha) da Comédia de Dante, o poeta coloca no frontispício da porta que conduz às profundezas do Hades uma inscrição que diz ter sido o Amor Supremo quem criou o Inferno. E foi exatamente isso o que aconteceu: foi por Amor que Deus criou os homens livres, e é da liberdade humana que decorre a possibilidade de amar a Deus ou de O rejeitar, de ir ao Céu ou ao Inferno. O verso do poeta é perfeito, e não significa que um sadismo divino criou, para próprio capricho, arbitrariamente, um lugar para torturar os homens: não, nada disso. Significa, isso sim!, que o Amor queria premiar os homens com a Vida Eterna – e, para que tal fosse possível, por uma necessidade imperiosa daquilo mesmo que essas palavras significam, era necessária esta porta pela qual se pode chegar à morada das dores. Uma vez que se entenda isso, aquelas objeções iniciais deixam de fazer sentido; e, em contrapartida, sem que se compreenda a história completa, nenhuma explicação parcial da justiça do Inferno é capaz de convencer.

O católico e os impostos

O mundo é, definitivamente, cômico. Eu não sei o que foi exatamente que o Papa Francisco falou na homilia da Domus Sanctae Marthae na sexta-feira (20) – no momento em que escrevo essas linhas, a página do Vaticano está atualizada somente até o dia 19 de fevereiro -; mas sei que a manchete sobre a qual as pessoas desde sexta não param de falar (“Papa diz que pagar salários sonegando impostos é “um pecado gravíssimo””) é de um sensacionalismo grosseiro, que tem muito de lugares-comuns ideológicos e muito pouco de fatos jornalísticos. É realmente engraçado: sobre Fé e Moral ninguém quer escutar a Sua Santidade, mas em questões tributárias (!) o Papa Francisco rapidamente ajunta ao redor de si um auditório atento e deferente, ávido por espraiar, mundo afora, as jóias de sabedoria que julga ter logrado garimpar do que pensa ter ouvido o Papa dizer…

[Note-se, aliás, que o mesmo acontecimento, narrado pela mídia católica, não faz nenhuma menção a impostos.]

Houve de tudo: de quem dissesse que os impostos devem ser sempre pagos como se fossem o dízimo recolhido aos cofres do Templo de IHWH até quem falasse que isso era uma estatolatria ímpia com a qual cristãos não deveriam jamais condescender. Os impostos devem ser recolhidos ferreamente, podem ser pagos ao alvitre do contribuinte ou não devem ser repassados ao Estado de nenhuma maneira: cada qual que escolhesse a bandeira que melhor o representasse. No meio do pandemônio, convém fincar dois marcos para além dos quais é certo estar o erro. No espaço compreendido entre esse dois extremos é possível mover-se; já ultrapassá-los, aí não.

Primeiro marco: as autoridades constituídas têm poder conferido pelo próprio Deus para cobrar impostos, os quais portanto devem ser pagosOmnis potestas a Deo: e se isso inclui até mesmo o poder de condenar à morte (cf. Jo XIX, 11), claro está que abarca também o de cobrar impostos. Outra coisa não diz o Apóstolo: “Pagai a cada um o que lhe compete: o imposto, a quem deveis o imposto; o tributo, a quem deveis o tributo; o temor e o respeito, a quem deveis o temor e o respeito (Romanos 13, 7)”.

Para o católico não pode haver dúvidas quanto a isso, por mais que esbravejem os libertários contemporâneos. O Catecismo Romano, escrito em seqüência ao Concílio de Trento – séc. XVI portanto, muitas gerações antes das revoluções burguesas -, já o afirmava. Com a clarividência que sempre lhe é peculiar, a Igreja transpassava o véu do futuro e fulminava, séculos antes de ser divulgada na internet, a ideia de que “imposto é roubo” hoje alardeada. É o contrário. Roubo é não pagar os impostos. Assim consta no antigo Catecismo (III parte, Cap. VIII, 10):

Nesta classe de ladrões se incluem os que não pagam, ou desencaminham, ou aplicam para si mesmos os impostos, fintas, dízimos e outras contribuições devidas aos superiores eclesiásticos e às autoridades civis.

E, respondendo à objeção de que se a vítima fosse rica a subtração de um bem de relativamente módico valor não lhe faria falta e, portanto, tal não seria pecado (qualquer semelhança com o Estado que “já tem dinheiro demais” não parece mera coincidência), o Catecismo fulmina (id. ibid., 23):

Mas que responder, quando por vezes ouvimos os ladrões afirmarem que não cometem pecado algum, roubando de pessoas ricas e abastadas, que disso não sofrem dano algum, e nem chegam a perceber o furto? Na verdade, uma vil e funesta desculpa.

O mesmo se diz, pouco antes, contra os que “tomam, por desculpa, a maior facilidade de levarem um padrão de vida mais confortável” (id. ibid. 22).

Não há, portanto, margem para tergiversar. O Estado não rouba ninguém ao cobrar impostos. Ao contrário, quem rouba é quem nega às autoridades civis aquilo que lhe é devido. Esta e não outra é a Doutrina Católica, da qual não se devem apartar os que têm mais amor à própria alma do que ao dinheiro.

Segundo marco: ninguém é obrigado a recolher impostos às custas da ruína de si próprio e dos seus.

Isso é bastante óbvio. Depreende-se da própria noção de subsidiariedade, segundo a qual não faz sentido prover às necessidades das esferas mais altas ao sacrifício das mais baixas.

Depreende-se, também, do fato de que o Estado, embora tenha legitimidade para promulgar leis, as vezes o faz de maneira ilegítima, se as leis que ele manda observar são injustas. Neste caso, tais leis não precisam ser obedecidas senão na medida de evitar o escândalo ou a desordem (cf. Summa, I-IIae, q. 96, a.4, Resp.). Ora, mas os impostos são instituídos mediante leis. Pode haver situações, portanto, em que seja legítimo deixar de pagar os impostos.

Por fim, já há, no próprio ordenamento jurídico positivo brasileiro, casos em que se reconhece não ser exigível o sacrifício do próprio patrimônio ao Fisco. P. ex.:

O conjunto probatório colhido no curso da instrução processual comprova a ausência de dolo na conduta do réu, restando testificadas as sérias dificuldades financeiras vivenciadas pela empresa contemporaneamente aos fatos esquadrinhados. A inadimplência para com o fisco foi constatada mediante simples fiscalização do INSS, uma vez que todos os descontos estavam devidamente escriturados nos documentos contábeis da empresa, detalhe que bem ajuda a corroborar o juízo de que o réu não se portou dolosamente,

(TRF-5 – APR: 200784010001290 , Relator: Desembargador Federal Vladimir Carvalho, Data de Julgamento: 13/05/2014, Segunda Turma, Data de Publicação: 19/05/2014)

Na hipótese dos autos, em que pese a comprovação da materialidade e autoria delitiva em questão, faz-se necessário reconhecer a incidência da causa de exclusão de culpabilidade por inexigibilidade de conduta diversa, em face das dificuldades financeiras apresentadas pela empresa. 2. Demonstradas, na forma da v. sentença apelada, as dificuldades financeiras vivenciadas pela empresa administrada pela acusada, faz-se necessária a manutenção da sentença a quo que a absolveu da prática do delito previsto no art. 168-A, § 1º, I, do Código Penal, com o reconhecimento da causa de exclusão de culpabilidade da inexigibilidade de conduta diversa. 3. Sentença mantida. Apelação criminal desprovida.

(TRF-1 – ACR: 97176820104013800 , Relator: JUÍZA FEDERAL CLEMÊNCIA MARIA ALMADA LIMA DE ÂNGELO (CONV.), Data de Julgamento: 19/05/2014, QUARTA TURMA, Data de Publicação: 30/09/2014)

Ou seja: do fato de o Estado ter legitimidade para cobrar impostos (falando-se em sentido amplo e genérico) não necessariamente segue que todo e qualquer imposto particular seja legítimo (falando-se, aqui, de cada caso concreto). Do fato de ser necessário pagar impostos, não segue que os impostos precisem sempre ser pagos sob pena de “pecado gravíssimo” – às vezes, aliás, como se mostrou, nem mesmo de crime.

Não se nos entenda mal. É evidente que não é legítimo a cada particular esquadrinhar as leis emanadas pelo Estado para, por conta própria, decidir se são justas ou injustas: isso geraria o caos social. As autoridades legítimas devem gozar de presunção de legitimidade, é lógico. A desobediência civil – mesmo no caso do pagamento de impostos – é para ser invocada com parcimônia, e somente em casos proporcionalmente graves. No entanto, é preciso deixar claro que ela existe. E, ao contrário do que alardeou recentemente certa mídia, não é sempre “pecado gravíssimo” deixar de pagar os impostos de César.

P.S.: Já saiu a meditazione da sexta-feira no site do Vaticano: Digiuno dall’ingiustizia. Não há nenhuma referência direta a impostos. A provável origem da manchete é a seguinte passagem:

«Va bene. E com’è il rapporto con i tuoi dipendenti? Li paghi in nero? Paghi loro il salario giusto? Versi i contributi per la pensione? Per assicurare la salute e le prestazioni sociali?»

Portanto, i) não se trata de “impostos” simpliciter, e sim daquilo que é devido pelo empregador aos seus empregados com vistas a pensões, saúde e prestações sociais – i.e., não se trata do dever do cidadão perante o Estado, mas do homem para com os que dele dependem; e ii) a censura pontifícia é dirigida à sonegação de impostos apenas mediatamente, uma vez que o que se condena na verdade é «quello che non fa giustizia con le persone che dipendono da lui». E a “justiça” ao empregado, definitivamente, não é a Previdência Social do estado brasileiro! Que não pensem que os deveres cristãos se esgotam em remeter os pobres aos tentáculos de Leviatã. Se a generosidade dos patrões não sobrepujar a dos burocratas de Brasília, ser-lhes-á difícil herdar o Reino dos Céus…

Na Sexagésima, saiu o semeador a semear sua semente

Todo mundo certamente travou contato, em algum momento do antigo Segundo Grau, durante os seus estudos da literatura barroca brasileira, com aquele que é o mais famoso dos sermões do Pe. António Vieira: o Sermão da Sexagésima. O que nem todo mundo sabe – eu, mesmo, só o vim saber muito tempo depois de velho… – é o que significa “Sexagésima”.

Surpresa: a Sexagésima é um domingo específico do ano, escondido dos católicos pela Reforma Litúrgica de 1969. Imediatamente antes da Quaresma – a Quadragesima – há três domingos: na ordem, do mais distante para o mais próximo da Quarta-Feiras de Cinzas, os domingos da Septuagésima, da Sexagésima e da Quinquagésima.

Mais especificamente, o Domingo da Sexagésima é o último domingo antes do de Carnaval. Ou seja, foi ontem.

Ontem, na Santa Missa, eu ouvi a leitura do Evangelho que o pe. António Vieira leu naquele longínquo ano de 1655. A Wikipedia lusófona, aleatoriamente, diz que o tema do sermão – a parábola do semeador – foi extraído «duma passagem bíblica escolhida para a ocasião». Puro devaneio. A passagem não foi “escolhida” coisa nenhuma, ela é a leitura prescrita pelos livros litúrgicos para o domingo anterior àquele que antecede a Quarta-Feira de Cinzas: o domingo da Sexagesima. Não é meditação sobre uma passagem escolhida ao acaso ou à conveniência. É sermão concernente ao tempo litúrgico em que ele é pregado.

Não achei a data exata do sermão; a referida enciclopédia colaborativa diz, tão-somente, “março de 1655”. Não parece que seja verdade. Podemos aplicar os algoritmos para calcular o dia da Páscoa; com isso, descobrimos que, naquele ano, ela caiu no dia 28 de março. O domingo da Sexagesima, assim, foi no dia 31 de janeiro – e é esta, portanto, a data mais provável em que o conhecido sermão foi pela primeira vez pregado. É até possível que ele, após escrito, tenha sido burilado nas semanas posteriores e tenha recebido a sua forma definitiva – a escrita final, que nos chegou – em meados de março mesmo; mas não tem o menor cabimento imaginar que o sermão da Sexagésima retumbou nas paredes da Capela Real portuguesa em março de 1655 – quase à Páscoa! Seria como dizer que um Sermão de Natal fora proferido no início de fevereiro.

Ontem eu ouvi de novo o milenar Evangelho: «Ecce exiit qui seminat, seminare». Na verdade, ouvi-o diretamente em português, naquela que é quiçá a mais elegante das traduções bíblicas para o vernáculo de Camões: «Saiu o semeador a semear sua semente». A aliteração é deliciosa; a cadência da frase, serpentinando, parece mostrar que o semeador segue em zigue-zague, titubeando, andando de lá para cá – e isso explica a semente caindo ao acaso na estrada, na terra seca, entre os espinhos. Se eu tivesse que escolher uma feliz tradução dos Evangelhos, tal seria este versículo.

Mas o original é sempre o original, e eis porque ele não deve ser jamais posto de lado: há uma belíssima exegese, do próprio Pe. António Vieira, no mesmo sermão citado, que é impossível de ser feita a partir do versículo em português que nos acostumamos a ouvir. Assim ressoou um dia na Capela Real:

A definição do pregador é a vida e o exemplo. Por isso Cristo no Evangelho não o comparou ao semeador, senão ao que semeia. Reparai. Não diz Cristo: saiu a semear o semeador, senão, saiu a semear o que semeia: Ecce exiit, qui seminat, seminare. Entre o semeador e o que semeia há muita diferença. Uma coisa é o soldado e outra coisa o que peleja; uma coisa é o governador e outra o que governa. Da mesma maneira, uma coisa é o semeador e outra o que semeia; uma coisa é o pregador e outra o que prega. O semeador e o pregador é nome; o que semeia e o que prega é acção; e as acções são as que dão o ser ao pregador. Ter o nome de pregador, ou ser pregador de nome, não importa nada; as acções, a vida, o exemplo, as obras, são as que convertem o Mundo.

E é por isso que vale a pena o esforço para preservar o latim litúrgico mesmo nas leituras das Escritura Sagradas, é por isso que vale a pena perscrutar a sabedoria dos antigos: muito se perde ao simplesmente verter uma língua n’outra, e a pior forma de ignorância é a de quem acha que já sabe. Aquele antigo adágio do traduttore, traditore! tem mil modos de demonstrar o seu acerto. E, em se tratando da palavra de Deus, não se pode fazer pouco caso dos tesouros que ela tem para nos ofertar. Não podemos deixar que o vernáculo quotidiano oculte as pedras preciosas das Sagradas Escrituras que os antigos já nos garimparam.

Por que não deixar “as pessoas fazerem o que quiserem”?

Um leitor fez o seguinte comentário aqui no Deus lo Vult!:

eu sou a favor do livre arbítrio.. quem quiser abortar, aborta! acho que o pai e a mãe tem que decidir se querem ou não viver uma vida infeliz cuidando de uma criança que obviamente será inútil e morrerá quando o sentimento por ela já estiver imenso. larguem de hipocrisia e deixem as pessoas fazerem o que quiserem.

Ora, é completamente sem sentido apelar para o “livre-arbítrio” quando se está falando de eliminar uma vida humana inocente. Todo mundo é a favor do livre-arbítrio, é lógico; mas defender determinado emprego do livre-arbítrio que redunde em dano injusto a um bem de um terceiro, aí já é coisa que não faz sentido algum.

Apliquemos o mesmo “racio-símio” a outros tipos penais previstos no ordenamento brasileiro:

  • eu sou a favor do livre arbítrio..[.] quem quiser assaltar, assalta! Acho que o assaltante tem que decidir se quer ou não viver uma vida infeliz (…) larguem de hipocrisia e deixem as pessoas fazerem o que quiserem.
  • eu sou a favor do livre arbítrio..[.] quem quiser sequestrar, sequestra! Acho que o sequestrador tem que decidir se quer ou não viver uma vida infeliz (…) larguem de hipocrisia e deixem as pessoas fazerem o que quiserem.
  • eu sou a favor do livre arbítrio..[.] quem quiser desviar dinheiro público, desvia! Acho que o corrupto tem que decidir se quer ou não viver uma vida infeliz (…) larguem de hipocrisia e deixem as pessoas fazerem o que quiserem.
  • sou a favor do livre arbítrio..[.] quem quiser cometer qualquer crime, que cometa! Acho que o criminoso tem que decidir se quer ou não viver uma vida infeliz (…) larguem de hipocrisia e deixem as pessoas fazerem o que quiserem.

O “argumento”, como se pode ver, é completamente insustentável. A gente só pode advogar o direito à liberdade quando o seu exercício estiver direcionado para coisas em si mesmas boas ou pelo menos neutras. Antes, portanto, de se dizer “a favor do livre arbítrio” para o aborto, é preciso demonstrar que o aborto, considerado em si mesmo, é moralmente bom ou, pelo menos, indiferente. Sem enfrentar essa questão em primeiríssimo lugar, “hipocrisia” é querer aplicar aos opositores a pecha de estarem querendo violar o sacrossanto livre-arbítrio de outrem. Aqui, não!

[A mesma situação, aliás, poderia ser também resolvida simplesmente dizendo: ok, que cada um tenha o livre-arbítrio de fazer o que quiser, contanto que arque com as conseqüências de suas atitudes. Assim, o assaltante continua com o livre-arbítrio de assaltar, correndo com isso o risco de ser preso; o assassino, continua com o livre-arbítrio de assassinar, contando com o risco de ser morto em legítima defesa por sua vítima ou por um terceiro que por acaso o surpreenda no ato da realização do homicídio; e, o abortista, continua com o livre-arbítrio de abortar, ficando por conta disso sujeito às conseqüências penais que decorrem da sua conduta.

Se não o dizemos, contudo, é porque nos parece que esta visão conota uma espécie de “jogo de soma zero”, como se dispôr-se a sofrer a sanção penal de um crime fosse algo análogo a pagar o preço devido por um bem: como se transformasse o crime, assim, em uma transação normal e socialmente aceitável.

Acreditamos, ao contrário, que sofrer as consequências jurídicas de um crime não é, de nenhuma maneira, o “preço justo” que transforma o cometimento do crime em um negócio jurídico normal. As condutas criminosas devem ser evitadas, ponto; e não  é correto dizer que elas possam ser cometidas mediante o pagamento de x reais de multa ou y anos de reclusão. Parece-nos, assim, que meramente defender o livre-arbítrio para o mal, desde que com suas consequências, é um erro de perspectiva. Há que se distinguir a liberdade em abstrato do exercício concreto dessa liberdade: condenar algumas modalidades deste não equivale, sob lógica nenhuma, a negar aquela.]

Sobre a «criança que obviamente será inútil e morrerá quando o sentimento por ela já estiver imenso»… o que dizer diante de tamanha barbaridade? É evidente que tal conclusão é fruto unicamente da mentalidade doentia do autor do comentário; é patente que ele não tem o menor suporte fático, nenhum dado empírico a lhe autorizar. Porque o que nos contam as pessoas que tiveram filhos deficientes – mormente anencéfalos – é coisa completamente distinta. Busquem-se, a título de informação, as histórias de Marcela de Jesus ou Vitória de Cristo que já foram contadas neste mesmo blog.

Mas, mesmo assim, olhar unicamente para o sentimento dos pais é um erro de proporções. Em uma escala valorativa minimamente decente, o direito à vida da criança – mesmo deficiente! – ganha do direito a “bons sentimentos” dos pais. E, se não se pode exigir de ninguém que enfrente como homem as adversidades que a vida lhe trouxer, pode-se ao menos (e, aliás, deve-se!) impedi-lo de violar gravemente os direitos de outrem em reação àquelas adversidades. Eximir-se de fazê-lo é decair na mais horrenda barbárie, onde o que vale é a lei do mais forte e onde o estado de ânimo de alguém o autoriza a tudo para fazer valer a própria vontade, independente de quem seja pisoteado neste processo.

É lógico que ter um filho com uma deficiência grave é algo devastador. No entanto, matar o próprio filho por ele ser gravemente deficiente é de uma desumanidade atroz. É possível, sem dúvidas, levantar uma infinidade de argumentos para justificar, in casu, a atitude desesperada do pai que opta pelo assassínio intrauterino do seu filho doente. O que não dá é para pleitear o direito universal e inalienável ao extermínio pré-natal das crianças deficientes.

A nós não cabe senão continuar lutando

“Forçar conversões” é uma expressão que não tem o menor sentido. O ato de Fé é por definição um ato livre (este é aliás o fundamento positivo da liberdade religiosa) mediante o qual o intelecto, obedecendo à vontade movida pela graça, adere àquelas verdades reveladas por Deus e assim propostas pela Igreja. Não é portanto possível forçar ninguém a se converter; o que se consegue é, no máximo, um simulacro exterior sem nenhum compromisso de assentimento interno – e que, portanto, não é uma conversão verdadeira.

Ninguém pode ser, portanto, coagido a abraçar a Fé Católica: esta é uma verdade que, a despeito dos equívocos históricos por vezes cometidos por reis e imperadores, sempre integrou o patrimônio intelectual da Igreja. No entanto, os contornos do que se pode chamar aqui de «coação» são às vezes tênues. Sabe-se que ela não necessariamente precisa ser física, podendo se apresentar sob a forma de coação moral ou psicológica: isto é, é possível – note-se que digo apenas possível – que o consentimento interior de alguém que sofre intensa pressão social (digamos, de familiares) esteja tão viciado quanto o de um judeu que se fazia cristão-novo unicamente por medo do degredo.

O termo proselitismo tem, atualmente, a conotação negativa de uma pregação insistente cujo intento é coagir o destinatário a abraçar determinada mensagem. Basta notar o quanto a expressão em geral está ligada a determinada espécie de pregação protestante (geralmente neopentecostal ou da assim chamada teologia da prosperidade). A despeito de o uso do termo estar totalmente desvirtuado de sua acepção etimológica original (“prosélito” é meramente um neo-converso, sem nenhuma conotação de sectarismo ou coisa parecida), não se pode ignorar o fato de que, no seu emprego coloquial, o termo carrega uma não negligenciável carga negativa.

Não foi outra a razão pela qual Bento XVI, quando esteve no Brasil, disse que «[a] Igreja não faz proselitismo. Ela cresce muito mais por “atração”: como Cristo “atrai todos a si” com a força do seu amor» (Missa de abertura do CELAM13 de Maio de 2007). A rigor, a Igreja faz prosélitos sim; contudo – e este o sentido da declaração pontifícia -, Ela os faz livremente, e não por coação de nenhuma natureza.

O mesmo Bento XVI, dois dias antes, usava o termo exatamente neste sentido que se está aqui expondo: referiu-se às «pessoas mais vulneráveis ao proselitismo agressivo das seitas» e chamou a atenção para «certas formas de proselitismo, frequentemente agressivo» (Encontro com os bispos do Brasil11 de maio de 2007). Não há portanto margem para dúvidas: no discurso católico contemporâneo, o termo designa certa pressão psicológica empregada com vistas a dobrar a vontade de um terceiro e coagi-lo a “abraçar” determinado credo religioso – e não o mero fato de ajudar alguém a se tornar católico.

A conversão é ainda e sempre necessária. Por incontornável exigência filosófica, portanto, são também necessários os meios para a facilitar: chame-se-lhes proselitismo, apostolado, apologética. Todos esses, contudo, no seu sentido original e próprio, distantes do teor pejorativo que hoje detêm. Stat rosa pristina nomine. A nós não cabe senão continuar lutando. Independente do nome que dêem à batalha.

O julgamento de um bom cristão

Um leitor do Deus lo Vult! fez a gentileza de entrar em contato com o blog, enviando o seguinte comentário:

De: Edeorande Faria

Boa tarde Jorge. Estou com 70 anos de idade e tive minha vida como católico, como tantos outros. Confesso para você que nunca entendí nada de religião, a não ser o quer os padres falavam durante as missas, pois elas eram sempre a mesma coisa.. Aprendi a falar amém a tudo que se dizia. Até que um dia um amigo me perguntou sobre a Inquisição Católica, onde aqueles que não seguiram o Catolicismo foram torturados e queimados na fogueira, considerados como hereges. Gostaria se póssível, e sem enrolação, que você me esclarecesse sobre esta questão. Lí sobre a vida de grandes ex-católicos, como Martinho Lutero, Giordano Bruno, John Huss, esses dois ultimos queimados na fogueira pela Igreja Católica, por ordem do Papa, e eu comecei a me perguntar: será que eles estavam errados?? Quase que a totalidade dos evangélicos do mundo todo, são todos egressos do Catolicismo, será que estes milhões, também estão equivocados, e você esta certo??? Lí sua crítica e julgamento (coisa que um bom cristão não deve fazer) sobre o Espiritismo. Tenho vários amigos espíritas que nunca criticaram e nem fazem qualquer tipo de julgamento em relação ao nosso próximo, como nos ensinou Jesus. Fazem um trabalho junto as comunidades carentes, e pregam o amor ao próximo, como Nosso Senhor Jesus Cristo nos ensinou, e Deus como nosso Criador. Penso que ao invés de você se acomodar em suas críticas ao Espiritismo( mesmo porque você não irá conseguir convencer os espíritas com os seus argumentos religiosos, uma vez que os recursos desta Doutrina é Ciência, Filosofia e tem um aspecto religioso) Você ainda é muito jovem e aparentemente inteligente, para ficar atacando as crenças de quem quer que seja…..Ficarei imensamente feliz em receber sua resposta, dentro dos padrões da boa educação, que eu sei que você tem . Fique com Deus…..

Por partes:

1. Há – inclusive neste mesmo blog – extensa bibliografia a respeito da Inquisição Católica, mesmo em português: há este livro de história do Direito, este documentário da BBC, estas páginas apologetas do pe. Devivier, há (sobre a Idade Média mais amplamente) a obra de medievalistas como Régine Pernoud e Jacques Le Goff. Para quem se interessa sobre o tema, a quantidade de material atualmente disponível é, graças a Deus, farta e diversificada – já bastante afastada dos preconceitos iluministas anacrônicos que, infelizmente, ainda assombram o Ensino Médio e as redes virtuais anti-católicas do séc. XXI.

2. No mérito, e de maneira bastante superficial, sim, houve pessoas que foram torturadas e queimadas. A tortura era forma de interrogatório amplamente aceita à época e, a fogueira, modalidade de pena capital universalmente praticada. A Igreja não inventou nem a tortura e nem a fogueira. (Leia-se, à guisa de desabafo, este texto.) Condescendeu com algumas características do seu tempo, tão-somente. Foi a primeira a estabelecer limites – primeiro em seus próprios procedimentos, depois inspirando as legislações civis – à violência estatal. Construiu o Ocidente que, hoje, Lhe vira as costas e, atacando-A de maneira injusta e absurda, precipita-se de modo cada vez mais acelerado à barbárie e ao caos.

“Inquisição”, aliás, é termo bastante ambíguo no que concerne à variedade de fenômenos históricos diversos que soem ser agrupados sob o mesmo nome. Houve, por exemplo, a Inquisição Romana, as inquisições ibéricas, as inquisições protestantes e os suplícios por matéria religiosa iniciados pelos tribunais seculares – embora só seja responsável por uma parcela ínfima dessa taxa de mortalidade, é à Igreja Católica que costuma ser atribuída toda a carnificina…

Ainda, fazer juízo de valor a posteriori sobre fatos ocorridos em sociedades distintas das em que nos encontramos hoje é crasso equívoco metodológico que, em história, recebe o nome de anacronismo. Já é evitado, parece-me, na Academia; mas urge que o seja também nos debates de internet. Contribuamos com este nobre propósito.

3. Martinho Lutero, Giordano Bruno, John Hus (e outros) foram hereges notórios e agitadores sociais da pior estirpe. Pode-se até questionar se a pena capital não lhes fora uma punição excessivamente dura; não é contudo possível condenar, de maneira acrítica, a reprovação social que as atitudes de cada um deles eles receberam dos seus contemporâneos.

De Lutero (cujo antissemitismo tem até uma página na Wiki espanhola), por exemplo, vale lembrar que a sua vocação para fazer deboche religioso da Fé alheia é coisa da qual pouco se fala nos dias de hoje. De Giordano Bruno, frade dominicano, diga-se apenas que foi católico que (aparentemente…) se fez protestante e depois voltou a ser católico, esgotando a benevolência de cada país e confissão religiosa pelos quais passou, culminando este seu itinerário tumultuoso – que pouco se parece com o de um “mártir da ciência” – com uma morte na fogueira mais pelo seu hermetismo do que por conta de uma suposta pregação heliocêntrica. E, de John Hus, registre-se que a sua história está entrelaçada com a de Wyclif – este cuja tradução da Bíblia não goza de prestígio sequer entre os protestantes, e a cuja defesa Hus consagrou as suas energias mesmo à custa da indisposição com os poderosos do seu tempo. Mais uma vez: pode-se até questionar se tais medidas não foram exageradas. Mas não se pode chamar tais pessoas de «grandes ex-católicos», a menos que “grandes” aqui se refira às lendas posteriormente reconstruídas em torno a eles, e não à visão que deles tinham os seus contemporâneos – católicos ou não.

4. Não se afere a verdade ou falsidade de uma doutrina pelo critério quantitativo: se fosse assim, errado estaria Cristo, e não a multidão que, diante de Pilatos, gritou para que este libertasse Barrabás e crucificasse o Filho de Deus. Sim, os milhões de evangélicos do mundo estão equivocados, porque não podem estar corretos ao mesmo tempo eles e os milhões de católicos que crêem naquilo de que eles desdenham e repudiam aquilo em que eles põem fé. Ao menos um desses conjuntos de “milhões” há de necessariamente estar errado, por necessidade imperiosa da lógica – por que não podem ser os evangélicos? Há, porventura, de serem necessariamente os católicos os equivocados?

Diga-se, no entanto, que uma coisa é a doutrina protestante estar errada, e outra coisa completamente diferente é o protestante concreto ser um falsário mau-caráter. Do fato de alguém abraçar uma doutrina equivocada não segue que seja, ele próprio, uma pessoa “maligna” ou algo do tipo: pode perfeitamente estar no erro em maior ou menor grau de boa-fé, e este julgamento compete a Deus somente fazer, no dia do Juízo. Nós, católicos, podemos e devemos dizer que tal ou qual doutrina está errada; o grau de responsabilidade de cada qual na adesão a esta doutrina errada, contudo, é matéria reservada ao Justo Juiz n’Aquele Dia.

São, assim, dois erros opostos a evitar: lançar o infeliz ao inferno por conta do erro objetivo que ele comete, e negar-se a apontar o erro objetivo por não ser possível lançar ninguém no inferno. Cumpre distinguir uma coisa da outra. Não sei da sorte eterna de absolutamente ninguém (a não ser, claro, dos santos canonizados pela Igreja): do acerto ou equívoco de uma determinada doutrina (v.g. da que nega a Imaculada Conceição da SSma. Virgem), no entanto, tenho o dever de saber – e todo mundo o tem, na medida da sua capacidade.

5. O espiritismo é uma falsa doutrina que afasta as almas de Cristo, uma vez que afasta as pessoas da Igreja por Ele fundada e, portanto, impede-lhes de obter a Graça que Cristo mesmo distribui mediante os Sacramentos da Sua Igreja. Eles podem perfeitamente fazer bonitos trabalhos sociais junto a comunidades carentes, podem pregar a paz e a concórdia e podem fazer outro sem-número de obras naturalmente boas, que Deus decerto há de levar em conta no dia do Seu julgamento; contudo,  e infelizmente, afastam-se a si próprios e aos outros da fonte de toda a graça que é a Igreja, e isso Deus também haverá de ter em consideração.

Sobre isso valem todas as considerações feitas acima. Do fato do espiritismo ser uma doutrina errônea e terrivelmente errônea, inspirada por Satanás para perder as almas, não segue que cada espírita em concreto seja, ele próprio, um Anticristo endemoniado. É possível abraçar mesmo uma doutrina satânica como o espiritismo em boa fé; a responsabilidade subjetiva de cada um, mais uma vez, compete a Deus e a mais ninguém julgar.

Sim, a verdade ou a falsidade objetiva das doutrinas compete à Igreja (não a mim e nem a ninguém) julgar. Foi o próprio Cristo que dispôs assim. Ou aceitamos isso com todas as suas consequências, ou não somos cristãos. É simples assim.

6. Não é portanto (e por fim) verdade que os cristãos não podem julgar. Eles não só podem como devem fazê-lo, a fim de não serem enganados pelas falsas doutrinas que medram na história, pelo joio que o Inimigo semeia no campo do Senhor. Todo mundo cita aquele «Não julgueis» dos Evangelhos, mas se esquece de citar o complemento que se lhe segue na mesmíssima linha: «Não julgueis pela aparência, mas julgai conforme a justiça» (Jo VII, 24). Não é portanto verdade que estejamos proibidos de julgar; o que não podemos é julgar conforme as aparências, mas sim perscrutar as coisas como elas realmente são para julgar conforme a justiça.

Ninguém pode, portanto, julgar o espiritismo ou o protestantismo ou qualquer outra doutrina pela aparência de bondade que os seus seguidores porventura ostentem (digamos, pelo auxílio material prestado a comunidades carentes, ou pela leitura dedicada das Sagradas Escrituras); antes, é mister julgar segundo a justiça, i.e., segundo o que a coisa realmente é. E quem diz o que as coisas realmente são é a Igreja de Nosso Senhor, “coluna e sustentáculo da Verdade” (1Tm 3, 15), longe da qual não se pode pretender seguir a Jesus Cristo, como o Papa Francisco tem repetido incontáveis vezes.

Afaste-se, portanto, essa história de que um bom cristão “não pode julgar” – a qual aliás sempre inclui, em si mesma e contraditoriamente, um julgamento àqueles que se censuram por estarem “julgando”… – e precisa se abster de apreciar as doutrinas que o mundo lhe apresenta (e se chocam com Aquela que ele recebeu do próprio Cristo mediante os Apóstolos). Não dá para não julgar. Quando alguém diz (v.g.) que Cristo não é Deus, tal sentença entra em rota de colisão com a Fé Católica que afirma ser Ele Deus e Homem verdadeiro, e portanto repudiar como errônea – julgar falsa – esta afirmação é uma necessidade lógica. Mais uma vez, isso nada diz a respeito da boa ou má fé do mensageiro. Mas a mensagem, esta sim, precisa ser analisada e valorada: e isso, que todo bom cristão deve fazer – a fim de não ser enganado e nem deixar no erro os seus próximos -, outra coisa não é que julgar.

A Igreja universal e as Igrejas particulares

Creio na Igreja, Una, Santa, Católica e Apostólica – assim reza o Símbolo Niceno-Constantinopolitano que professamos nas nossas missas. Uma dúvida pode ocorrer a quem se demore a meditar um pouco sobre o assunto: ao que parece, «Igreja» pode significar duas realidades (interdependentes, sem dúvidas, mas a rigor distintas) com as quais os católicos travam contato em sua vida espiritual. Uma, a Igreja particular, concreta, à qual territorialmente pertencem; outra, a Igreja universal, “Católica” propriamente, da qual fazem igualmente parte todos os católicos de todas as partes do mundo. A uma Igreja particular pode pertencer um católico e, outro, não; à Igreja Universal, contudo, pertencem todos os membros (católicos, evidentemente) de toda e qualquer Igreja particular do orbe.

Consideradas as coisas dessa maneira, poderia ser tentador pensar que a Igreja universal fosse formada pela reunião de todas as Igrejas particulares – as quais, em seu conjunto, constituiriam a Única Igreja de Cristo. A relação entre Igreja Universal e Igreja Particular seria, assim, uma relação todo-parte. A ordem de constituição da Igreja seria “de baixo para cima”, do mais concreto ao mais abstrato, do particular ao genérico: das Igrejas particulares para a Igreja universal.

Este assunto foi abordado recentemente no blog do pe. Hunwicke, e a resposta do conhecido sacerdote é taxativa: na verdade, quem vem primeiro é a Igreja Universal. Ela vem primeiro temporalmente, porque já nasce Una em Pentecostes; vem primeiro teologicamente, porque é Ela que é o Corpo Místico de Cristo; e, por fim, vem primeiro ontologicamente, porque as Igrejas particulares provêm d’Ela e não o contrário. Não é exato, portanto, afirmar que a Igreja universal seja a soma das Igrejas particulares: são estas, na verdade, que são realizações d’Aquela.

Não se trata de mero preciosismo: o tema tem relevância, uma vez que (ainda) ganha espaço uma eclesiologia que pretende “construir” a universalidade da Igreja a partir das especificidades das Igrejas particulares. Assim, por exemplo, poderia haver espaço para certo desacordo – mesmo em temas morais ou doutrinários… – entre o Bispo de uma Igreja particular e o Papa, Pastor da Igreja universal. É a antiga tese de Kasper esposada pelo pe. Libânio (p. 127): a “precedência ontológica e temporal” da Igreja universal sobre a particular seria uma “eclesiologia (…) anterior ao Vaticano II”. A perspectiva na qual “a Igreja local está no centro de modo claro e decisivo”, por sua vez, seria a “virada eclesiológica do Concílio Vaticano II”.

Sabe-se bem que essas tentativas de opôr o Vaticano II ao (dito) Magistério pré-conciliar carecem de fundamento: são, sempre, retórica vaniloquente de falsos mestres, cuja propriedade para ensinar a Doutrina Católica é sempre inversamente proporcional aos arroubos com os quais alardeiam as maravilhosas novidades teológicas das últimas décadas. Neste caso, contudo, é ainda mais fácil demonstrar a falsidade da tese: há um documento da Congregação para a Doutrina da Fé, assinado pelo então Card. Ratzinger e aprovado por São João Paulo II, que a refuta específica e pormenorizadamente.

Trata-se da Communionis notio, que vale uma leitura na íntegra, e da qual cito (destaques no original):

  • «Por isso, a Igreja universal não pode ser concebida como a soma das Igrejas particulares nem como uma federação de Igrejas particulares. Ela não é o resultado da sua comunhão, mas, no seu essencial mistério, é uma realidade ontologicamente e temporalmente prévia a toda Igreja particular singular» (n. 9).
  • «Na verdade, ontologicamente, a Igreja-mistério, a Igreja una e única segundo os Padres precede a criação e dá à luz as Igrejas particulares como filhas, nelas se exprime, é mãe e não produto das Igrejas particulares» (id. ibid.).
  • «O Bispo é princípio e fundamento visível da unidade na Igreja particular confiada ao seu ministério pastoral, mas para que cada Igreja particular seja plenamente Igreja, isto é, presença particular da Igreja universal com todos os seus elementos essenciais, constituída portanto à imagem da Igreja universal, nela deve estar presente, como elemento próprio, a suprema autoridade da Igreja: o Colégio episcopal “juntamente com a sua Cabeça, o Romano Pontífice, e nunca sem ele”» (n. 13).

Não há portanto espaço para tergiversar: até os termos são os mesmos. Ao contrário do que diz o pe. Libânio (e outros), portanto, a Igreja universal ainda «é uma realidade ontologicamente e temporalmente prévia a toda Igreja particular singular», e isso é a única eclesiologia “vigente” – é a boa eclesiologia “moderna” da Igreja “pós-conciliar”, redigida pelo então prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé (depois Papa) e chancelada por São João Paulo II. É assim que a Igreja  entende-Se a Si mesma. É esta a verdadeira eclesiologia católica. Qualquer coisa que se oponha a isso deve ser prontamente rechaçada como doutrina espúria e já condenada pelo Magistério – inclusive recente! – da única e verdadeira Igreja de Nosso Senhor: a única que pode, com propriedade, dizer ao mundo como Se compreende.