Papa Francisco e os ateus, filhos de Deus

A motivação deste post me vem de duas fontes distintas. Uma diz que o Papa “confundiu” pro multis e pro omnibus; a outra, que o Papa afirmou a heresia da salvação universal. Aos que tenham se sentido confusos com estes artigos (ou outros análogos), oferecemos este contraponto, esperando que possa ser útil.

Quanto ao primeiro texto, a resposta é imediata: uma coisa é a redenção objetiva e, outra, a redenção subjetiva. Aquela diz que o Santíssimo Sangue de Nosso Senhor derramado na Cruz do Calvário é suficiente para a salvação de todos os homens; esta, que – não obstante – os méritos de Cristo são eficazes apenas para os que aceitam voluntariamente o Sacrifício Vicário de Cristo, por meio da Fé e dos Sacramentos. A primeira é o pro omnibus e, a segunda, o pro multis. Afirmar a precisão histórica desta no contexto das palavras da Consagração que Cristo ensinou aos Seus apóstolos na Última Ceia não é (nem de longe!) a mesma coisa que sustentar ser aquela herética em qualquer contexto em que seja empregada. Aliás, é o próprio Bento XVI quem o afirma, em carta enviada há pouco mais de um ano à Conferência Episcopal Alemã (grifos meus):

Isto põe em evidência um elemento muito importante: a tradução «por todos» de «pro multis» não era, de facto, simples tradução, mas uma interpretação. Esta tinha seguramente fundamento, e continua a tê-lo; contudo é mais do que uma tradução, é já interpretação.

[…]

Porventura o Senhor não morreu por todos? O facto de Jesus Cristo, enquanto Filho de Deus feito homem, ser o homem para todos os homens, ser o novo Adão faz parte das certezas fundamentais da nossa fé. Sobre este ponto, queria apenas recordar três textos da Escritura. Deus entregou seu Filho «por todos»: afirma Paulo na Carta aos Romanos (Rm 8, 32). «Um só morreu por todos»: diz-se na Segunda Carta aos Coríntios, ao falar da morte de Jesus (2 Cor 5, 14). Jesus «entregou-Se a Si mesmo como resgate por todos»: está escrito na Primeira Carta a Timóteo (1 Tm 2, 6). Mas então devemos, ainda com maior razão, pôr-nos a questão: Se isto é assim claro, porque é que na Anáfora Eucarística está escrito «por muitos»? O motivo é que a Igreja tomou esta formulação das narrações da Instituição no Novo Testamento. Ela diz assim por respeito à palavra de Jesus, para se Lhe manter fiel até mesmo nas palavras. O respeito reverencial pela própria palavra de Jesus é a razão de ser da formulação da Anáfora Eucarística.

Portanto, não há absolutamente nenhum problema em afirmar que Cristo morreu «por todos» nós. Aliás, o próprio texto da Montfort indicado no Blog do Angueth explica a diferença entre redenção objetiva e redenção subjetiva, donde se vê que a estranheza do professor manifestada em seu artigo, data venia, é incompreensível.

Quanto ao segundo texto, digo o seguinte:

Primeiro, que não há problema algum em afirmar que Nosso Senhor “ampliou os horizontes” dos discípulos. É aliás óbvio que Ele fez isso, posto que a alternativa é pretender que os Apóstolos sempre souberam tudo e Nosso Senhor nada teve a lhes ensinar! Claro que Cristo corrigiu muitas das idéias erradas dos discípulos e mesmo dos Apóstolos, os Evangelhos estão cheios de exemplos disso. Absurdo (e aliás herético) seria afirmar que Nosso Senhor incutiu idéias erradas nos Apóstolos, e não que Ele corrigiu os pensamentos errados que os Apóstolos tinham.

Segundo, que os católicos jamais mataram em nome de Deus, pelo menos não nos eventos históricos que costumam ser evocados como exemplo disso (v.g. Inquisição e Cruzadas). Aliás, parece-me claro que o Papa não está pensando na história da Igreja ao fazer esta crítica, porque ele vai mais fundo e diz que isso «é simplesmente uma blasfêmia». Ora, como o Antigo Testamento está repleto das guerras de Israel e das prescrições divinas para a morte dos corruptores da religião judaica, é claro que o Papa Francisco não pode estar chamando de «matar em nome de Deus» coisas como a Guerra Justa ou a pena de morte legitimamente aplicada aos falsificadores da Religião Verdadeira. A alternativa – outra vez absurda – é sustentar que o Papa estaria dizendo que o Antigo Testamento é «simplesmente uma blasfêmia», e a hipótese de que o líder máximo da Igreja Católica possa ter em tão repugnante conta [mais da] metade do livro sagrado da sua religião simplesmente não faz sentido para ninguém que pretenda manter intacto seu senso de realidade.

Ao invés, existe uma certa religião que – aí sim – é conhecida por “matar em nome de Deus”: trata-se do Islã, cuja Jihad faz até hoje tantas vítimas entre aqueles que não aceitam prostrar-se diante de Allah e seu profeta, e portanto é muito mais razoável supôr que foi a esta que o Papa Francisco dirigiu as suas imprecações. Considerando isso, e dado que hoje em dia não existe nenhum indivíduo ou grupo católico que pretenda (mesmo em teoria!) matar não-católicos em nome de Deus (*), a hipótese de que o Papa esteja se referindo a um comportamento inexistente nos dias de hoje unicamente para desmoralizar a Igreja Católica (!) carece de verossimilhança.

[(*) O IRA, que é o exemplo que poderia ser citado para negar a minha afirmação, não se encaixa aqui pois i) não conta com o apoio da Igreja; ii) usa o elemento religioso – isso quando o usa… – unicamente como pretexto para disfarçar conflitos políticos; e iii) não faz parte do contexto próximo ou remoto da homilia pontifícia. No entanto, mesmo admitindo que o Papa pudesse estar pensando no Exército Republicano Irlandês quando condenou o «matar em nome de Deus», ainda assim as suas colocações seriam legítimas e pertinentes e a) nem autorizariam “retroagir” sua condenação para abarcar também eventos católicos do passado e b) nem deixariam de valer como crítica às outras religiões que ainda hoje fazem guerra «em nome de Deus».]

Terceiro, que Deus morreu por todos os homens sim, como foi explicado acima, e que o Sangue d’Ele é suficiente para redimir o mundo inteiro sim, embora isso naturalmente não signifique que todas as pessoas vão inexoravelmente se salvar sem fazer nada para isso.

Quarto, que a filiação de Deus é dupla: por um lado recebemos a filiação divina pelo Batismo sim e não sem ele, mas por outro todos os seres humanos – mesmo os ateus – somos filhos de Deus por conta da nossa inteligência e nossa vontade, que são a imagem de Deus em nós. Assim nos ensina São Pio X no Terceiro Catecismo da Doutrina Cristã (negritos meus):

285) Por que podemos nós dizer que somos filhos de Deus?

Somos filhos de Deus:

1º porque Ele nos criou à sua imagem e nos conserva e governa com a sua providência;
2º porque, por especial benevolência, Ele nos adotou no Batismo como irmãos de Jesus Cristo e co-herdeiros, juntamente com Ele, da eterna glória.

Portanto, mesmo os ateus são filhos de Deus, porque Ele os criou à Sua imagem e os conserva e governa com Sua providência. Destarte, o Papa não disse nenhuma novidade – apenas repetiu um ensinamento tradicional da Igreja – quando lembrou que, em certo sentido, mesmo os que não crêem são filhos de Deus.

Por fim, quinto, que é verdadeiramente espantoso não se ter percebido o mais importante desta homilia, que é o seguinte: quando o Papa diz que «todos nós temos o dever de fazer o bem» e que isso «não é uma questão de fé, mas um dever», ele está lançando um duro ataque contra a ditadura do relativismo e explicando que não é porque fulano ou sicrano crê ou deixa de acreditar que ele pode se considerar eximido de seguir os ditames morais que valem para todos! Ora, num mundo em que os hipócritas clamam o direito de casar homem com homem porque não são católicos e em que dizem à Igreja para que Ela não imponha a Sua proibição ao aborto àqueles que não comungam da Fé Católica, afirmar que até os ateus têm o dever moral de fazer o bem é um duro golpe no ateísmo mesmo e o sepultamento definitivo do relativismo moral que grassa nos dias de hoje.

Este ensinamento não é só verdadeiro: é tremendamente oportuno. Se não percebem isso aqueles que por um lado louvam o Papa por ter alegadamente aberto o Céu aos ateus e por outro aqueles que o criticam por supostamente ter negado a Igreja fundada por Cristo, é porque estão mais preocupados com os seus pré-julgamentos do que com a compreensão serena e desapaixonada daquilo que o Vigário de Cristo tem para nos dizer.

Papa Francisco, exorcista

A Sala de Imprensa da Santa Sé disse hoje que o Papa Francisco não realizou um exorcismo no último Domingo. O Pe. Lombardi se refere à cena abaixo, ocorrida após a Missa de Pentecostes que o Papa Francisco celebrou na Praça de São Pedro (via Pe. Paulo Ricardo).

papa-francisco-exorcismo

Há também um vídeo que mostra em detalhes o encontro do Papa Francisco com o jovem:

Como explicar? Bom, é certo que o Papa não realizou nenhum “exorcismo”, se pelo termo entendemos o rito específico que se encontra no Titulus XI do Rituale Romanum. No entanto, a libertação do demônio não é um efeito rígido apenas decorrente ex opere operato do Ritual elaborado para este fim. O exorcismo não é um sacramento e portanto não pode ser comparado a estes: se é verdade que a remissão do Pecado Original dá-se no Batismo e somente por meio do Batismo (para sermos rigorosos, incluídos aqui tanto o Batismo Sacramental quanto o de Sangue e o de Desejo), que tem a sua forma própria [= “eu te batizo em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo”] sem a qual não existe o Sacramento, o mesmo não pode ser dito da luta espiritual contra o Diabo.

A rigor, qualquer espécie de influência demoníaca (da infestação à possessão) pode ser vencida à força de orações, penitências, jejuns, sacramentos. Ora, a própria oração a São Miguel Arcanjo é também chamada de “pequeno exorcismo” (ou “Exorcismo breve”), e mesmo os fiéis leigos recorrem a ela com freqüência. Até a “Celebração dos Exorcismos” reformada traz algumas «Súplicas que os fiéis podem utilizar privadamente no combate contra os poderes das trevas». Nada impede, portanto, que uma pessoa (mormente um sacerdote) se engaje em luta espiritual contra o diabo sem que seja necessário seguir à risca as rubricas do Ritus exorcizandi obsessos a daemonio. E isso, ao menos em sentido latu, pode ser chamado de exorcismo.

Foi o que aconteceu com o Papa Francisco? Parece que sim, mas é lógico que não se pode dizer com certeza. A diferença entre os cumprimentos do Papa aos demais doentes e a sua oração sobre este jovem específico salta aos olhos (veja-se, para ficar mais claro, o vídeo com a Missa completa), mas isto é muito pouco para diagnosticar à distância uma possessão demoníaca sem possibilidade de erro. Em todo caso, a imagem é belíssima, com o Vigário de Cristo crescendo com autoridade sobre o jovem atormentado. Ao mandamento de “curai os enfermos”, Cristo imediatamente acrescentou o “expulsai os demônios” (cf. Mt 10, 8). Ao que parece, na dificuldade de fato de distinguir entre ambos os casos, o Papa Francisco preocupa-se em suplicar tanto por um quanto por outro, tanto pela saúde do corpo quanto pela da alma, sem se preocupar com os juízos de censura que as pessoas farão dos seus atos.

A JMJ e as feridas da Igreja Militante

Certo comentarista veio aqui no blog unicamente para chamar a JMJ de “antro de perdição”, fazendo referência a esta postagem de um outro blog que traz algumas imagens, concedamos, impudentes e imprudentes do evento ocorrido em Madrid em 2011. Contra isto eu faço questão de responder antes de qualquer outra coisa: antros de perdição são certos ambientes virtuais ditos católicos, ora bolas!

Estive em Madrid em 2011 e, portanto, falo daquilo que eu vi. E o testemunho de valor e coragem que eu vi aqueles milhões de jovens darem ao mundo não se mede pelo comprimento das roupas que usavam no sufocante verão espanhol. Aliás, é preciso estar totalmente alienado da realidade para jogar fora um evento católico das proporções da JMJ por conta de meia dúzia de fotos mal-comportadas, e isso por si só testemunha o quanto faz mal certo tradicionalismo imbecil de internet e o quanto é fundamental que se afastem dele aqueles que se preocupam com a saúde da própria alma!

Estando às vésperas da Jornada do Rio de Janeiro, há não muito escrevi aqui a minha admiração por esse evento católico. E mantenho tudo o que disse: «não consigo deixar de ver essas tentativas de acabar com a credibilidade da Jornada (…) como um levante orquestrado das forças do Inferno contra um evento católico que está dando frutos para a glória de Deus e a salvação das almas». À época, eu falava dos que queriam introduzir na JMJ elementos estranhos ao Catolicismo, mas isso se aplica também a estes – mesmo católicos – que, munidos de uma visão parcial e preconceituosa do que seja o evento, ao invés de rezarem pelo bom êxito da iminente vinda do Papa ao Brasil preferem empregar o seu tempo em denegrir a Jornada Mundial da Juventude.

Os jovens que vão à Jornada não são o exército impoluto de paladinos em armadura cintilante desfilando solenemente n’alguma festividade comemorativa dos áureos tempos da Cristandade. É óbvio que eles não são e aliás nem se propõem a sê-lo. Ao contrário, são justamente os pecadores confusos destes tempos desgraçados em que vivemos, e é precisamente isto que faz com que a ação divina na JMJ resplandeça com tanta clareza que é preciso ser cego para não ver.

Reproduzo abaixo a foto que coloquei aqui em 2011, em um relato sobre a JMJ de Madrid ao qual remeto quem quiser uma segunda opinião sobre o evento, bem diferente desses vaticínios pessimistas dos neo-fariseus virtuais. A foto retrata, como falei então, um embate verdadeiro e concreto, físico até, entre inimigos da Cruz de Cristo e peregrinos da JMJ. E não se trata de um fato isolado, muito pelo contrário: coisas assim foram de uma monótona regularidade ao longo de todos aqueles dias. Na Espanha, respirava-se este clima de tensão.

Miles de personas demandan un estado laico ante la visita papal

Eu não vou nem perguntar onde é que estavam os “cruzados virtuais” (*) enquanto os jovens católicos da JMJ recebiam agressões de verdade em ruas de verdade; nem vou questionar onde se encarna melhor o espírito cruzado católico, se na menina que resiste em público a evidentes demonstrações de odium Fidei ou na blogosfera que se compraz em divulgar imagens desabonadoras de outrem. Seria até covardia fazer tais comparações. Vou somente apontar para um pequeno “detalhe” que certas pessoas – na sua ânsia paranóica por roupas curtas a denunciar – não conseguem ver:

Que um católico experiente e exercitado na prática das virtudes suporte perseguições e dê testemunho público de Cristo é coisa esperada e bem lógica até. Que o façam jovens moral e doutrinariamente confusos, é coisa inaudita que exige uma explicação. Que palavras de amor ao Papa saiam dos lábios piedosos de católicos de alma pura é natural; que brotem do coração de jovens imodestas é que é desconcertante. Que dê admiráveis mostras de Fortaleza quem medita diariamente o Sermão da Montanha é coisa banal e simples; que sejam dignos da última Bem-Aventurança (**) jovens que provavelmente não seriam sequer capazes de citá-la corretamente é fato assombroso. Que façam guerra ao mundo, a Satanás e à carne os membros das Ordens de Cavalaria católicas é a ordem natural das coisas; que lute e vença cruzadas o catolicismo medíocre é que é extraordinário.

Não há nada de excepcional nos jovens que vão à JMJ, e é precisamente nisso que reside a excepcionalidade do evento. É provável que os peregrinos católicos não sejam moralmente muito melhores do que os jovens “do mundo” junto aos quais vivem, e é justamente nesta desproporção entre as suas virtudes humanas habituais e o testemunho de Fé que naqueles dias conseguem dar que a mão de Deus se faz evidente, quase palpável. Malgrado os seus muitos defeitos, a maior parte daqueles jovens tinha algum amor à Igreja (e os que não tinham, facilmente se deixavam contagiar pelos demais), imperfeito sem dúvidas (***), mas – e isto é o importante – que Deus não rejeita se Lhe é entregue com pureza de intenção. E, por mais difícil que isso seja de entender, é fato que Deus consegue fazer maravilhas com qualquer coisa (por pequena que seja!) que Lhe ofertemos.

Aqueles jovens que estavam em Madrid estavam longe de serem perfeitos – eu sei, eu vi! Mas há mais catolicismo nas ruas espanhóis apinhadas de peregrinos do que nas amargas rodas de internet que parecem viver de espalhar o desânimo (se justo ou injusto tanto faz). Os murmuradores não suportam o cheiro purulento das feridas da Igreja Militante, mas se esquecem de que Deus faz mais com um leproso que vai à guerra do que com um batalhão de homens saudáveis que prefere ficar jogando conversa fora nos salões palacianos.

* * *

(*) Que adoram xingar muito nas redes sociais a lastimável situação da Igreja, rasgando as vestes e deplorando o miserável estado do catolicismo contemporâneo confortavelmente sentados em casa.

(**) Bem-aventurados sereis quando vos caluniarem, quando vos perseguirem e disserem falsamente todo o mal contra vós por causa de mim (Mt V 11).

(***) E mesmo assim muito acima da média: nenhum peregrino foi lá fazer campanha pelo aborto ou pela liberação da camisinha, por exemplo.

As melhores homilias do Papa Francisco

O Papa Francisco tem feito homilias sem sombra de dúvidas excelentes. Mas, na minha opinião, as suas melhores homilias são as que não se encontram disponíveis no site do Vaticano. Explico: o Papa tem o hábito (que eu absolutamente não sei dizer se era compartilhado pelos seus predecessores) de improvisar breves homilias em todas as missas que ele celebra, mesmo durante os dias de semana, mesmo diante de um grupo pequeno de pessoas. Como elas são feitas de improviso, os órgãos de imprensa da Santa Sé não as recebem previamente e, portanto, não podem divulgar-lhes o conteúdo pelos canais de comunicação oficiais da Igreja. Temos acesso a fragmentos delas somente mediante as testemunhas auriculares dessas celebrações, às quais por vezes os órgãos de imprensa conseguem ter acesso.

Trago três exemplos disso que estou falando; nenhuma das datas abaixo consta no calendário (oficial) das atividades do Santo Padre [p.s.: a homilia do dia 23 de abril está disponível aqui; além disso, o site do Vaticano está disponibilizando uma compilação das meditazioni do Papa Francisco, «a cura de L’Osservatore Romano», que é o que de mais próximo temos dos “textos oficiais” dessas homilias do Papa].

06 de abril de 2013, via Sandro Magister, com tradução do Ecclesia Una, que eu já mencionei en passant aqui: «A fé não se negocia. Esta tentação sempre existiu na história do povo de Deus: cortar um pedaço da fé, ainda que não seja muito. Mas a fé é assim, tal como a recitamos no Credo. É necessário superar a tentação de fazer o que todos fazem, não ser tão, tão rígidos, porque precisamente daí começa um caminho que acaba na apostasia. De fato, quando começamos a destroçar a fé, a negociá-la, a vendê-la à melhor oferta, começamos o caminho da apostasia, da não fidelidade ao Senhor».

23 de abril de 2013, via Agência Ecclesia: «[E]ncontrar Jesus fora da Igreja não é possível (…) [O Papa Paulo VI dizia ser] uma dicotomia absurda querer viver com Jesus sem a Igreja, seguir Jesus fora da Igreja, amar Jesus sem a Igreja. (…) Não se pode acreditar em Jesus sem a Igreja, di-lo o próprio Jesus».

22 de abril de 2013, via Avvenire, com tradução livre minha: «Qualquer um de vocês poderia dizer: ‘Padre, o senhor é um fundamentalista!’. Não, simplesmente é isto que Jesus disse: ‘Eu sou a Porta’, ‘Eu sou o Caminho’ para nos dar a vida. Simplesmente. É uma porta bela, uma porta de amor, é uma porta que não nos engana, não é falsa. Sempre disse a Verdade. Há talvez caminhos mais fáceis, mas são enganosos, não são verdadeiros: são falsos. Somente Jesus é o Caminho».

São somente três exemplos que porventura chegaram-me ao conhecimento; quantos outros não existem, sobre os quais eu não fico sabendo nada? E essas sentenças são bastante significativas para compreendermos o pensamento do Papa: ora, uma homilia oficial é aconselhada, redigida (por vezes através de ghost writers…), revisada, criticada, enviada para o Papa, traduzida, etc.; enquanto que nessas homilias espontâneas nós temos o Papa Francisco falando totalmente por conta própria, de improviso, sem influências (boas ou más) de ninguém!

Por isso, faço coro a este pedido do Rorate Caeli: alguém deveria transcrever essas homilias e colocá-las (sob uma seção menos formal da página do Papa, que fosse) no site do Vaticano! Não se compreende que bem pode advir da divulgação apócrifa das palavras de Sua Santidade, nem tampouco que mal causaria a veiculação integral desses ensinamentos tão belos (e tão atuais) do Bispo de Roma.

P.S.: Atendendo aos nossos pedidos, eis as «Meditazioni del Santo Padre Francesco nelle Messe quotidiane celebrate nella cappella della Domus Sanctae Marthae».

O que fazer com as ambigüidades do Vaticano II?

Alguém me pergunta (na verdade, simplesmente anuncia em tom triunfal):

Essa vai para os conservadores populares:

Walter Kasper admite aquilo que todos os católicos verdadeiros já sabiam:

O documentos do Vaticano II foram de propósitos escritos de forma ambígua!

Refere-se a este texto: Cardeal Kasper admite ambigüidade intencional nos textos do Concílio Vaticano II. A declaração do purpurado é a seguinte (grifos do Fratres):

Em muitos lugares, [os Padres Conciliares] tiveram que encontrar fórmulas de concessões, em que, frequentemente, as posições da maioria estão localizadas imediatamente próximas àquelas da minoria, projetadas para limitá-las. Assim, os textos conciliares em si têm um enorme potencial de conflito, sendo uma porta aberta à recepção seletiva em uma ou outra direção.” (Cardeal Walter Kasper, L’Osservatore Romano, 12 de abril de 2013)

O que dizer?

De minha parte, eu só posso constatar que esta “confissão” veio com cinqüenta anos de atraso e apenas repetiu o que todo mundo já sabia. É claro que os textos do Concílio Vaticano II “têm um enorme potencial de conflito” e é claro que isso foi proposital; achavam o quê, que foi “por acaso”? Parafraseando Dawkins, pensavam que fora obra de The Blind Papermaker?

Dizer que há “fórmulas de concessões” nos textos do Vaticano II equivale a dizer que há sol ao meio dia, é o mesmo que descobrir a pólvora. É sério que precisávamos das declarações do Kasper para perceber esta obviedade? Se não houvesse possibilidade de interpretar equivocadamente os textos do Concílio, por qual absurda razão, por exemplo, a Lumen Gentium precisaria de uma “Nota explicativa prévia”, conhecida de qualquer pessoa que já tenha alguma vez na vida folheado o documento?

Aquela história do “a gente fala de maneira diplomática aqui e depois do Concílio tira as conclusões que nos forem convenientes” não é anedota, é fato documentado. Um papel com essas confissões bem pouco honestas caiu nas mãos de Paulo VI durante o Concílio, que então percebeu estar sendo enganado e chorou amargamente. Mais uma vez, isso não é conhecimento esotérico e nem segredo de estado conhecido apenas dos “católicos verdadeiros” (sic), isso é um dado jornalístico: o The Rhine Flows into the Tiber é um livro de 1967!

Ninguém jamais negou ou desconheceu aquilo que o Kasper disse ao Osservatore: o que negamos, e visceralmente, é que isso justifique a sedição contra a Igreja de Cristo. É claro que os textos do Vaticano II se prestam a diversas interpretações, e é exatamente por isso que ninguém – nem os progressistas e nem os rad-trads – pode prescindir do Magistério vivo da Igreja para lhes precisar o sentido correto!

A assistência do Espírito Santo não garante o esplendor da mais perfeita e conveniente expressão latina lapidar. A única coisa que Ele garante é que a Igreja não vai ensinar heresias – o que, aplicado ao Vaticano II, significa simplesmente que todo e qualquer texto do Concílio é passível de interpretação ortodoxa. Somente isso. Não significa que não há interpretações heréticas, não significa que a ortodoxia está sempre expressa da melhor maneira possível e não significa nem mesmo que, dado um excerto, a interpretação ortodoxa é a mais imediata. A única garantia que temos é a de que ela existe. C’est fini.

Ontem o Papa Francisco falou sobre o Vaticano II. Muitos acharam que ele fez uma crítica aos rad-trads, interpretação que é bastante aceitável. Mas eu penso que a verdadeira crítica é mais profunda, é ao modernismo estéril que, há mais de um século, vem envenenando a Igreja de Deus. As palavras do Santo Padre foram as seguintes:

Mas depois de 50 anos, fizemos tudo o que o Espírito Santo nos disse no Concílio? Não. Comemoramos este aniversário, erguemos um monumento, mas desde que não incomode. Nós não queremos mudar, e o pior: alguns querem voltar atrás. Isto é ser teimoso, significa querer domesticar o Espírito Santo; ser tolo, de coração lento”.

Ora, qualquer pessoa há de convir que os últimos cinqüenta anos foram o palco das maiores aberrações doutrinárias, litúrgicas, morais e pastorais que já envergonharam a Igreja de Cristo ao longo dos seus dois mil anos de história! Se o Papa, tendo isso diante dos olhos, diz que nós não fizemos “tudo o que o Espírito Santo nos disse no Concílio”, então só pode ser porque o Concílio não disse nenhuma dessas barbaridades que muitos passaram as últimas décadas realizando. Fosse diferente, o Papa teria afirmado com alegria que na maior parte dos lugares se fez, sim, a vontade do Espírito Santo de Deus. Mas ele não o fez. A declaração dele é sombria, mais até do que qualquer outra de Ratzinger sobre o assunto da qual eu me recorde agora; este pelo menos costumava destacar os bons frutos que haviam sido postos em prática, quando o Papa Francisco nem isso faz.

E, na verdade, “voltar atrás” sempre foi exatamente a maior característica dos taumaturgos que, desde a década de 60, assombram os pobres católicos com o famigerado “espírito do Concílio”. Ora, a “chance” histórica do modernismo foi justamente entre o final do século XIX e o início do XX: a janela de oportunidade dessa heresia era quando ela ainda não fora condenada pela Igreja. São Pio X, graças a Deus, fulminou-a na Pascendi (sabiam que esta encíclica está traduzida para o português no site do Vaticano? Nunca pararam para pensar que deve haver alguma razão para isso?) – e, de lá para cá, os modernistas são todos velhos que perderam o bonde da história e estão empenhados na utopia de fazer o relógio voltar para trás, transportando-os de volta ao tempo em que era pelo menos canonicamente lícito pregar as falsas doutrinas que a Igreja condenou sob Giuseppe Sarto. Em matéria eclesiástica, voltar atrás é desprezar as definições da Igreja, é insistir em discutir questões que já foram encerradas, é aferrar-se ao erro e se recusar a ouvir o Espírito Santo Paráclito, o Spiritus Veritatis que convence o homem do que é justo e verdadeiro.

Concluamos. Quem acompanha as palavras do Papa Francisco percebe que ele não é muito de falar sobre o Vaticano II. A curiosidade, creio, não permite maiores extrapolações. A meu ver, isso significa simplesmente que o Papa não o idolatra e nem o despreza, não sente necessidade nem de tudo justificar à luz dele e nem de evitá-lo como a uma moléstia contagiosa. O Santo Padre, afinal, sabe que a mensagem da Igreja é a mensagem do Evangelho, e é a esta verdade tão antiga e tão nova que – aí sim! – devem se referir todos os textos magisteriais, de S. Pio X ou de Paulo VI, do Vaticano II ou do Concílio de Florença. Independente de em que ânimo tenham sido escritos. Independente das traições que porventura tenha sofrido a Esposa de Cristo, uma certeza nós temos conosco para sempre: contra Ela não prevalecerão as portas do Inferno. E a força dessas palavras é maior do que todo o poder de Satanás; conhecendo-as, nós não temos o direito de tratar com suspeita a Igreja Santa de Deus.

Papa Francisco contra o livre-exame protestante das Escrituras Sagradas

“Porque tudo o que se refere à interpretação da Sagrada Escritura está submetido, em última instância, à Igreja, que tem o mandato e o ministério divino de conservar e de interpretar a palavra de Deus. […] A interpretação das Sagradas Escrituras não pode ser somente um trabalho científico individual, mas sempre deve ser confrontada, inserida e autenticada com a tradição viva da Igreja. Esta norma é decisiva para precisar a relação correta e recíproca entre a exegese e o Magistério da Igreja. Os textos inspirados por Deus foram confiados à Comunidade dos crentes, à Igreja de Cristo, para alimentar a fé e guiar a vida da caridade” – Papa Francisco, obviamente repetindo a Doutrina Católica tradicional sobre o assunto, in “Papa Francesco alla Pontificia Commissione Biblica, 12 aprile 2013”, apud Fratres in Unum.

“Esta declaração, na linha de Bento XVI, não deve agradar os protestantes ou católicos contestatórios, como o suíço Hans Küng, que reivindicam o direito de interpretar livremente as escrituras” – cômica análise da mídia laica sobre as palavras do Papa, in G1.

“…” – comentários dos arautos da “hermenêutica da ruptura pontifical” entre Bento XVI e o Papa Francisco sobre o assunto.

A verdadeira Igreja dos pobres

Estão particularmente excepcionais os dois últimos artigos de D. Fernando Rifan sobre a Igreja e os pobres. Valem uma leitura na íntegra; à guisa de destaque, trago os seguintes excertos:

1. A Igreja dos pobres: «Jesus, nascendo e vivendo pobre, não discrimina ninguém: no seu presépio vemos pobres e ricos, pastores e reis. Todos são bem-vindos ao berço do “príncipe da paz”. Com seu exemplo, ele prega a humildade e não a soberba, a caridade e não a inveja, o desapego e não a ambição, a paz e não a luta de classes. A desigualdade, quando não é injusta, é natural e normal, podendo ser suavizada e superada pela prática das virtudes cristãs. Amemos e consolemos os pobres, os preferidos de Deus, sem lançarmos no coração deles a amargura da inveja e ambição».

2. A riqueza dos pobres: «A riqueza dos pobres é a Igreja, sua rica doutrina e sua liturgia. As igrejas, os templos sagrados, são a casa dos pobres. Lá eles podem entrar sem serem impedidos. Lá eles podem se sentir bem, contemplar belas pinturas e arquiteturas, vasos sagrados, esplêndidas imagens, como não poderiam fazer em nenhuma outra casa ou palácio. Ali eles podem, pois é a casa deles. […] [O então cardeal Ratzinger assim se expressava sobre a beleza da Liturgia:] A riqueza litúrgica não é riqueza de uma casta sacerdotal; é riqueza de todos, também dos pobres, que, com efeito, a desejam e não se escandalizam absolutamente com ela. Toda a história da piedade popular mostra que mesmo os mais desprovidos sempre estiveram dispostos instintiva e espontaneamente a privar-se até mesmo do necessário, a fim de honrar, com a beleza, sem nenhuma avareza, ao seu Senhor e Deus».

Nestes nossos tempos em que uma certa retórica já putrefata de pauperismo teológico parece querer se aproveitar de algumas peculiaridades do Papa Francisco para se insidiar até mesmo em meios católicos, convém esconjurar o fantasma decrépito com a clareza da Doutrina da Igreja e a solidez da realidade dos fatos. Sim, é possível amar e defender os que nada têm sem excomungar os que têm alguma coisa; sim, é possível honrar a Deus com o que temos de melhor sem espezinhar os pobres e os pequeninos no caminho. Isto, aliás, é o Cristianismo de vinte séculos. A luta de classes tão tagarelada nos nossos dias é apenas uma excrescência pseudo-intelectual de cento e poucos anos para cá, é somente (mais) uma ideologia falida que perdeu o bonde da história e cujos asseclas parecem ter certa dificuldade patológica em compreender que já passou, e já vai tarde.

“Levai adiante o testemunho de que Jesus está vivo” – Papa Francisco

P.S.: A tradução oficial já se encontra disponível no site da Santa Sé.

[…]

Um outro elemento: nas profissões de Fé do Novo Testamento, como testemunhas da Ressurreição, são lembrados apenas os homens, os Apóstolos, mas não as mulheres. Isto porque, de acordo com a Lei Judaica daquele tempo, as mulheres e as crianças não podiam prestar um testemunho digno de fé, crível. Nos Evangelhos, ao contrário, as mulheres têm um papel primário, fundamental. Que possamos colher [aqui] um elemento a favor da historicidade da Ressurreição: se fosse uma invenção, no contexto daquele tempo, [quem a inventou] não a vincularia ao testemunho das mulheres. Ao contrário, os Evangelistas narram simplesmente aquilo que aconteceu: são as mulheres as primeiras testemunhas. Isto [nos] diz que Deus não elege segundo os critérios humanos: as primeiras testemunhas do nascimento de Jesus são os pastores, gente simples e humilde; as primeiras testemunhas da Ressurreição são as mulheres. E isto é belo. Isto é um pouco da missão das mulheres: das mães, das mulheres! Dar testemunho aos filhos, aos netos, que Jesus está vivo, é o Vivente, é ressuscitado. Mães e mulheres, avante com este testemunho! Para Deus importa o coração, quando estamos juntos a Ele, se somos como as crianças que confiam. Mas isto nos faz refletir também sobre como as mulheres, na Igreja e no caminho da Fé, tiveram e têm ainda hoje um papel particular na abertura das portas ao Senhor, no segui-Lo e no comunicar a Sua Face, porque o olhar da Fé tem sempre necessidade do olhar simples e profundo do amor. Os Apóstolos e discípulos tiveram mais dificuldade para acreditar. As mulheres não. Pedro corre ao Sepulcro, mas pára no Túmulo Vazio; Tomé precisa tocar com as suas mãos as feridas do Corpo de Jesus. Também no nosso caminho de Fé é importante saber e sentir que Deus nos ama, não ter medo de amá-Lo: a Fé se professa com a boca e com o coração, com a palavra e com o amor.

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Deixemo-nos iluminar pela Ressurreição de Cristo, deixemo-nos transformar por Sua força, a fim de que também através de nós os sinais da morte no mundo dêem lugar aos sinais de vida. Vi que há tantos jovens nesta praça: ei-los! A vós eu digo: levai convosco esta certeza: o Senhor está vivo e caminha a nosso lado na vida. Esta é vossa missão! Levai convosco esta esperança. Ancorai-vos a esta esperança, [com] esta âncora que está no Céu: segurai firme esta corda, ficai ancorados e levai adiante a esperança. Vós, testemunhas de Jesus, levai adiante o testemunho de que Jesus está vivo e isto nos dará esperança, dará esperança a este mundo tão envelhecido pelas guerras, pelos males, pelo pecado. Avante, jovens!

Papa Francisco,
Catequese da Quarta-Feira, 03 de abril de 2013

Também é orgulho ser sozinho

Um dos conselhos mais importantes de São Paulo no Novo Testamento é aquele “quem julga estar de pé, cuide para que não caia” que encontramos na primeira carta aos Coríntios. Não obstante, e infelizmente, sempre se encontrou na história da Igreja quem fizesse pouco caso dessa tão fundamental exortação, o que já levou muitas almas à mais terrível ruína.

São Luís de Montfort lamenta n’algum lugar do Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem os tantos cedros do Líbano que já caíram miseravelmente por terra devido à imprudência de se julgarem auto-suficientes. Não é sem razão que a espiritualidade católica sempre insistiu na importância de combater não apenas os pecados externos, mas também (e principalmente) os internos, dentre os quais o orgulho ocupa um lugar de infeliz proeminência. Enganar-nos-íamos se pensássemos que este vício anda sempre lado-a-lado com a arrogância manifesta! O orgulho é primariamente interior. Pode perfeitamente reinar no coração de um homem e, ao mesmo tempo, passar despercebido de todos os que convivem com ele.

Decerto não era nisso que pensava a Florbela Espanca quando o escreveu, mas há muita sabedoria naquele seu verso que diz “[q]ue também é orgulho ser sozinha”. A idéia de que somos mais especiais de que os nossos irmãos é sedutora, mas é terrivelmente falsa. A concepção de que podemos fazer alguma coisa de grande por nós mesmo é enganadora – e quantos não caem neste canto-de-sereia! A vaidade de desbravarmos o nosso próprio caminho nesta vida, desprezando a caminhada dos que nos são próximos, já conduziu muitas almas para o abismo.

Aqui é preciso tomarmos cuidado para não cairmos em engano; sem dúvidas cada pessoa tem o direito e até mesmo o dever de escrever a própria história, e o insubstituível protagonismo de cada um na sua própria salvação é uma necessidade que não nos convém nunca esquecer. Não obstante, por meio de um desses aparentes paradoxos que perfazem a complexidade humana, a nossa dimensão individual é inseparável da comunitária e, se é verdade que temos o dever de trilhar o nosso próprio caminho, não é menos verdade que ele deve estar inserido na teia de relacionamentos que o Altíssimo teceu para a nossa existência.

De modo particular, a nossa salvação – individual – passa necessariamente por aquela comunidade de fiéis que Deus estabeleceu no mundo para conduzir os homens à Bem-Aventurança Eterna; passa, necessariamente, pela Igreja de Cristo. Rejeitar a companhia daquelas almas ao lado das quais a Divina Providência determinou que caminhássemos neste Vale de Lágrimas, longe de ser um sadio protagonismo próprio das grandes almas, é orgulho mesquinho que se revela um horrendo sinal de perdição. Querer construir por conta própria um caminho que conduza aos Céus é loucura e, na verdade, é somente a velha tentação original apresentada sob uma nova roupagem. O verdadeiro e legítimo protagonismo que precisamos assumir é o de conferir as marcas da nossa individualidade ao caminho que Nosso Senhor Jesus Cristo já abriu para nós, e não o de buscar por conta própria um outro caminho para o Céu. A Igreja não é uma estrada para o Paraíso ao lado de tantas outras, muito pelo contrário: é o terreno seguro somente dentro do qual é possível ao ser humano abrir o seu caminho para Deus. Podemos ensaiar os nossos próprios passos sim, e temos total liberdade para fazê-los da nossa própria maneira – mas somente dentro do palco que Deus preparou para que fosse possível haver dança. Esforcemo-nos, sim, para salvar a nossa alma, e o façamos com todas as particularidades que nos são próprias; mas somente dentro da Igreja, criada por Deus para que pudesse existir salvação no mundo.

Eu pensava nessas coisas quando li aquela triste notícia segundo a qual Magdi Cristiano Allam, ex-muçulmano batizado por Bento XVI, anunciou ter deixado a Igreja Católica. Eu me lembro do seu Batismo, em uma vigília de Páscoa, no coração do Vaticano, diante de todas as câmeras do mundo; lembro-me de como fiquei feliz com o ex-muçulmano, cujo batismo no Sábado de Aleluia parecia uma resposta a uma das Grandes Orações da véspera. Lembro-me de que – insensato! – pensei que, este, a Igreja não haveria de perder, pois se convertera já na idade adulta e após experimentar os falsos credos, e estas conversões soem ser mais profundas e definitivas.

Infeliz de mim, que estava rotundamente engando! O converso abandonou a Igreja. Por que o fez? Por conta daquilo que ele chamou de “relativismo religioso” e, particularmente, pela suposta legitimação do Islam como verdadeira religião por parte da Igreja Católica. Aqui as coisas começam a ficar mais claras. É óbvio que o Islamismo não é “verdadeira religião”, porque a única religião verdadeira é aquela fundada por Nosso Senhor Jesus Cristo, Deus e Homem Verdadeiro. É óbvio que a Igreja jamais “legitimou” o Islam e nem o poderia fazer jamais, porque isso seria trair a Si mesma. Então, do que é exatamente que Magdi Allam está reclamando?

Arriscamos uma resposta. O que o incomoda é a – na visão dele – leniência da Igreja em enfrentar o Islam, o que lhe tira a paz é perceber que a Igreja não combate o islamismo com o denodo que ele julga necessário. Em uma palavra, o seu problema, aparentemente, é um só: a sua conversão à Igreja em 2008 parece ter sido mais para lutar contra Maomé do que para fazer-se discípulo de Cristo. Mais por ódio ao Corão do que por amor a Cruz. E o ódio, embora pareça mais intenso, é também mais inconstante e menos duradouro: o simples ódio a alguma coisa é incapaz de garantir a regularidade devotada que o Cristianismo exige como caminho de vida.

E essa história triste, na verdade, nos deixa ao menos uma preciosa lição: ninguém deve se converter à Igreja por ser contra o islamismo ou o protestantismo, o relativismo ou o esquerdismo, o feminismo ou o homossexualismo, a degeneração moral ou a crise de valores, nada. Vou até mais além: ninguém deve nem mesmo converter-se à Igreja porque os Seus ensinamentos são corretos. Na verdade, deve-se ser católico por uma única e simples razão: para salvar a própria alma, uma vez que sozinho ninguém é capaz de a salvar. Outra espécie de amor à Igreja que não esteja radicado em Cristo, que não seja amor a Cristo por Aquilo que Ele é em Si mesmo, não é amor verdadeiro à Igreja. Semelhante “conversão” (que eu nem sei se se pode chamar assim) não é aquela casa do homem prudente edificada sobre a rocha da qual nos fala o Evangelho. Ao contrário, é frágil construção edificada sobre a areia, cujos alicerces cedo ou tarde irão abaixo por conta das intempéries da natureza – e grande será a ruína de quem fez ali a sua morada.

“Cristo é o único Salvador do homem todo e de todos os homens” – Papa Francisco

[P.S.: Tradução oficial já disponível no site do Vaticano.]

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Alguém me dizia: os cardeais são os padres do Santo Padre. Esta comunidade comunhão, esta amizade, esta proximidade nos fará bem a todos. E [foi] esta consciência e esta abertura mútua [que] nos facilitou a docilidade à ação do Espírito Santo. Ele, o Paráclito, é o supremo protagonista de toda iniciativa e manifestação de Fé. É curioso: faz-me pensar, isto. O Paráclito faz todas as diferenças da Igreja, e [por isso] parece ser um apóstolo de Babel. Por outro lado, contudo, é Ele que faz a unidade destas diferenças, não na “igualdade”, mas na harmonia. Eu lembro aquele Padre da Igreja que a O definia assim: “ipse harmonia est”. O Paráclito dá a cada um de nós carismas diversos e nos une nesta comunidade da Igreja – que adora o Pai, o Filho, e Ele, o Espírito Santo.

Partindo do autêntico afeto colegial que une o Colégio Cardinalício, exprimo a minha vontade de servir ao Evangelho com amor renovado, ajudando a Igreja a Se tornar cada vez mais – em Cristo e com Cristo – a vinha fecunda do Senhor. Estimulados também pela celebração do Ano da Fé, [que] todos nós, juntos, Pastores e fiéis, esforcemo-nos para responder fielmente à missão de sempre: levar Jesus Cristo ao homem e conduzir o homem ao encontro com Jesus Cristo, Caminho, Verdade e Vida, [que está] verdadeiramente presente na Igreja e ao mesmo tempo em todo homem. Tal encontro conduz a leva a nos tornarmos homens novos no mistério da Graça, animando-nos com aquela alegria cristã que é o cêntuplo dado por Cristo àqueles que O acolhem na própria existência.

Como o Papa Bento XVI nos lembrou tantas vezes nos seus ensinamentos e, por último, com aquele seu gesto corajoso e humilde, é Cristo quem guia a Igreja por meio do Seu Espírito. O Espírito Santo é a Alma da Igreja com Sua força vivificante e unificante: de muitos faz um só corpo, o Corpo Místico de Cristo. Não nos entreguemos nunca ao pessimismo, àquela amargura que o diabo nos oferece todos os dias; não nos entreguemos ao pessimismo e ao desencorajamento: tenhamos a firme certeza de que o Espírito Santo concede à Igreja, com Seu sopro potente, a coragem de perseverar e também de buscar novos métodos de evangelização, a fim de levar o Evangelho até os confins da Terra (cf. At 1, 8). A verdade cristã é atraente e persuasiva porque responde à necessidade profunda da existência humana, anunciando de maneira convincente que Cristo é o único Salvador do homem todo e de todos os homens. Este anúncio permanece válido hoje como foi no início do Cristianismo, quando se operou a primeira grande expansão missionária do Evangelho.

Caros amigos, força! A metade de nós já somos de idade avançada: a velhice é – me agrada dizê-lo assim – a sede da sabedoria [sapienza] da vida. Os velhos têm a sabedoria de terem caminhado na vida, como o velho Simeão e a velha Ana no Templo. E foi exatamente aquela sabedoria que os fez reconhecerem Jesus. Transmitamos esta sabedoria aos jovens: como o bom vinho, que com os anos se torna ainda melhor, transmitamos aos jovens a sabedoria da vida. Vem-me à mente aquilo que um poeta alemão dizia sobre a velhice: “Es ist ruhig, das Alter, und fromm”: é o tempo da tranquilidade e da oração. E também de transmitir aos jovens esta sabedoria [saggezza]. Voltareis agora para vossas respectivas sedes, a fim de continuar o vosso ministério; [voltareis] enriquecidos pela experiência desses dias, assim repletos de Fé e de comunhão eclesial. Tal experiência única e incomparável nos permitiu compreender em profundidade toda a beleza da realidade eclesial, que é um reflexo do fulgor de Cristo Ressuscitado: [e] um dia veremos o belíssimo rosto de Cristo Ressuscitado!

À poderosa intercessão de Maria, nossa Mãe, Mãe da Igreja, confio o meu ministério e o vosso ministério. Que cada um de nós, sob o Seu olhar materno, possamos caminhar felizes e dóceis à voz do Seu Divino Filho: reforçando a Unidade, perseverando juntamente na oração e testemunhando a verdadeira Fé na presença contínua do Senhor. Com estes sentimentos – são sinceros! -, com estes sentimentos, transmito-vos de coração a Bênção Apostólica, que estendo aos vossos colaboradores e às pessoas confiadas à vossa cura pastoral.

Papa Francisco
Discurso aos cardeais, 15 de março de 2013