O pe. Marcelo e os gatos traiçoeiros

Sério… o que há de errado com o mundo? Alguém comentou aqui no blog sobre o “escândalo” envolvendo o pe. Marcelo Rossi e os gatos, que depois eu fui procurar. Situação absurda levada a limites tão kafkianos que nem o escritor de Praga deve ter sido capaz de imaginar em seus maiores devaneios.

Pelo que eu entendi, houve uma Missa ao final da qual o pe. Marcelo disse (a despeito de não ter visto o vídeo, não tenho dúvida nenhuma de que isto foi dito entre risos, em tom jocoso) que não gostava de gatos porque os mesmos eram traiçoeiros. Acto contínuo, o mundo enlouquece.

A notícia acima (na qual já há quase 300 comentários) colheu os seguintes testemunhos (refiro-me ao corpo da notícia; nem estou falando dos comentários…):

  • “Foi um erro imperdoável. Como uma pessoa que fala das coisas de Deus rejeita uma criatura dele? O que me preocupa é o preconceito que ele incutiu em seus seguidores!”
  • “O padre deveria procurar conhecer melhor a natureza desses animais, antes de dizer um absurdo desse, que só vai condená-los ao abandono”.
  • “Da mesma maneira que não se pode ofender negros, religiosos, e outros segmentos sociais, também não se pode faltar com respeito aos animais. É preciso que ele faça uma retratação para que isso não fique na cabeça das pessoas”.

Na internet, os protestos se multiplicam. Este blog pergunta-se «[o] que teria dito São Francisco de Assis, sobre as declarações do pe. Marcelo Rossi?». Aqui é possível ler uma conclamação para que «os amigos de nossos parceiros de planeta escrevam e protestem contra essa atitude grosseira e anticristã do Padre Marcelo». Aqui, uma blogueira se queixa: «Sabemos da dificuldade que é mudar preconceitos, principalmente os relacionados aos felinos»…

No Facebook, uma comunidade ostenta por foto uma caricatura grosseira do sacerdote dançando e diz (em maiúsculas mesmo): EXIGIMOS RETRATAÇÃO DE PADRE MARCELO ROSSI. Até agora, 48 pessoas “like it”. Em um dado momento, transbordando caridade e coerência, alguém posta lá: «O CÉU ESTÁ CHEIO DE GATOS E EM COMPENSAÇÃO O INFERNO CHEIO DE PADRES….MAIS UM NÃO VAI FAZER DIFERENÇA!!!!!!!».

Um abaixo-assinado pede  «a retratação pública do Padre Marcelo Rossi sobre sua declaração de repúdio a gatos na última missa de S. Francisco de Assis e em programas de rádio». Até o presente momento, 4730 pessoas já assinaram.

E, no meio desta loucura, eu não sei se o pior é o padre ter feito uma brincadeira, as pessoas terem levado a brincadeira a sério ou a absurda e desproporcional reação que se seguiu. Sinceramente, é muita inversão de valores. É muito idealismo desordenado. É muita falta do que fazer.

A bênção que serve como confissão

Recebi o relato a seguir pela internet. Contou-mo uma pessoa idônea, que tinha um vôo para pegar num destes aeroportos do nosso Brasil. E mais importante que o relato – que, ainda se não fosse vero, seria benissimo trovato – é o que ele ilustra. Após a história, alguns rápidos comentários.

* * *

A fiel católica está no aeroporto um pouco apreensiva. Está prestes a pegar um vôo. Não conseguira se confessar antes da viagem, pois somente na véspera fora avisada de que precisaria viajar; temia que algum acidente aéreo a fizesse morrer sem confissão.

Angustiada, pára a fim de tomar um café. Neste instante, sentam-se três homens na mesa ao lado. Um deles é um bispo, outro um padre; o terceiro ela não consegue identificar. A senhorita dá graças a Deus; crê que a Virgem Maria lhe enviou um sacerdote a fim de que ela pudesse receber o Sacramento da Penitência e viajar tranqüilamente.

Espera que os homens se acomodem. Logo após, aproxima-se e os cumprimenta, expondo a sua situação:

– Sabe, eu estou viajando agora a trabalho e, por conta de alguns afazeres, pelo fato da viagem ter sido de última hora, não consegui me confessar. Gostaria de saber se um dos senhores pode me dar a absolvição.

O bispo olha para ela com estranheza e lhe pergunta, perplexo:

– Você quer uma confissão AQUI?!

Um pouco desconfortável, a senhorita diz que sim:

– Se for possível. Eu estou preocupada, e preciso de uma absolvição.

O bispo declina. Diz que não é possível fazer uma confissão ali no meio do aeroporto. A católica fica sem reação.

Neste momento o outro sacerdote se adianta. Dá uma piscadela para o bispo (como quem diz “deixa isso comigo”) e diz para a fiel:

– Eu te dou uma bênção que serve como confissão.

A senhorita quedou boquiaberta. No momento, não conseguiu fazer nada. Agradeceu – “muito obrigada, padre! Agradeço a intenção. Sua bênção!” – e se retirou. Ao dar as costas, começou a chorar. De tristeza. De vergonha. De preocupação, ao pensar nos fiéis que podem morrer e perder as suas almas sem que consigam se reconciliar com Deus.

Ainda pensou que o padre talvez quisera – com a melhor das boas intenções – dar-lhe uma bênção para a acalmar… no entanto, isto não justificava negar um sacramento. Isto não justificava “mentir por uma boa causa”. Seguiu em direção ao portão de embarque.

Pegou o vôo e, após uma viagem desconfortável, graças a Deus chegou ao seu destino.

* * *

Sério, o que é isso? Sacerdotes negando sacramentos? Mentindo e tentando passar “gato por lebre” a um fiel, propondo-lhe uma bênção quando ele lhe pede uma absolvição sacramental? Quase me lembro daquela passagem do Evangelho onde Nosso Senhor pergunta que pai daria uma pedra ao filho que lhe pede um pão. Desgraçadamente, parece que este pai existe – e é sacerdote do Todo-Poderoso…

Suponhamos que a católica em questão fosse um pouco mais ignorante. Suponhamos que ela aceitasse a tal “bênção” no lugar da Absolvição Sacramental. Em que situação lastimável ela não estaria, com pecados mortais não confessados e sem saber que os precisaria confessar?

Suponhamos mais! Suponhamos que o avião caísse – e que estivessem, no mesmo vôo, a católica, o padre e o bispo. Talvez Nosso Senhor tivesse misericórdia daquela que buscou confessar-se antes de morrer. Com que rigor, no entanto, o Justo Juiz não trataria os ministros Seus que se negaram a absolver os pecados de uma pecadora penitente que viera até eles?

Para quê, afinal de contas, algumas pessoas se fazem sacerdotes? Para quê se fazem ministros do Altíssimo, dispensadores das graças de Deus… se se recusam a administrar os sacramentos?  Sério, o que se passa pela cabeça dessas pessoas? Acaso não entendem que não existe lugar certo para que as almas precisem se reconciliar com Deus? Acaso não têm consciência de que eles, como médicos de almas, são infinitamente mais importantes do que os médicos dos corpos?

Que Deus tenha misericórdia de nós! E nos conceda santos sacerdotes. Porque às vezes nos deparamos com cada coisa que nem acreditamos. Nas quais até mesmo gostaríamos de não acreditar. Não deveria haver ministros assim na Igreja de Deus…! Mysterium Iniquitatis. Senhor, salvai-nos. Sem Vós, perecemos.

O reino dos papa-bostas

Durante muito tempo as pessoas souberam a diferença entre o início e o fim do sistema digestório humano. Desde tempos imemoriais as crianças aprendiam – na escola e no dia-a-dia – que uma coisa era a comida que elas botavam para dentro e, outra coisa, os dejetos que elas botavam para fora. Em hipótese alguma era permitido confundir essas duas coisas.

Também desdes tempos imemoriais, contudo, alguns indivíduos pareciam não se adaptar àquele exigente estilo de vida. Sempre houve aquelas pessoas que, por razões quaisquer, desenvolviam uma compulsão por ingerir os próprios dejetos ou os de outras pessoas. O hábito, nojento e repugnante, sempre foi repudiado com veemência pela sociedade. Ser papa-bosta era um sinal de infâmia e de vergonha, e os que padeciam de tão estranho prazer queriam se libertar dele mais do que qualquer outra coisa no mundo. Havia também, contudo, aqueles que não conseguiam se libertar de seus hábitos alimentares; estes, comiam fezes somente às escondidas, às escuras, sozinhos, como quem comete uma espécie de crime do qual as demais pessoas não podem tomar ciência.

Um dia isso mudou. Não se sabe bem por qual motivo, um dia os papa-bostas cismaram que tinham o direito de comer bosta mesmo e ai de quem não gostasse. Pior: todos tinham que gostar. Disseram que tinham direito de escolher o que comiam, que a boca era deles mesmo e, nela, eles colocavam o que melhor entendessem. Disseram que com isso não estavam fazendo mal a ninguém, e era um absurdo injustificável que, em pleno século XXI, os degustadores de detritos (o primeiro dos nomes pomposos que se auto-atribuíram) fossem discriminados.

As pessoas normais reagiram com estranheza. Como alguém poderia se orgulhar de ser um papa-bosta?! No entanto, toleraram. Pensavam: “eles que comam a bosta deles para lá!”. Não sabiam, no entanto, que eles queriam muito mais do que isso.

Por serem olhados com estranheza, passaram a dizer que eram vítimas de preconceito e de tratamento desumano pelo simples fato de terem gostos alimentícios diferenciados. Passaram a combater com virulência a comidanormatividade alimentícia! E mais: a injustiça era ainda mais gritante porque o gosto por fezes, como é óbvio, não era uma escolha e sim uma condição. A pessoa nascia gostando (ou não) de comer detritos! Não era justo discriminar uma pessoa por aquilo que ela é: mulher, negro ou papa-bosta… Aliás, este termo passou a ser rapidamente considerado ofensivo e indigno de uma sociedade civilizada. Os degustadores de detritos, agora, queriam ser chamados escatófagos.

Muitos reagiram: “Sim, é verdade que cada um come o que quiser, mas eu não quero passar pela experiência desagradável de estar num restaurante e ver alguém comendo bosta na mesa ao lado, nem quero que meu filho adquira estes hábitos por conviver com gente assim”. Os papa-bostas urraram: escatofagofobia! Escatofagofobia! O termo (recém-cunhado) designava, segundo os seus inventores, o ódio irracional pelas pessoas que, ao fim e a cabo, gostavam de comer bosta. Era inadmissível que os seus gostos alimentares fossem considerados inferiores aos dos demais. Era intolerável existir alguém que não tolerasse um escatófago.

Rapidamente, jurisprudências em favor dos papa-bostas foram estabelecidas. Se alguém entrasse em um estabelecimento qualquer comendo bosta e fosse maltratado, o dono do estabelecimento era punido. A escatofagofobia, argumentavam os papa-bostas, matava centenas de milhares de escatófagos por ano. Se um pai descobria que a babá contratada por ele para tomar conta do seu filho era papa-bosta, e a demitia, os tribunais o condenavam a pagar pesadas indenizações. Ninguém podia nem mesmo recusar-se a contratar um candidato para um emprego pelo fato dele ser um papa-bosta. Os hábitos alimentares, diziam, não influenciavam nada na capacidade de exercer a sua função. O resto era puro preconceito.

As pessoas ficaram perplexas, mas pouco fizeram. Os papa-bostas passaram a se organizar em grandes manifestações de ruas, chamadas paradas, onde as pessoas lambuzavam-se publicamente com as fezes umas das outras. Faziam uma grande festa, atraíam muitas pessoas, dançavam e bebiam e papavam bosta e diziam que isso era tudo muito natural. Reivindicavam a criminalização da escatofagofobia, i.e., que nenhum papa-bosta fosse tratado como um ser humano inferior. Que fossem presos os que pensassem diferente.

Grupos mais conservadores rapidamente começaram a dizer que isto era errado. Os papa-bostas reagiram chamando-os de escroques fundamentalistas e retrógrados, escatofagofóbicos calhordas, dizendo que a única base que eles possuíam para dizer que era errado degustar detritos era um livro velho escrito há milhares de anos que continha um monte de proibições absurdas que, hoje, não eram levadas a sério por ninguém. A violência da reação foi tão grande que os conservadores, no primeiro momento, se retraíram. Os papa-bostas comemoram publicamente.

Foi iniciada uma campanha de inclusão cidadã da escatofagia. Nas escolas, as crianças eram apresentadas a materiais educativos que diziam ser normal comer fezes. A experiência escatofágica era estimulada. Os papa-bostas eram apresentados como pessoas de bem, modelos famosas, executivos de sucesso, bons pais de família, excelentes cidadãos. A figura da mãe obrigando o filho a comer verduras era pintada como se fosse o supra-sumo da opressão alimentar, uma violência sem precedentes e que não podia ser tolerada. Psicólogos renomados subscreviam esta tese. Um escatófago – diziam – não ia deixar de sentir vontade de comer fezes porque sua mãe lhe forçara a comer verduras. Ao contrário, o que ele devia fazer era se assumir, sair do banheiro e ser feliz.

Os conservadores, percebendo as dimensões que a loucura estava tomando, resolveram se manifestar. Mas a tropa dos papa-bostas já tinha tomado grande parte das estruturas de poder social, da imprensa aos órgãos de governo. Quando um conservador dizia que comer bosta fazia mal, rapidamente diziam que isto era puro preconceito dele. Quando ele mostrava a maior incidência de infecções intestinais em pessoas que tinham o hábito de comer bosta, os escatófagos rapidamente diziam que isto era justamente devido ao preconceito social que os papa-bostas sofriam – que os forçava a praticarem a escatofagia em ambientes e condições pouco adequados. Quando um conservador dizia que a boca foi feita para alimentar o corpo, os papa-bostas o ridicularizavam dizendo que as pessoas já há muito comiam para ter prazer, e não somente para se nutrir. Ousaram dizer que era anti-natural comer bosta, só para ouvirem os escatófagos listarem as inúmeras ocorrências de animais que comiam as próprias fezes, provando assim que a escatofagia era, na verdade, uma exigência da natureza.

No fim, foram vencidos. Humilhados impiedosamente, foram se tornando cada vez mais odiados pelas novas gerações. Muitos se renderam aos “novos tempos” e passaram até mesmo a gostar dos papa-bostas. De vez em quando, para não serem olhados com muita estranheza, aceitavam participar de uma degustação fecal. Outros tantos foram presos por escatofagofobia, e não se sabe ao certo o que aconteceu com eles. Alguns outros simplesmente foram embora, buscando algum rincão do mundo onde pudessem simplesmente se estabelecer e viver em paz; onde pudessem educar os seus filhos ensinando-lhes que é errado comer bosta, da forma como eles próprios foram ensinados. A verdade é que, no fim, quase nenhuma voz dissidente restou. E eles deixaram para trás um mundo sem preconceitos: onde ninguém era tratado como um inferior por gostar de comer detritos. Deixaram para trás um mundo moderno e civilizado, de ruas fétidas, pessoas de mau hálito e doentes. E todos se julgavam felizes por terem conseguido dar mais este importante passo na erradicação do preconceito da humanidade.

Este texto é de ficção.
Qualquer semelhança com fatos reais é mera coincidência.

A loucura da Cruz

Eu queria escrever este texto ontem, mas não tive tempo. Ontem, dia 14 de setembro, foi a Festa de Exaltação da Santa Cruz; foi também o aniversário (quatro anos!) de entrada em vigor do Motu Proprio Summorum Pontificum, e ainda o dia do esperado encontro entre a Congregação para a Doutrina da Fé e a Fraternidade Sacerdotal São Pio X.

A exaltação da Santa Cruz, do Lenho Santo do Qual pendeu a Salvação do mundo: vinde, adoremos! «Per lignum servi facti sumus, et per sanctam Crucem liberati sumus. Fructus arboris seduxit nos, Filius Dei redemit nos». O mistério é portentoso demais para ser esgotado; as Escrituras Sagradas dirão que a linguagem da Cruz é loucura para os que se perdem. E onde a loucura?

Loucura entre todos os maus católicos inimigos da Santa Missa celebrada na Forma Extraordinária do Rito Romano, da Missa Gregoriana, Missa Tridentina, Missa de São Pio V ou seja lá o nome que lhe queiram dar. O ódio a esta forma piedosa e tradicionalíssima de celebração – de renovação do Sacrifício de Cristo no Calvário – não é, no fundo, outra coisa que não o ódio à Cruz de Cristo, o desespero diante das exigências de uma Fé [a Fé Católica e Apostólica, a Fé dos Apóstolos!] que parece seguir – em tudo – na contramão dos valores pregados pelo mundo de hoje.

Loucura entre os profetas de desgraças que sentem ojeriza pela aproximação da FSSPX à Sé de Pedro, e que intimamente torcem (quiçá rezem…) pelo malogro das conversações e para que os sacerdotes e fiéis ligados a Lefebvre permaneçam para sempre à margem da Barca de Pedro. Este ódio não é, também, outra coisa que não o ódio à intransigência da Fé Católica e Apostólica, às exigências da Cruz que não querem ver exaltada.

E, por fim, loucura nestas palavras de um Sucessor dos Apóstolos, que propõe-nos aos cristãos escondermos a Cruz (!) ao invés de A exaltarmos, em atenção aos infiéis sarracenos (!!). Sua Excelência termina seu texto dizendo que se deve tomar «cuidado com os marcados por símbolos». Eu diria a Dom Demétrio que, antes, devemos tomar cuidado – e muito! – com os marcados por ideologias estranhas à doutrina católica, ainda que se apresentem de mitra e báculo.

Porque nós, cristãos, somos marcados com o sinal de Cristo, e o sinal de Cristo é a Sua Cruz. «Estou pregado à cruz de Cristo» são palavras do Apóstolo (Gl 2, 19b); como podemos então não carregar em nossos corpos as marcas desta tão importante conformação a Nosso Senhor? Nós cristãos somos marcados indelevelmente com o caráter batismal e, mais tarde, com o selo do Santo Crisma. Os que ascendem às Sagradas Ordens recebem ainda um terceiro caráter indelével, o do Sacramento da Ordem. Ao evocar o adágio latino, Dom Demétrio esquece que ele próprio é três vezes marcado por Nosso Senhor. E, por via adversa, por linhas tortas, sem nexo causal, o bispo de Jales termina por dizer uma grande verdade: que os cristãos devem tomar cuidado com ele.

“Quanto a mim, não pretendo, jamais, gloriar-me, a não ser na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo, pela qual o mundo está crucificado para mim e eu para o mundo” (Gl 6, 14). Que nós façamos nossas estas palavras de São Paulo. Que nós não nos gloriemos neste mundo, a não ser na Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo, na festa litúrgica de ontem exaltada. Que nós tenhamos sempre a ousadia de ostentar esta Cruz bem alto – sem respeito humano, sem receios de ofender hereges ou infiéis -, porque só assim as pessoas poderão ser atraídas a Ela. Que nós – como cantam as composições populares de antigamente – possamos sempre, aqui na Terra, cantar louvores à Santa Cruz, a despeito do que digam o mundo e os maus prelados.

“A juventude do Papa” – Por Claudemir Júnior

A Juventude do Papa

Calor de rachar, por vezes superando a casa dos quarenta graus Celsius. Ambiente seco a ponto de provocar uma sede quase constante. Estas eram as condições climáticas nada convidativas da cidade de Madri no último mês de agosto, quando a bela capital da Espanha acolheu cerca de dois milhões de jovens do mundo inteiro para a XXVI Jornada Mundial da Juventude. Somem-se a isso ouros dois fatores: o desconforto causado pelo caminhar apertado entre multidões, em termos de número, típicas de grandes blocos carnavalescos do Brasil; e as alardeadas ameaças de protestos promovidos pelos inimigos da religião, infelizmente cada vez mais numerosos numa Europa que vem aos poucos abandonando as raízes cristãs que fundamentam a sua existência. Observando tal contexto desfavorável, qualquer um de nós é levado a imaginar o ar de preocupação e esgotamento estampado nos rostos daqueles jovens peregrinos que ousaram embarcar nesta aventura. Não foi bem isso o que ocorreu, no entanto. Muito pelo contrário.

Pondo por água abaixo as expectativas dos que levaram em consideração apenas as limitações humanas diante das dificuldades e das intempéries da natureza, o que se viu foi um espetáculo da Fé Católica, um verdadeiro testemunho público de amor a Cristo e à Sua Igreja diante de uma Europa secularizada. O que se viu foi uma multidão de jovens – e nem tão jovens assim – aparentemente incansáveis, sempre com um sorriso no rosto e dispostos a suportarem grandes dificuldades para estarem ao lado do Vigário de Cristo na Terra. E não foram poucas as provações: aos que quiseram ver o Papa passar de perto, nove ou dez horas de espera foram necessárias para garantir um bom lugar junto à passarela por onde desfilaria o papamóvel; uma tempestade cheia de raios – acompanhada de uma ventania que trazia consigo bastante poeira – aguardava os jovens na noite da vigília para a Missa de Envio com o Papa.

Comitiva recifense em Madrid: Adriana Rocha, Jorge Ferraz, Humberto Carneiro, Poliana Pacheco e Claudemir Pacheco

Tudo para estar alguns instantes ao lado do Sucessor de Pedro. Instantes que tornaram desprezíveis os sacrifícios suportados por horas a fio. Algo incompreensível aos olhos dos que ainda não receberam o dom da Fé, pois, como diria o Apóstolo, “o homem natural não aceita as coisas do Espírito de Deus, pois para ele são loucuras, nem as pode compreender, porque é pelo Espírito que se devem ponderar” (ICor 2, 14).

Ouvir a voz suave do Doce Cristo na Terra (cf. Santa Catarina de Sena) é uma graça de incalculável valor. Frágil por conta da idade e tímido por conta de seu temperamento, Bento XVI é eloquente, fala ao coração e, principalmente, ao intelecto. Instiga profundas reflexões com suas palavras claras e firmes. Ao jovial e performático Bem-Aventurado João Paulo II juntavam-se multidões para vê-lo; a Bento XVI juntam-se as multidões para ouvi-lo falar.

E ele foi ouvido. Até mesmo os arredios meios midiáticos – que até então apenas valorizavam e exageravam as poucas e tímidas manifestações laicistas que quase passavam despercebidas pela multidão de peregrinos – deram o braço a torcer e passaram a destacar o alcance das mensagens do Papa e a atenção que os jovens dedicavam a ouvi-la.

Ele falou, mas também calou. E com ele dois milhões de jovens em pleno sábado à noite no enorme aeroporto [desativado] de Quatro Ventos. Foi após a tempestade, quando o Santo Padre convidou o Dono da festa a estar presente. O silêncio foi ensurdecedor. E todos se puseram de joelhos na terra molhada ou no asfalto a adorar Nosso Senhor Sacramentado. Ele, o Homem-Deus, era o verdadeiro motivo pelo qual jovens de diversos países abandonaram o conforto de seus lares para viverem a loucura de testemunhar, em torno do Santo Padre e diante do mundo inteiro, um amor incondicional Àquele que nos amou primeiro. O Deus que é a “Alegria da nossa juventude” (cf. Sl 42).

Até mesmo o renomado escritor Vargas Llosa, Nobel de Literatura e agnóstico confesso, rendeu-se à beleza e à força deste testemunho. Logo após a JMJ de Madri, em artigo intitulado “La fiesta y la cruzada” (A festa e a cruzada), proferiu as palavras que seguem: “Crentes e não crentes devemos alegrar-nos por isso com o que aconteceu em Madrid nestes dias em que Deus parecia existir, o catolicismo parecia ser a religião única e verdadeira, e todos como rapazes bons caminhávamos mão dada com Santo Padre em direção ao reino dos céus”.

Que juventude é esta capaz de arrancar tão elevadas palavras de um agnóstico? Que juventude é esta capaz de tornar tímidos, quase irrelevantes, os gritos histéricos dos que querem banir Deus da sociedade? Quem são estes que, de diversos povos e culturas, unem-se para manifestar a mesma Fé, a Fé Católica e Apostólica? Tais questões foram já respondidas no grito de guerra que ressoou em Madri durante uma semana inteira: “Esta es la juventud del Papa!” (Esta é a juventude do Papa!).

“Queridos jovens, para descobrir e seguir fielmente a forma de vida a que o Senhor chama cada um de vós, é indispensável permanecer no seu amor como amigos. E, como se mantém a amizade se não com o trato frequente, o diálogo, o estar juntos e o partilhar anseios ou penas?” (Bento XVI, em discurso interrompido pela tempestade na Vigília de Oração com os Jovens)

José Claudemir Pacheco Júnior é recifense e analista de sistemas.
Casado e pai de uma filha, esteve com a esposa [Poliana, na foto] em Madrid no último mês de agosto para tomar parte da JMJ 2011

Os dias em que Deus parecia existir

Poucas coisas me foram tão prazerosas nos últimos dias quanto a leitura deste texto [La fiesta y la cruzada] do Vargas Llosa sobre a Jornada Mundial da Juventude. Para os que tiverem dificuldades com o espanhol, há alguns trechos traduzidos aqui. Não se trata de qualquer articulista. É um Nobel de Literatura e um agnóstico confesso; no entanto, é capaz de escapar à mediocridade intelectual dos não-crentes e reconhecer a beleza do recente encontro católico na capital da Espanha. Ainda que sob uma ótica materialista e incrédula, consegue descortinar um pouco do transcendente.

Afinal, é capaz de reconhecer a beleza destes dias “em que Deus parecia existir e o catolicismo ser a religião única e verdadeira”! E eu, católico, cá de volta ao outro lado do mundo, só posso me alegrar com esta percepção do idoso incrédulo. E me regozijar com uma reconfortante sensação de dever cumprido: na JMJ, nós mostramos que Deus existe e que o Catolicismo é a única Religião verdadeira. E o fizemos de uma maneira tão bem-feita que até mesmo os incrédulos tremeram, e a sua anti-fé foi abalada.

Eu estive em Madrid, e das coisas que fala o Vargas Llosa posso dar testemunho. Definitivamente, nós não éramos turistas levianos em férias de verão; como comentei em outro lugar, nós teríamos coisas muito mais interessantes para fazer se o fôssemos. Enfrentar as intempéries da natureza e as limitações da condição humana – o sol, a chuva, a sede, o calor, o frio, o desconforto, as multidões, o cansaço, et cetera – não é propriamente o que se pode chamar de uma tentadora programação de férias. Mas nós o fizemos – e, como reconhece o articulista agnóstico, “sem acidentes nem maiores problemas”. Nós o fizemos com um sorriso na face, e com um sincero amor a Deus e à Igreja no coração.

Delegação recifense em Madrid! Humberto Carneiro, Claudemir Júnior e Jorge Ferraz

Sorriso na face e amor à Igreja no coração! A alegria e a Fé. A felicidade e a luta. A festa e a cruzada. O Vargas Llosa entendeu perfeitamente aquilo que nós fomos fazer em Madrid. Eu nunca me esqueço do final do “Ortodoxia” do Chesterton, onde o britânico confessa achar que houve alguma coisa que o Deus Altíssimo meio que “escondeu” do mundo quando por aqui esteve, alguma coisa que era grande demais para que Ele mostrasse aos homens. E, na opinião de Chesterton, esta coisa era a Sua alegria. A alegria, que é a pequena publicidade do pagão e o gigantesco segredo do cristão! A alegria cristã revelada em Madrid nos sorrisos dos peregrinos. Na festa que o articulista peruano percebeu.

Não se trata de uma alegria vazia ou superficial – de forma alguma! Trata-se de um contentamento interior que não se abala com as adversidades, de um júbilo que não foge à luta. Não é meramente uma festa, é também uma cruzada. Como eu tive a chance de dizer a Zenit, nós fomos a Madrid para dar «um grande testemunho público de fé diante de uma Europa laicista». Para fazê-lo, era sem dúvidas necessário juntar muitas centenas de milhares de pessoas (de todos os países do globo) ao redor de um homem de branco. Vivemos em uma era em que uma imagem vale mais do que mil palavras; e o quadro pintado em Madrid com cores jovens dos cinco continentes é sem dúvidas mais eloqüente do que quaisquer artigos religiosos que se poderiam escrever. Ter estado na última Jornada Mundial da Juventude foi mais profícuo do que qualquer outra coisa que eu poderia ter ficado fazendo no Brasil.

E o nosso recado foi passado e foi entendido. A Fé não pode ser confinada às esferas do subjetivo e do privado. Ao contrário, a Fé é uma força motriz necessária à construção e à manutenção de qualquer sociedade que se possa pretender minimamente civilizada. A citação das seguintes linhas do La fiesta y la cruzada é um pouco longa, mas eu provavelmente não conseguiria escrever melhor:

Durante muito tempo se acreditou que, com o avanço do conhecimento e da cultura democrática, a religião – esta forma elevada de superstição – iria se desfazendo, e que a ciência e a cultura a substituiriam de longe. Agora sabemos que esta era outra superstição, que a realidade fez em pedaços. E sabemos, também, que aquela função atribuída à cultura pelos livre-pensadores do século XIX (com tanta generosidade quanto ingenuidade), esta é incapaz de cumpri-la, sobretudo agora. […] A cultura não pôde substituir a religião e nem poderá fazê-lo, salvo para pequenas minorias marginais ao grande público. A maioria dos seres humanos somente encontra aquelas respostas (ou, pelo menos, a sensação de que existe uma ordem superior da qual toma parte e que dá sentido e sossego à sua existência) através de uma transcendência que nem a filosofia, nem a literatura, nem a ciência conseguiram justificar racionalmente. E por mais que tantos brilhantíssimos intelectuais tratem de nos convencer que o ateísmo é a única conseqüência lógica e racional do conhecimento e das experiências acumulados ao longo da história da civilização, a idéia da extinção definitiva [da religião] continua sendo intolerável para o ser humano comum e corrente, que continuará encontrando na fé aquela esperança de uma sobrevivência além da morte à qual nunca pôde renunciar. Enquanto não tome o poder político e este saiba preservar sua independência e neutralidade frente a ela, a religião não apenas é lícita como também indispensável em uma sociedade democrática.

Trata-se de um agnóstico rendendo-se à força do testemunho católico, ainda que para fins pragmáticos e com certos preconceitos errôneos quanto às relações entre Igreja e Estado – mas, de qualquer forma, já infinitamente melhor do que os discursos cheios de ódio que nós nos cansamos de encontrar por aí! Porque, até mesmo para o renomado escritor incrédulo, naqueles dias de alegria e de luta Deus parecia existir e a Igreja parecia ser a única Religião Verdadeira. E esta impressão – capaz de romper as barreiras do ceticismo – só foi possível graças à generosidade de milhões de católicos que contribuíram para a grande festa madrileña, para a monumental cruzada espanhola, para a extraordinária jornada católica da qual tomamos parte a fim de mostrar Deus a um mundo sem fé. E, naquela multidão de jovens unidos em uma mesma Fé em torno de um mesmo Chefe, até mesmo os incrédulos puderam vislumbrar a existência do Deus Altíssimo e da Única Igreja Verdadeira. Diante da JMJ, até mesmo os que não têm fé puderam experimentar um desejo – por fugaz que fosse! – de caminhar de mãos dadas com o Vigário de Cristo rumo ao Céu.

E o Papa olhou pra nós

Era uma quinta-feira, e o Vigário de Cristo estava por chegar. Chegamos (relativamente) cedo à Plaza de Cibeles, por volta das dez da manhã. O boato inicial era o de que o Santo Padre passaria à uma da tarde. Procurávamos, próximo ao corredor formado para dar passagem ao papamóvel, um lugar para nos acomodarmos durante a espera.

Os primeiros rumores foram logo desmentidos: o Papa só passaria às sete e meia da noite. O tempo de espera aumentara consideravelmente; nós nem ligávamos. Arranjamos umas pizzas para enganar o estômago enquanto isso. Debaixo do sol escaldante de Madrid, esperávamos pacientemente Pedro.

E as horas passaram entre esperas e cantorias, entre banhos d’água para afastar o calor e conversas animadas com desconhecidos que compartilhavam conosco a mesma Fé e o mesmo objetivo: receber o Papa. Pelo potente sistema de som armado, anunciaram: o Papa deixara a Nunciatura! Estava se dirigindo à Plaza de Cibeles! Levantamo-nos animados. A longa espera nos deixara em uma posição privilegiadíssima: no meio de uma multidão de gente que se estendia até onde a vista alcançava (que se formou ao nosso redor sem que percebêssemos, enquanto passavam as horas do dia), estávamos praticamente encostados nas grades do corredor por onde passaria o papamóvel. Extasiados, dirigimo-nos a ela.

E veio a corte. Batedores policiais à frente, de moto. Seguranças e mais seguranças de terno, ao redor do veículo papal. E, neste, o Sucessor de Pedro, de branco e vermelho, com a janela aberta, sorrindo e acenando para nós.

Passou e voltou. E, na volta, olhou-nos diretamente, chegando a virar a cabeça para trás após a passagem do papamóvel. Olhou-nos e sorriu para nós. Algumas de nós chegaram a dizer que ele havia dado “uma piscadela” – isto, já não garanto. Só garanto o que registrei. O vídeo treme bastante, mas dêem um desconto. Era Pedro quem passava:

Estávamos tão próximos! No dia seguinte, conversávamos com uns voluntários da JMJ. Perguntaram-nos se havíamos visto o Papa: , respondemos com alegria, ayer. “Como daqui pra aí”, estimamos a distância, nós que estávamos bem próximos deles. “Nossa!”, uma delas comentou. “E quanto tempo esperaram?”. “Nove horas”, dissemos com um sorriso. E, após algumas outras afabilidades, nos despedimos.

Nove horas! Sim, valem a pena, eu posso atestar (e julgo que, comigo, todos os que estávamos naquela quinta-feira aguardando o Papa). São os poucos segundos que valem as muitas horas de espera! Diante daquele momento, o dia inteiro parecia pouco. Para ver o Vigário de Cristo passar, todo o sacrifício ao longo do dia se transformava em coisa pequena.

E eu lembrei então de um texto que li em algum lugar, sobre um velho português ouvindo a conversa de dois jovens universitários de Lisboa. Estes louvavam a República, criticando acidamente os gastos com a família real, o fausto da nobreza, a pompa ostensiva e desnecessária da corte. Ao que o velho português respondeu: “meus filhos, vocês só falam isso porque nunca viram o rei passar”.

E o velho está coberto de razão. Não é capaz de entender o significado da corte papal quem nunca a viu em ato, junto ao povo. Não é capaz de compreender a pompa pontifícia quem nunca viu o Papa passar. Eu já vi! E aquele momento é inesquecível, impagável e insubstituível. Vale atravessar o Atlântico, vale comer mal e dormir mal, vale passar o dia inteiro sob o sol escaldante do verão espanhol, vale tudo! Só não entende isso quem não tem Fé. Só não é capaz de entender a grandiosidade de um encontro com o Papa quem nunca viu o rei passar.

Las meninas de Pablo Picasso

Nas minhas recentes andanças espanholas, encontrei-me em Barcelona – bela cidade que eu não conhecia. No meio do meu roteiro turístico, visitei entre outras coisas o recomendado Museu Picasso de Barcelona – “centro de referência para o conhecimento dos anos de formação de Pablo Ruiz Picasso”.

Eu não sou crítico de arte (aliás, sequer entendo de arte) e, portanto, não é nesta condição que escrevo estas linhas. Quero apenas registrar as impressões que os quadros do conhecido pintor espanhol provocaram em mim, um simples observador leigo e ignorante. Mais especificamente, alguns quadros da série Las Meninas que ocupavam a última sala do museu. Para fins desta análise, trago dois aqui.

O primeiro, de outubro de 1957, retrata Isabel de Velasco, María Bárbola i Nicolasito Pertusato. O segundo, de novembro do mesmo ano, traz Isabel de Velasco i María Bárbola. Ambos encontrados neste catálogo virtual do Museu. Seguem abaixo, nesta ordem:

O meu primeiro impulso diante dos quadros foi o de tentar associar as meninas representadas nos dois quadros aos nomes que constavam no título da obra. Faltava uma garota; o segundo quadro, portanto, representava duas das três garotas do primeiro quadro, e uma delas ficara de fora. Quem estava faltando?

Tal processo aparentemente banal se mostrou bastante demorado, para minha grande frustração. As duas meninas do segundo quadro pareciam-me completamente diferentes das três meninas do primeiro. A do segundo quadro que tinha um sinal no queixo (a da direita) não me parecia estar no primeiro; a que tinha “uma lua em cima do nariz” no primeiro quadro (a da direita) não me parecia estar no segundo. Para mim, a que tinha cabelos cacheados no segundo quadro (a da esquerda) não estava no primeiro, e a que tinha “cara de coruja” no primeiro (a do meio) não estava no segundo. Desconcertado, quase julguei ter matado a charada ao notar que “a de rosto quadrado” (a da esquerda) do primeiro quadro não estava no segundo; mas a resposta me pareceu insuficiente.

Foi quando li de novo os títulos dos quadros e percebi que a ordem em que os nomes apareciam provavelmente indicava a ordem em que apareciam as meninas, da esquerda para a direita. Portanto, nos dois quadros, a da esquerda era Isabel de Velasco. María Bárbola era a do meio no primeiro quadro e a da direita no segundo. A que faltava, ergo, era Nicolasito Pertusato. Faltava a garota da direita.

Olhei e olhei novamente para os dois quadros, tentanto encontrar algum indício de que a garota faltante era mesmo a de vermelho. E foi quando eu, embaraçado, percebi: a de vermelho. No primeiro quadro havia verde, azul e vermelho. No segundo, só verde e azul. A garota que estava no primeiro quadro e não estava no segundo era portanto a de vermelho.

A de vermelho! Pensei depois na possibilidade caridosa de que Picasso fosse sinesteta e enxergasse coloridos os nomes das meninas. Mas, naquele momento, o que pensei foi no grande absurdo que é as pessoas serem identificadas pela cor da roupa que utilizam. Na hora eu pensei que os quadros diziam que as meninas não tinham individualidade, distinguindo-se umas das outras tão-somente por coisas exteriores (no caso, as roupas) – talvez uma farda, um número ou um crachá. Eu procurara em vão traços fisionômicos similares (como formato do rosto, olhos, cabelo) para distinguir as meninas, e devia ter desde o início procurado pelas cores dos vestidos.

Na verdade, o que eu vi nestes quadros foi justamente uma arte de vanguarda no pior sentido possível: uma preconização (e em tom laudatório) da supremacia do exterior sobre o interior, das personalidades diluídas e escondidas sob as vestes, as fardas. Vi o nonsense de um mundo onde não era possível identificar os indivíduos senão pelos adereços que eles ostentam, como se Isabel de Velasco pudesse passar a ser María Bárbola bastando que, para isso, trocasse o seu vestido verde por um azul.

E percebi também, temeroso, que o mundo moderno caminha exatamente nesta direção. Assustei-me com a possibilidade de que talvez nós cheguemos um dia a este extremo de impessoalidade retratado nos quadros de Picasso! E este mundo preconizado naquelas telas parecia-me terrivelmente feio, ainda mais feio do que a “arte” disforme e mal-feita nelas contida.

“Um belo poema sempre leva a Deus”

Eu não conhecia este poema do Mário Quintana (na verdade, eu nem sei se é verdadeiro ou apócrifo). A despeito de uma certa irreverência, gostei bastante dele quando o li recentemente. Por conta principalmente de dois versos: “Tu quiseste dizer a Verdade e disseste a Beleza”, por um lado, e “a Beleza é a forma angélica da Verdade”, por outro.

Já devo ter citado algures a frase (que, se muito não me engano, é de Dostoiévski) segundo a qual a Beleza salvará o mundo. E o Pe. Z até há bem pouco ostentava no What Does The Prayer Really Say? a mesmíssima frase em uma versão católica: Save the Liturgy, Save the World. Salve a Liturgia, salve o mundo.

Porque os transcendentais identificam-se; e falar Verdade é falar Bondade é falar Beleza. E o Santo Sacrifício da Missa é sem dúvidas verdadeiro, porque é o verdadeiro Sacrifício de Cristo, e é sem dúvidas bom, porque é a Oblação Pura agradável ao Pai Onipotente. Mas ele é também indubitavelmente belo, e esta beleza – esta Beleza – precisa transparecer nos ritos exteriores. Precisa emanar da Liturgia.

Dói-me ver algumas missas tão horrivelmente celebradas que… fazem ser muito difícil enxergar a Beleza do Sacrifício de Cristo escondida por debaixo daquela bagunça ocorrendo no Altar de Deus! Lembro-me de uma história segundo a qual alguns embaixadores de um império oriental decidiram levar o Cristianismo para as suas terras quando tomaram contato com a Divina Liturgia de São João Crisóstomo; e lembro-me também dos índios do Brasil recém-descoberto, quando assistiam a uma Missa aqui celebrada e, apontando para o altar, apontavam em seguida também para o Céu. Como é difícil imaginar que algo assim pudesse acontecer hoje em dia nas nossas paróquias! No entanto, é o mesmíssimo Sacrifício que converteu selvagens e orientais: pleno de Beleza porque Belo é o Deus sobre o altar.

E o Sacrifício Verdadeiro é também o Belo Sacrifício, porque a Beleza é a Verdade! Eu também não o sabia, mas (ao que parece) são os modernos que mais gostam de incluir o Pulchrum entre os Transcendentais, e há inclusive quem defenda a hipótese de um aspecto não-transcendental da Beleza na Filosofia de Santo Tomás de Aquino. Para além das disputas acadêmicas, contudo, resta evidente (e certamente ninguém o haverá de negar) que Deus é Belo. E que, portanto, belas devem ser as coisas com as quais nos referimos a Ele.

O Mário Quintana tem ainda um outro poema: Se eu fosse um padre. No qual ele diz coisas absurdas sobre não falar em Deus ou em pecado, em anjos ou em santos. Mas o intento dele nestes versos é dizer que basta falar da Beleza porque, n’Ela, está tudo contido: Porque a poesia purifica a alma… / e um belo poema — ainda que de Deus se aparte — / um belo poema sempre leva a Deus!. E alegra-me ver que um poema, ainda que com tão fortes rasgos de oposição ao Cristianismo (aliás, talvez eu me alegre até mesmo por causa disso), seja capaz de perceber que Deus é a Beleza. No meio de tantas coisas más, falsas e feias que encontramos até mesmo dentro da Igreja, é-me um revigorante refrigério encontrar um poeta capaz de identificar os Transcendentais.

Sobre jovens inglesas e francesas [a respeito da morte de Amy Winehouse]

Foto: AP via G1

A Amy Winehouse foi encontrada morta em Londres hoje. Provavelmente as únicas músicas que ouvi da garota foram as que, indistinguíveis, nos chegam aos ouvidos no meio da poluição sonora das cidades; não seria capaz de me lembrar, agora, de nenhuma delas. Mas o que me espantou foi saber que a Amy, morta aos 27 anos, “seguiu o mesmo roteiro trágico de outros ídolos mundiais da música pop, como Janis Joplin, Kurt Cobain, Jim Morrison e Jimi Hendrix”.

Porque do Nirvana e do The Doors eu sei, sim, algumas músicas. E aí, de repente, a morta precoce da jovem cantora inglesa passa a ter alguma coisa a ver comigo: quando menos, me faz lembrar de algumas bandas que eu escutei na minha adolescência. Faz-me lembrar de algumas mortes pelas quais eu já me interessei. E, em última instância, faz-me pensar na morte, que é coisa muito útil e muito santa de se fazer.

Vinte e sete anos! É a minha idade. E, por mais que a Florbela diga “tenho vinte e três anos! Sou velhinha!”, o fato é que… não é uma vida avançada em anos, da qual se possa dizer que foi longeva. Morrer aos vinte e poucos (ou mesmo aos vinte e muitos) é humanamente uma tragédia, é uma interrupção precoce de uma vida que – como no fundo todos esperamos – poderia ter dado mais a si própria e ao mundo.

Talvez haja quem diga que “foi intensa”. No caso da Amy (ou da Janis ou do Kurt), eu diria antes que foi fútil e vazia. Sim, a garota provavelmente gastou até os vinte e sete anos muito mais dinheiro do que a maior parte de nós vai ser capaz de juntar na vida toda. Mas as coisas do mundo – como fama e dinheiro – naturalmente só fazem sentido enquanto se está no mundo. E a morte trágica e precoce de grandes astros da música parece nos dizer aos ouvidos aquela passagem bíblica segundo a qual é tudo vaidade. É como se ela nos sussurrasse ou, antes, nos gritasse alto para nos despertar de nossa letargia: vê, sic transit gloria mundi. Assim passa a glória do mundo! Morreram Cobain, Morrison, Hendrix, Joplin e Winehouse. Para os seus fãs, ficaram as suas músicas e a saudade; mas para eles próprios, de que valeu?

Talvez digam: “foi intenso!”. Talvez nos citem o Neil Young e nos digam que é melhor queimar de uma vez do que apagar-se aos poucos: it’s better to burn out than to fade away. Enfim, talvez nos digam qualquer coisa; mas, data venia, eu preciso discordar. A nossa vida é potencialmente curta (uma vez que cada um de nós pode morrer hoje mesmo) e, por isso mesmo, ela precisa ser intensa; mas o próprio fato da efemeridade da vida deveria nos fazer pensar no além-vida. “Intensa” é uma vida que se prepara para o futuro; desperdiçar loucamente uma fortuna – os anos de vida – cujo tamanho não se sabe ao certo (mas que sempre nos parece estar ainda “muito longe” de acabar) não é intenso, e sim irresponsável.

Eu conheço uma vida curta que foi verdadeiramente intensa. Não viveu os vinte e sete anos da Amy, mas ainda menos: vinte e quatro anos. Não ganhou o dinheiro de um Kurt Cobain ou de um Jimi Hendrix e nem teve em vida a fama de uma Amy ou de uma Janis, mas soube empregar verdadeiramente bem os seus anos de juventude. Era francesa e se chamava Teresa. E, entre tantas outras coisas, legou-nos versos:

Revesti as armas do Todo-Poderoso,
Sua divina mão dignou-se me adornar;
Doravante, nada me assusta.
Do seu amor, quem pode me separar?
Ao seu lado, lançando-me na arena,
Não temerei nem o ferro, nem o fogo.
Meus inimigos saberão que eu sou Rainha,
Que sou a esposa de um Deus!
Oh, meu Jesus! Guardarei a armadura
Com que me visto ante teus adorados olhos.
Até o entardecer da vida, minha mais bela veste
Serão meus santos votos!

[…]

Se do guerreiro tenho as armas poderosas,
Se o imito e luto com valentia,
Como a Virgem de encantos graciosos,
Também quero cantar, combatendo.
Fazes vibrar as cordas de tua lira
E esta lira, oh, Jesus, é meu coração!
Posso, então, das tuas misericórdias
Cantar a força e a doçura.
Sorrindo, desafio o combate
E, nos teus braços, oh , meu divino Esposo,
Cantando hei de morrer, sobre o campo de batalha,
Com as armas na mão!…

[“Minhas armas”, in “Obras Completas de Santa Teresa do Menino Jesus e da Sagrada Face”.
pp. 622-624. São Paulo, Editora Paulus, 2002]

A morte no campo de batalha, com as armas na mão: eis o desejo que convém a uma alma jovem! Não a morte em um palco ou – pior ainda – em um apartamento vazio e solitário, desvanecido o glamour após se deixar o palco. Não, isto não é uma vida intensa; a vida de combate preconizada pela santa francesa morta aos vinte e quatro anos é que o é. Que o Altíssimo tenha misericórdia da Winehouse e de tantos outros mortos em condições similares. E que a tragédia ocorrida com a roqueira inglesa faça-nos ver que a vida é curta e, portanto, é fundamental que seja bem vivida.