Carnaval I

Hoje começa o carnaval, festa pagã onde as pessoas cometem os maiores excessos e imoralidades. A frase provavelmente já foi repetida incontáveis vezes, sem que no entanto pareça surtir qualquer efeito: todo ano são os mesmos dias de folia, e todo ano é a mesma coisa: embriaguez e violência, adultério e fornicação, acidentes e problemas de saúde. Todo ano, o saldo do carnaval é extremamente negativo e, no entanto, todo ano ele se repete! Como é possível tão estranho fenômeno? Como é possível que algo seja indiscutivelmente uma desgraça e, mesmo assim, todo ano atraia multidões para sofrer as mesmas tristes conseqüências que estamos já tão cansados de saber?

Há toda uma mitologia em relação ao carnaval que precisa ser desfeita. O primeiro (e, a meu ver, mais grave) aspecto que precisa ser desmentido é o seguinte: não é verdade que o carnaval seja uma completa desgraça. É óbvio que não é verdade; se o carnaval fosse tão ruim quanto ouvimos dizer, as pessoas simplesmente não iriam às ruas para brincá-lo. E, como canta um frevo daqui de Olinda, “se o povo não saísse / não havia carnaval” – incontestável verdade. Sem foliões não haveria festa; e a primeira coisa que se precisa ter em mente ao se analisar o carnaval é justamente que ele é uma coisa boa.

Claro que ele é uma coisa boa. O pecado é uma coisa boa porque, se não fosse, ninguém pecaria. Naturalmente, as expressões estão aqui empregadas em sentido relativo: “boa”, digo, por ser aprazível. Praticamente todo pecado é a opção por um bem menor em detrimento de um bem maior: assim, um adúltero põe o prazer venéreo acima da fidelidade conjugal, um ladrão põe o seu desejo por um bem qualquer acima do direito de posse do legítimo detentor daquele bem, etc. Seriam raríssimos (e dotados de uma malícia que eu diria patológica) os pecados nos quais o pecador que os cometesse não identificasse o ato realizado com um bem de nenhuma espécie. Peca-se, via de regra, porque se coloca um bem menor acima de um maior, um bem relativo acima do Bem Absoluto que é Deus.

Por que não dão certo as estratégias de se acabar com as imoralidades carnavalescas por meio da identificação pura e simples do carnaval com uma coisa maligna da qual se deva fugir como o diabo foge da cruz? Oras, simplesmente porque isso é anti-natural. As pessoas sabem, intuitivamente, que a alegria é uma coisa boa. Ninguém procura fazer com que um adúltero abandone a sua vida de adultério propondo-lhe o celibato, e ninguém procura fazer com que um ladrão abandone os seus desejos pelos bens alheios propondo-lhe uma vida de pobreza franciscana. Por que motivo, então, deveríamos propôr como única alternativa aos que brincam carnaval o isolamento, a fuga de toda festa, a antecipação da Quarta-Feira de Cinzas e alguns dias de intensas oração e penitência como aqueles aos quais os cristãos são chamados depois dos dias do reinado de Momo?

É óbvio que eu não condeno a mortificação durante o carnaval, como é óbvio que eu também não condeno o celibato ou a pobreza franciscana. Sei, no entanto, que nem o celibato nem a pobreza são para todos indistintamente; por qual motivo, então, o sacrifício completo da alegria nos dias anteriores à Quaresma o seria? Este radicalismo me parece absurdo e fadado ao fracasso. Um excesso oposto também é um excesso e, ainda que possa ser virtuoso, não tem (e não pode ter) aplicação ordinária justamente por ser excesso. Demonizar completamente a idéia de que é possível alegrar-se e divertir-se nos dias do carnaval é a melhor maneira de afastar as pessoas da Igreja e perdê-las para as imoralidades carnavalescas.

Durante os próximos dias de carnaval, irei publicar outros textos correlatos.

Eu, “um dos piores bloggeiros da rede”

Por ocasião do meu texto sobre o garoto que foi suspenso em uma escola americana por usar um terço que eu publiquei aqui ontem, tive a oportunidade de participar de um nada educado bate-boca no wall do Facebook de um amigo. Mas não posso dizer que não tenha tido lá o seu quê de divertido. A figura abaixo mostra, em ordem cronológica, os sucessivos comentários (somente a partir do ponto em que, a meu ver, ficou mais interessante o “barraco” – para o espetáculo completo, verifiquem o link supra [p.s.: removido, para evitar susceptibilidades desnecessárias]). Cliquem para ampliar.

Trago o espécimen aqui somente à guisa de exemplo das besteiras que eu às vezes tenho que aturar. Não vou dissecar o comentário (tarefa aliás bastante fácil), porque eu realmente acho que já perdi muito tempo com o auto-intitulado “um dos melhores alunos da cadeira [de Filosofia] do estado do Rio de Janeiro” (que não entende o que é uma Petitio Principii e cujo “modus definendi” é incapaz de distinguir entre Aristóteles e os sofistas). Quero, na verdade, falar sobre uma outra coisa.

Eu sou um dos piores blogueiros da rede! Isto, em muitos aspectos, é uma verdade que confesso envergonhado. Possuo inumeráveis defeitos: sou preguiçoso, sou desorganizado, tenho enormes dificuldades em gerenciar o meu tempo e estabelecer prioridades, perco muito tempo com coisas fúteis, tenho a péssima mania de conceber projetos e assumir responsabilidades que, depois, não consigo cumprir, abandono as coisas pela metade, sou desleixado, escrevo por vezes com muita pressa (e, às vezes, nem sequer escrevo), não estudo as coisas com o afinco que deveria… et cetera, et cetera. Esta lista poderia muito bem ser expandida e, quem me conhece pessoalmente, sabe que não existe nela sombra de falsa humildade.

No entanto, a despeito de tudo isso, eu sei que o Deus lo Vult! não é um dos piores blogs da rede. Poderia ser muito melhor, é verdade… mas, afinal, o quê não o poderia? E é graças a esta santa “puxada de orelhas” que recebi (embora por vias tão adversas) no Facebook que eu vou fazer, a partir de agora, duas coisas.

1. Esforçar-me mais e com mais empenho para, com a graça de Deus, ser menos pior. Lutar com mais afinco para corrigir os meus muitos defeitos, tendo em vista especificamente este apostolado virtual que eu mantenho já há algum tempo. Lutar mais – e rezar mais – para desempenhar melhor este pequeno papel que a Providência me deu a graça de desempenhar. Aproveito para pedir aos que por aqui passarem orações por este pecador miserável que ora lhes escreve.

2. Ouvir sugestões e críticas sobre o que poderia ser feito para melhorar o Deus lo Vult!. Peço que as façam, da maneira mais sincera possível (façam-na no anonimato, caso assim se sintam mais à vontade) – não prometo fazê-las todas, óbvio, mas prometo lê-las e considerá-las com carinho, à luz do ponto anterior. Falem sobre absolutamente qualquer coisa que gostariam, por absurda e fora do padrão do blog que ela seja. Não é possível que nós não consigamos encontrar, com tantas cabeças pensando, formas novas e/ou melhores de fazer o que eu faço aqui.

E… é isso. Com a palavra, vocês.

Eu quero ter um milhão de amigos!

Eu quero ter um milhão de amigos! E, sim, reconheço com muita facilidade que é impossível. Qual é, então, a razão da insistência no engano? Por que são tantas as pessoas que erram e continuam a errar?

A reflexão que o padre Demétrio traz é interessante. Não é a primeira vez que o assunto é levantado: afinal, qual o valor das amizades virtuais? Muito, sem dúvidas, e disso eu próprio sou testemunha. A questão não é simplesmente essa; trata-se de uma crítica à necessidade – criada pelos novos meios de comunicação – de se “colecionarem” amigos virtuais. A multiplicidade termina por tomar o lugar da individualidade. A quantidade de amigos termina por fazer com que o conceito de amizade caia: termina por fazer com que “qualquer um” seja um amigo e, portanto, as amizades verdadeiras acabam por se perder num oceano de “amigos” – talvez fosse mais acertado dizer “colegas”, quando muito – virtuais.

Penso que o problema está colocado de maneira que não se pode questionar. É simplesmente uma verdade factual que as pessoas tendem a expôr a sua intimidade na internet de uma maneira que, há algum tempo, não teriam coragem de fazer nem diante de bons amigos verdadeiros. É fato que ter amigos hoje em dia é mais fácil do que nunca e, mesmo assim, os amigos verdadeiros continuam sendo jóias raras – talvez até mais raras do que antigamente. Isso porque os falsos amigos – as superficiais amizades virtuais – terminam por tomar o lugar das amizades verdadeiras. Quando as moedas falsas entram em circulação e as pessoas não sabem distingui-las das verdadeiras… é alguma surpresa constatar que o dinheiro de verdade tende a existir cada vez menos?

Mas a pergunta que realmente incomoda aqui, como já coloquei anteriormente, é: por que as pessoas teimam em agir desta maneira? A despeito de todos os conselhos, de tanto quanto já se escreveu sobre o assunto, e até mesmo das (inevitáveis) decepções com estas amizades que, cedo ou tarde, terminarão por aparecer… a despeito de tudo isso, por que as pessoas insistem em colecionar amigos e – pior ainda! – esperam encontrar, em cada um desta multidão, o tesouro da amizade verdadeira?

A única explicação possível é, não surpreendentemente, bastante simples: nós fomos feitos para termos um milhão de amigos. Também aqui se nos afigura aquele abismo insaciável de nossa alma que é, em última instância, evidência da existência de Deus: há um vazio em nós que não conseguimos completar neste mundo. Sentimos a necessidade de preenchê-lo e, por mais que o tentemos, não o conseguimos. Do mesmo modo, temos desejo – quiçá mais: necessidade! – de incontáveis pessoas com as quais nos relacionarmos. E o que é o sucesso estrondoso (e, não raro, irresponsável) das redes sociais, senão uma tentativa de resposta humana (e, por definição, insuficiente) para as nossas ilimitadas capacidade de amar e necessidade de sermos amados?

Sim, eu quero ter um milhão de amigos. E, se o bom Deus permitir, eu o terei: não neste mundo, mas um dia, junto a Ele. Um amigo fiel é um tesouro, como dizem as Escrituras Sagradas; mas Deus nos fez para incontáveis tesouros. Vislumbramos já isso cá na terra, no mistério da comunhão dos santos – que pode ser vista, afinal de contas, como uma grande rede de amizades verdadeiras. Uma dia, veremos face a face. Teremos aquilo que queremos, e que não somos capazes de conseguir nesta terra. Teremos aquilo que só Deus nos pode conceder.

Basta ouvir os fados

Voltando para Recife, relembrando com gosto o tempo de férias. De descanso; viajar rejuvenesce e dá novas forças. Novas idéias. Abre novos horizontes.

A parada forçada em Lisboa fez-me adquirir um CD de fado. Gosto da triste música portuguesa (ok, não é sempre triste; mas gosto particularmente do fado triste português). Em particular, hoje fui e voltei do trabalho ouvindo “Não venhas tarde”. É um primor.

“Não venhas tarde”, / dizes-me tu com carinho. / Sem nunca fazer alarde / do que me pedes baixinho. / “Não venhas tarde!”, / e eu peço a Deus que, no fim, / teu coração ainda guarde / um pouco d’amor por mim!

O sujeito do fado trai a mulher. Tu sabes bem / que eu vou pra outra mulher. / Que ela me prende também, / e eu só faço o que ela quer. Mas ele não conta isso como quem se gaba, como nas músicas que costumamos escutar nos dias de hoje. Ele conta com uma profunda dor de alma, que transparece na melodia triste. Dá quase para perceber o rosto do eu-lírico corando de vergonha ao dizer como age a mulher dele: Tu estás sentindo / que te minto e sou cobarde. / Mas sabes dizer sorrindo: / “Meu amor, não venhas tarde!”.

Sou cobarde! Não, ele não se orgulha do que faz. Ao contrário, tem vergonha. Afirma ser covarde. Afirma rezar para que a mulher ainda tenha amor – um pouco que seja – por ele, ao final. Apesar de tudo. E a mulher não “faz barraco” – sem nunca fazer alarde… – pelo que ele faz. Ao contrário, apenas lhe pede que não volte tarde. Ele, escravo dos seus pecados, sempre cai miseravelmente: E eu volto sempre mais tarde / porque não sei fugir dela. Mas tem consciência – e medo – das conseqüências que podem advir de suas atitudes:

Sem alegria, / eu confesso: tenho medo / que tu me digas um dia: / “Meu amor, não venhas cedo!” / Por ironia, / pois nunca sei onde vais: / que eu chegue cedo algum dia / e seja tarde demais!

Ok, e qual o ponto aqui? É óbvio que esta situação não é bonita, claro que não é um modelo a ser buscado ou uma situação nostálgica de “manutenção de aparências” que se deseje resgatar. O ponto é justamente este: trata-se de uma situação condenável que todos sabem – até o próprio marido infiel – ser condenável. Até o adúltero sabe que está errado!

Lembro-me também d’O Príncipe e o Mendigo do Mark Twain. Em uma certa passagem, quando o Príncipe – em trajes andrajosos e na companhia de uma guilda de ladrões – afirma ser o Rei da Inglaterra, recebe uma dura reprimenda dos bandidos. “Todos nós somos uns criminosos que não valemos nada” – cito de memória, mas o sentido é este -, “mas temos um grande amor e respeito pelo nosso rei”. E segue-se um grito de “longa vida ao Rei da Inglaterra!”. Qual o ponto? É precisamente a enorme diferença entre quem erra sabendo estar errado e quem, ao contrário – de novo: como nos nossos tristes dias… -, exalta e defende o erro como se ele fosse a coisa certa. Os bandidos do livro do Mark Twain não exaltavam a bandidagem. O eu-lírico infiel do fado não exalta a própria infidelidade. E isto faz toda a diferença.

Todas as (falsas) polêmicas sobre revolução moral e hipocrisia da sociedade não percebem este ponto fundamental: ninguém tem a pretensão de transformar o mundo em um lugar perfeito de onde o pecado seja totalmente erradicado, mas isso não nos dá o direito de eliminar a diferença entre o que é certo e o que é errado. Não é porque a prostituição é “a profissão mais antiga do mundo”, e que sempre existiu, que nós devemos conferir-lhe cidadania moral. Não é porque existem – e sempre existiram – mulheres que fazem aborto que nós devemos deixar de o classificar como uma atitude condenável. Os princípios são ideais que devem pautar os atos concretos. Não são os atos concretos que determinam quais são os princípios.

No fundo, é como dizia Garrigou-Lagrange: a tolerância com as falhas concretas dos seres humanos não implica (e, aliás, nem pode implicar) em uma transigência para com os princípios morais. A existência de maridos infiéis (coisa que, até onde me conste, também sempre existiu) não torna o adultério aceitável. No entanto, muito pior do que uma turba de adúlteros é um único sujeito – por bom marido que seja! – que ouse defender o adultério como um comportamento normal e louvável. Pior do que Sodoma e Gomorra inteiras é um indivíduo – por casto que seja! – que tenha a petulância de fazer a apologia do homossexualismo como uma atitude normal e moralmente aceitável. A diferença entre ambos não é meramente quantitativa, e sim de essência. Se é verdade que errar é humano, defender o erro com pertinácia é diabólico. Afinal, como a Igreja sempre ensinou, negar a verdade conhecida como tal é pecado contra o Espírito Santo. Ou, nas imprecações das Escrituras Sagradas: “Ai daqueles que ao mal chamam bem, e ao bem, mal, que mudam as trevas em luz e a luz em trevas, que tornam doce o que é amargo, e amargo o que é doce!” (Is 5 20).

Não precisamos que os arautos da revolução moral nos venham atirar em face a existência onipresente do mal do mundo, quer como justificativa para aboli-lo enquanto conceito, quer para revogarmos os decretos morais que, desde que o mundo é mundo, em maior ou menor grau, pautaram a totalidade das sociedades conhecidas. Não precisamos que nos digam que certas coisas sempre existiram, pois isso nós sabemos muito bem – basta ouvir os fados! Entre uma coisa ter sido sempre feita e esta coisa ser moralmente correta, no entanto, vai um abismo que os inimigos da moral insistem em ignorar. E, neste abismo, infelizmente caem muitos que se deixam levar pelo canto-de-sereia dos revolucionários modernos.

Drummond, os mortos, o corvo, o Reveillon

E passou 2010, e chegou 2011. Findou-se, aliás, a primeira década do século XXI. Do terceiro milênio! Muita coisa poderia (e deveria) ser escrita sobre isso, mas não o vou fazer agora. Estou – ainda – longe de casa, e com um (terrivelmente egoísta!) desejo incontrolável de pensar em mim próprio. De ver o que foi feito no ano que passou, e o que pode ser feito no ano que se inicia agora.

Eu nunca gostei (acho que já disse isso algures) das listinhas de ano-novo. Mas pretendo fazer algumas coisas bem concretas este ano. Porque, na verdade, olhando para trás, fico com uma incômoda sensação de ter desperdiçado muito tempo. Bastante coisa foi feita! Mas quantas mais não seriam, caso eu me empenhasse mais? E não quero esperar que esta cantilena vire um epitáfio.

Aqui, em Paris, quando fomos ao cemitério na terça ou quarta-feira, havia alguns corvos por lá. São bonitos estes animais agourentos. E, em um certo momento, um deles grasnou (ou seja lá qual for o tipo de som que os corvos fazem): cras, cras. E eu, imediatamente, lembrei-me da história de Santo Expedito e respondi-lhe sozinho: hodie. Sozinho no cemitério – meu irmão olhava não-sei-o-quê mais à frente -, os mortos e um corvo a me darem lição de moral. A me dizerem com eloqüência como o tempo passa rápido; dentro em breve, são apenas os ossos no cemitério. Cras, cras, cras… é preciso dizer não. É preciso dizer hodie. É preciso fazer já.

É de Drummond aquele trecho sobre o ano: “Doze meses dão para qualquer ser humano se cansar e entregar os pontos. Ai entra o milagre da Renovação e tudo começa outra vez… com outro número e outra vontade de acreditar que daqui para adiante vai ser diferente”. Sim, com todos os clichês do mundo, o Ano-Novo tem esta espécie de (digamos assim) poder: a capacidade de fazer acreditar que, doravante, vai ser diferente. Pode ser diferente. Precisa ser diferente.

Porque, se dermos ouvidos aos corvos – cras, cras, cras -, restar-nos-á somente a inscrição fúnebre do que poderia ter sido. E ninguém quer isso. O “milagre” da Renovação – tradicionalmente expresso nas listinhas de coisas a fazer no ano novo – é esta capacidade de acreditar que as coisas podem mudar. É uma auto-crítica, com propostas concretas de pontos a serem melhorados; é, na verdade, no plano natural, aquilo que o arrependimento (e posterior Confissão) faz no plano sobrenatural. E por que não aproveitar o momento, para consertar tudo aquilo que, na vida inteira, precisa ser consertado?

Ano novo, vida nova – é um clichê. Mas não deixa de ter lá a sua verdade. Como um clichê também é o texto de Drummond e, nem por isso, menos verdadeiro. Mudar é preciso – dizem-nos os corvos, os mortos, os poetas, o Reveillon. Que 2011 seja melhor do que 2010, é o que eu desejo a mim e a todos. Feliz ano novo!

“Tem tão poucas pessoas, né?”

– Aqui está o seu refrigerante, querida.

– Rebeca. Meu nome é Rebeca. Pode me chamar de Rebeca.

E sorriu, deixando-me atônito.

Hoje, o círculo de casais do ECC do qual fazem parte os meus pais ofereceu um almoço de Natal para os moradores de rua que freqüentam a Toca de Assis daqui da cidade. Convidaram-me, e lá estive; ajudando-os um pouco a servir os convidados, conversando um pouco com eles. O diálogo acima foi travado entre eu e uma das garotas que estava almoçando. Indelicadeza a minha não lhe ter perguntado o nome! Ela prontamente percebeu, e fez questão de se apresentar: convenção social tão básica – e tão significativa – mas de que nós, às vezes, nos esquecemos. Ela tem um nome e faz questão de ser tratada pelo nome que possui.

É isso que faz dela uma pessoa, e não simplesmente uma “peça” a mais n’algum amontoado impessoal de seres humanos. Imediatamente, percebi que aquele almoço natalino estava muito mais humano do que os nossos almoços executivos feitos durante o trabalho diário, onde muitas vezes não sabemos o nome das pessoas que nos servem em tal ou qual restaurante, mesmo que estejamos acostumados a ir lá com relativa freqüência. Nós não nos importamos; Rebeca se importava. Como é possível que estejamos tão imersos nas futilidades do mundo moderno, que nos esqueçamos até mesmo das mais elementares formas de tratamento humano? As pessoas têm nomes, ainda que nós não demos muito valor para isso; e muito mais importante do que comer simplesmente para satisfazer uma necessidade fisiológica (como – parece-me! – estamos acostumados a fazer) é almoçar com relacionamentos. O que realmente importa não é um fast-food impessoal, e sim uma refeição entre seres humanos. Entre pessoas. Era isso o que aqueles mendigos procuravam lá, na Toca de Assis. Não se tratava simplesmente de comida. Até animais são capazes de comer; mas só seres humanos podem fazer uma refeição. É incrível que tal compreensão exista com tanta clareza precisamente em alguém que está acostumado a passar fome. Para vergonha minha.

Em outro momento, estava eu a admirar o presépio que fora montado na casa. Outro dos convivas me interpelou, perguntando-me se aquilo eram “as primeiras pessoas do mundo”. Olhei-o, incrédulo; como era possível que o sujeito não fosse capaz de reconhecer um presépio tradicional colocado bem na sua frente?! Reis magos, anjo, manjedoura, pastores, Santíssima Virgem e São José, ovelhas, vacas: a cena era a mais clássica possível. Olhei de novo para o presépio e, dele, para o rapaz. Comecei a explicar-lhe que, não, aquilo era uma representação do nascimento do Menino Jesus. Ao que ele redargüiu, com um olhar triste: “mas tem tão poucas pessoas, né?”.

Sim, há tão poucas pessoas…! Comecei a tentar explicar-lhe o porquê do Menino Jesus ter nascido em uma estrebaria. Nem arrisquei falar em “recenseamento”. Disse que eles estavam longe de casa e não havia lugar para eles na hospedaria; imediatamente percebi que “hospedaria” era uma expressão que não lhe fazia muito sentido. Pensei em “estalagem”, e também desisti antes mesmo de falar. Em um esforço de inculturação – ainda que às custas da precisão histórica -, disse-lhe que não havia vagas nos hotéis, que eles não tinham conseguido lugar para ficar e, portanto, tiveram que passar a noite junto aos animais. Ele fez um sinal afirmativo com a cabeça, como se houvesse entendido.

Será que havia? Arrisquei uma abstração. Disse-lhe que, da mesma forma como havia “tão poucas pessoas” naquela época, naquele presépio, assim também era nos dias de hoje e, no Natal, eram bem poucas as pessoas que se importavam com o nascimento do Menino Jesus. Ele deu um sorriso triste, concordando, e um outro senhor que estava ao lado ouvindo a conversa também aquiesceu: “é mesmo…”. Entenderam. Pedi licença e afastei-me, pensativo.

Como é que eu nunca percebera antes que, nos presépios, há “tão poucas pessoas” quando – é óbvio! – deveria haver multidões encaminhando-se para contemplar o Nascimento do Salvador? Talvez eu esteja muito acostumado a fixar-me na pobreza da estrebaria, na ignomínia do estábulo, no frio da noite; para uma pessoa acostumada a morar nas ruas, no entanto, isso não é o mais chocante no presépio. Isso é o dia a dia. O que torna a cena do nascimento do Menino Jesus triste é o fato de haver “poucas pessoas” lá. E, nisso, é um mendigo quem está coberto de razão, mais uma vez. Porque as pessoas – o calor humano – fazem mais falta do que os confortos materiais, uma vez que as pessoas são mais importantes que os bens materiais.

E o Menino Jesus está para nascer. E passa fome, e passa frio; mas passa também (e principalmente) solidão. Acheguemo-nos a Ele, neste Natal que se avizinha. Preparemo-nos para O receber. Que Ele nasça para nós e na nossa vida. E que nós possamos, com os nossos intentos, comparecer espiritualmente à Manjedoura, aumentando o número de almas a visitar o Menino Jesus; para, assim, tentar – um pouco que seja! – compensar o grande ultraje histórico de se ter permitido serem tão poucos os que visitaram o Filho de Deus quando Ele Se fez carne e nasceu por nós. Que tenhamos todos um Santo Natal.

The Social Network (2010)

[ATENÇÃO! CONTÉM SPOILERS!]

Assisti The Social Network na quarta-feira passada. Gostei bastante do filme. Ontem, conversando com um amigo que encontrei casualmente no aniversário de um amigo em comum, descobri duas coisas interessantes: primeiro, que este meu amigo criara um blog; e, segundo, que ele escrevera precisamente sobre este filme, do qual também havia gostado bastante. Também eu quero tecer algumas rápidas linhas sobre a película, não exaustivas. Desnecessário dizer que recomendo o filme.

O protagonista, Mark Zuckerberg, é um personagem interessantíssimo. Consegue provocar, nos que assistem ao filme, sentimentos tanto de ódio quanto de compaixão. Um gênio, sem dúvidas – mas um gênio extremamente boçal. A maneira como ele trata as pessoas que lhe são próximas chega a irritar os que assistem ao filme – “meu Deus, como ele pode ser tão crápula?”; mas, ao mesmo tempo e paradoxalmente, a maneira como ele despreza o dinheiro e o poder em benefício das pessoas que ama provoca admiração – “como ele pode ser tão desapegado?”.

Quando li a sinopse do filme, havia entendido que o garoto construíra o Facebook após levar um fora de sua então namorada. Acontece que não é exatamente assim; do início do filme, depreende-se que Mark detém completa e exclusivamente a culpa pelo fim do seu relacionamento. Trata a sua namorada com um ar superior que não se usa nem com o pior inimigo. Frases como “tu irás, comigo, conhecer pessoas que de outra maneira jamais irias conhecer” e “não, fica aqui comigo, tu não precisas estudar, porque estás na Universidade X” (não me recordo o nome dela agora, mas é clara a conotação, no filme, de que se trata de uma universidade de nível inferior) irritam profundamente – e com total razão – a garota. Ela termina com ele, ele a xinga no blog, e tudo parece estar muito certo.

Mas não está porque, a partir daí, a vida de Mark é uma ascenção meteórica, enquanto a menina continua como uma personagem apagada e secundária em toda a trama. No entanto, ela volta e sempre aparece, em diversas passagens do jovem multimilionário que não está disposto, de nenhuma maneira, a desistir dela. Chega a ser cômico! Ele tenta desculpar-se com ela e, dela, só recebe desprezo. Mesmo assim, ele pergunta em um certo momento a Sean Parker (criador do Napster, que o está ajudando com o Facebook) se ele ainda pensa na garota cujo fora o fez criar o Napster (a história de ambos é parecida). Sean nem lembra mais da garota, mas Mark não a esquece. Não importa quanto dinheiro, poder e fama ele obtenha: ele simplesmente não a esquece! É uma interessantíssima maneira de se mostrar o quanto as pessoas valem mais – infinitamente mais – do que dinheiro e poder. A ponto de até um perfeito cretino como Mark Zuckerberg percebê-lo! A mensagem é tanto mais forte quanto maior é o contraste entre a personalidade do criador do Facebook e a sua insistência em fazer as pazes com a antiga namorada.

Tanto que a cena final chega a ser apoteótica: em uma sala vazia, após as diversas audiências judiciais envolvendo os autores de duas ações milionárias contra o Facebook, Mark fica sozinho e liga o computador. Abre o seu Facebook. Procura por Erica Albright (a ex-namorada). Vacila um pouco, mas clica afinal em “add as friend” no seu perfil. Olha para a tela. Aperta F5 (para atualizar, e ver se ela já aceitou o convite). Olha para a tela. Atualiza-a. Olha de novo. Atualiza novamente. E assim, repetidas vezes, termina o filme.

O criador do Facebook, o mais jovem bilionário do mundo, mendigando a atenção da ex-namorada na rede virtual por ele próprio criada! Após perder alguns milhões de dólares nas duas ações movidas contra ele, isto simplesmente não ocupa a sua atenção. Não o preocupa. A única coisa que o incomoda é que ele não conseguiu fazer as pazes com Erica Albright. Ele conseguiu tudo, menos isso, e é exatamente isso que o preocupa e incomoda, é o que torna a sua vida incompleta, é o que ele deseja a todo custo conseguir ainda. O filme não chega a dizer isso, mas eu fiquei imaginando se, caso lhe fosse dado escolher entre o dinheiro e a garota, Mark Zuckerberg não escolheria a garota.

Independente disso, o fato é que – claramente – o dinheiro e o poder exercem menos fascínio sobre o criador do Facebook do que a possibilidade de fazer as pazes com a antiga namorada. Ele até admite perder algum dinheiro, mas a possibilidade de não reatar os laços com Erica Albright é o que, sem dúvidas, o aterroriza verdadeiramente, é o que lhe tira o sentido da vida. Porque ela se apresenta, afinal de contas, como “algo” – melhor dizendo, como alguém – sobre a qual todo o seu dinheiro e poder não têm nenhuma influência. A antiga namorada vale mais do que ser dono do Facebook? O filme mostra que certas coisas não têm preço. E que até mesmo quem está cheio de orgulho, de poder, de fama e de dinheiro é capaz de o perceber e de se incomodar com isso.

Eis uma criatura esmagando a cabeça da serpente

Já passa da meia noite, mas escrevo agora porque só agora cheguei em casa. Para mim, ainda é festa da Imaculada; e Deus, que não vê o tempo, haverá de considerar estas linhas como se fossem escritas no dia d’Ela. Quando eu as queria escrever; para homenagear também eu Aquela que é Tota Pulchra. Aquela sobre a Qual nunca se falou e nem nunca se falará o suficiente, porque as Suas glórias e virtudes são tantas quanto as estrelas do Céu – tot tibi sunt dotes, Virgo, quot sidera caelo, como rezamos na Coroinha.

Todas as graças reunidas em uma só criatura! Assim é a Virgem Mãe de Deus. Assim é Nossa Senhora Imaculada. E quem poderá mensurar o poder de Deus? Quem ousará impôr os limites às graças que Ele, em Sua magnificência, é capaz de conceder às obras de Suas mãos? As estrelas do Céu são uma comparação ínfima para as glórias da Virgem Santíssima. Ela foi coroada com muito mais virtudes do que o Céu foi coroado de estrelas.

Em particular, hoje nós celebramos a Virgem Imaculada – e esta palavra tem um especial significado para nós que, marcados pelo Pecado Original, lutamos diariamente contra as suas terríveis conseqüências em nossa própria carne. Nós somos criaturas profundamente feridas pela triste herança de nossos primeiros pais. A nossa natureza rebela-se contra a nossa vontade, e a nossa inteligência recusa-se a aceitar esta contraditória situação como sendo o modelo estabelecido por Deus para o gênero humano. Temos em nós a sede do Infinito mas, no entanto, esbarramos o tempo inteiro em nossas próprias imperfeições. A festa de hoje é o bálsamo que vem aliviar as nossas feridas. É a prova de que o gênero humano não ficou completamente entregue à maldição da desobediência primeva. A Virgem Santíssima é Imaculada e, n’Ela, nós enxergamos aquilo que nós deveríamos ser. Aquilo que desejamos ser. Aquilo que – mantidas as devidas proporções – nós um dia seremos, com a graça de Deus.

Porque Aquele que foi poderoso o bastante a ponto de preservar Maria Santíssima das nefastas conseqüências do Pecado, é também capaz de delas nos livrar. Pois não foi apenas pela Virgem Santíssima que o Verbo Se fez carne – afinal, o Filho de Maria Imaculada, Nosso Senhor Jesus Cristo, é precisamente Aquele que tira os pecados do mundo. E, se as dores deste vale de Lágrimas onde fomos degredados forem fortes demais para nós, olhemos para a Imaculada Conceição: luz que nos ajuda a perseverar e – ousemos dizer – penhor da nossa salvação.

Porque não foi somente sobre o Deus três vezes Santo que o Pecado não pôde lançar as suas garras. Também a uma criatura ele foi impedido de macular. Os limites que Deus impôs às consequências devastadoras do Pecado não se restringem ao Seu Divino Filho: incluem também a Sua Mãe Santíssima, incluem também a Virgem Imaculada que hoje celebramos, e que temos por Mãe e intercessora! Sim, Deus é mais forte do que o Pecado, e Ele quer salvar os seres humanos e, sim, Ele pode fazê-lo. Eis a prova viva, eis a gloriosa Mãe de Deus sobre a Qual o pecado jamais lançou a mais mínima sombra. Eis uma criatura esmagando a cabeça da serpente: eis Aquela que, sem ser Deus, mas com a Graça d’Ele, foi e é sempre livre de todo o pecado.

Recomendemo-nos à Virgem Imaculada, reconhecendo-nos pecadores. Recomendemo-nos à Sua poderosa intercessão, confiando na misericórdia infinita d’Aquele que soube fazer maravilhas na Virgem Santíssima. Que Ela nos ajude a, um dia, vivermos com Ela a Bem-Aventurança eterna da presença de Deus.

Agradecimentos – crismandos 2010

Ontem foi o Crisma da paróquia, em cujo Curso de Preparação para o Crisma eu tive o privilégio de trabalhar este ano. Na tradicional festa que todos os anos ocorre à noite, no mesmo dia da celebração, tive ainda a grata surpresa de receber – junto com toda a equipe – uma bonita homenagem feita pelos recém-crismados. E foi com profunda gratidão que os ouvi dizerem “muito obrigado”.

Mas, como, “obrigado”? Naturalmente, sou eu – e imagino falar também por toda a equipe – o primeiro que deve agradecer. Acompanhar estes jovens ao longo dos meses, esforçar-se por mostrar-lhes um pouco da Doutrina Católica (que, no mundo de hoje, aparece tão caricaturizada), ver-lhes passar com desenvoltura por todo o tempo de aprendizado para, enfim, ingressarem gloriosamente nas milícias do Senhor dos Exércitos! Isto, definitivamente, não é um favor que nós fazemos. É um privilégio, talvez dos mais importantes privilégios que se podem almejar nesta vida.

Há um adágio latino cuja origem eu confesso não saber, mas que é muito verdadeiro. Animam salvasti, animam tuam praedestinasti; “salvar uma alma é predestinar a tua [própria] alma”. E nós, miseráveis e pecadores catequistas, cheios de falhas e de imperfeições, não podemos pretender “salvar” propriamente ninguém. Mas ousamos – sim, isto nós ousamos! – fazer o que está ao nosso alcance a fim de encaminhá-los para Cristo, Salvador dos Homens. E, com isto que fazemos, esperamos ter contribuído (um pouco que seja!) para que eles possam viver bem esta vida a fim de que, um dia, gozem junto de Deus a Felicidade Eterna para a qual eles foram criados. E, então, talvez eles se lembrem dos seus antigos catequistas, que – talvez… é o que esperamos! – contribuíram para que eles chegassem até aí. E então – talvez! – Deus seja misericordioso com os nossos muitos pecados, em atenção àqueles que ajudamos (por pouco que seja!) a se aproximarem d’Ele. Animam salvasti, animam tuam praedestinasti. Repito, é um privilégio pelo qual nós é que temos que agradecer.

Acho que foi com o prof. Fedeli que ouvi, outra vez, uma comparação entre a raiz e a flor; é papel da raiz enfiar-se na terra e na lama para, no escuro, extrair os nutrientes necessários para que a flor desabrochasse perfumada ao sol. E, se a raiz pudesse ver a flor desabrochada, ficaria satisfeita com o resultado do seu trabalho; e se a flor pudesse ver a raiz que a possibilitava ser o que é, agradecer-lhe-ia pelos esforços feitos em atenção a ela. Eu consigo entender que vocês, crismandos – perdão, crismados -, olhem para a equipe e só vejam aqueles que trabalharam arduamente por vocês ao longo de todo o curso de preparação. Mas me permitam, meus caríssimos irmãos na Fé, mostrar-lhes o que nós vemos quando olhamos para vocês: um bonito jardim florido, repleto de flores recém-abertas, que nós ofertamos a Cristo Rei do Universo. E, da mesma forma que as flores são muito mais do que a terra onde as  raízes trabalham, vocês – novos soldados de Cristo! – são muito mais do que todo o trabalho que pudéramos ter ao longo desses meses. Milagres da Graça de Deus: cada um de vocês, sozinho, vale infinitamente mais do que todo o trabalho de toda a equipe! Nós também temos que agradecer. A Deus, principalmente, que é o autor de toda a graça; mas também a vocês, por terem perseverado, e por terem permitido que o milagre acontecesse. O nosso mais sincero e efusivo “muito obrigado”. Vocês ultrapassam, de longe, tudo o que poderíamos merecer pelo que fizemos.

Enfim, sejam muito bem-vindos às fileiras dos exércitos do Altíssimo. Que vocês possam perseverar até o fim, é o que nós sinceramente desejamos. Colocamo-nos, desde já – aliás, desde o início -, à disposição para aquilo de que vocês precisarem. E que a Virgem Santíssima, Nossa Senhora das Graças, possa acompanhar-lhes sempre pelos caminhos deste Vale de Lágrimas que, no entanto, conduz ao Céu.

A música litúrgica e a mediocridade

Hoje foi a comemoração dos 100 anos da elevação da Diocese de Olinda a Arquidiocese de Olinda e Recife. Missa no Marco Zero com todo o clero, muitos bispos de toda a província eclesiástica, alguns outros bispos da Regional Nordeste II e o Núncio Apostólico, Dom Lorenzo Baldisseri, que presidiu a celebração.

A celebração foi longa: eram por volta das 17:00 quando lá cheguei (pouco antes da procissão de entrada), e eram 20:30 quando recebi a bênção solene. Merece menção o coral polifônico: um exemplo de como é possível manter a sacralidade da música litúrgica mesmo com o emprego do vernáculo. Antes da celebração, eu estava no retiro do Crisma e, comentando sobre a situação da Igreja nos dias de hoje, falava que uma das notas características dos erros e heresias atuais é a mediocridade. Encontramos coisas erradas em abundância, mas pouco ou nenhum requinte de heterodoxia. Temos muitas heresias, mas elas estão universalmente disseminadas e são impessoais: não temos nenhum grande heresiarca.

A edição da Martins Fontes das “Cartas de um diabo a seu aprendiz”, de C. S. Lewis, traz ao final o “Fitafuso propõe um brinde”; é um pequeno conto com o diabo autor das cartas anteriormente publicadas. “O cenário é o Inferno; a ocasião, um jantar anual oferecido aos jovens Demônios pela Faculdade de Treinamento de Tentadores. O Diretor, Dr. Catarruspe, acaba de brindar à saúde dose seus convidados. Fitafuso, convidado de honra, ergue-se para responder”. E ele já falava desta mediocridade:

Os “grandes” pecadores, aqueles nos quais as paixões vívidas e geniais foram levadas além do limite, e nos quais sua imensa concentração de vontade foi devotada a assuntos que o Inimigo odeia – enfim, nem todos eles desaparecerão, mas ficarão mais raros. Teremos cada vez mais presas, mas consistirão cada vez mais de puro lixo – lixo que tempos atrás jogaríamos para Cérbero e para os cães do Inferno, pois não seria apropriado para o consumo diabólico.

Lewis, C.S., “Cartas de um diabo a seu aprendiz”, pp. 183-184. Ed. Martins Fontes, São Paulo, 2005

Cheguei a este assunto por causa de um contra-exemplo. Uma das mais clássicas aplicações deste – chamemo-lo assim – “princípio da mediocridade” são as músicas que tocam nas nossas paróquias. Na esmagadora maioria das vezes, são sofríveis, horrorosas, totalmente inadequadas para o culto; mas não têm impiedade deliberada, não têm um grau significativo de malícia, não têm nada. São “só” medíocres.

E, hoje, na presença do senhor núncio, foi com imensa alegria que eu vi a exceção à regra. O coral estava bem preparado e as músicas estavam dignas: hoje, na comemoração dos cem anos da Arquidiocese, a música litúrgica fugiu à mediocridade. Por que não é possível ser sempre assim? Por que não é possível dar, ordinariamente, o melhor a Deus? Por que é necessário esperar uma visita do Núncio Apostólico para que se cantem, nas celebrações litúrgicas, músicas dignas do Deus Altíssimo que Se entrega diariamente por nós?