A Paixão do Senhor

Hoje, Sexta-Feira da Paixão, nós não temos a Santa Missa – é o único dia do ano em que não a temos. Reunimo-nos, no entanto, para a Celebração Litúrgica da Paixão. A cerimônia é riquíssima e haveria muito o que falar sobre ela, mas gostaria de iniciar com uma pergunta simples: por que não há Missa?

Santo Tomás de Aquino (Summa, IIIa, q. 83, a. 2, ad. 2) explica que a Eucaristia “é figura e imagem da Paixão do Senhor” e, por isso, no dia em que se recorda esta Paixão – “tal e como Ela aconteceu na realidade” – não se consagra a Eucaristia. É como se o Sacrifício Eucarístico desse lugar ao Sacrifício do Calvário – único e mesmo sacrifício, sem dúvidas, mas distintos no modo de oferecer: aquele incruento e, este, cruento. É como se hoje os fiéis se colocassem diante do Calvário não mediante o véu sacramental, mas o véu da lembrança: toda Missa é uma “celebração da Paixão”, mas na Sexta-Feira Santa nós participamos de uma Celebração da Paixão que não é Missa.

Eu, particularmente, gosto de encarar também a liturgia de hoje sob o aspecto do despojamento; é como se a Igreja morresse com o Seu Esposo, de tal maneira que nem mesmo a Santa Missa é celebrada. Mas a morte não tem a última palavra e, mesmo durante esta “morte litúrgica” que a Igreja apresenta hoje aos fiéis, muita coisa é feita: das leituras às Grandes Orações, da adoração da Cruz à procissão do Senhor Morto. Descemos ao túmulo, sim, mas para ressuscitar junto com Cristo. Vivemos de modo mais enfático a Morte do Salvador, mas à luz da Fé e não do desespero. A Igreja – ao contrário do que fizeram os Apóstolos n’Aquela Sexta-Feira – não “abandona” simplesmente o Crucificado. Como a Virgem Santíssima, fica aos pés da Cruz. Sofre, sim – mas aos pés da Cruz, e não longe d’Ela. Talvez isso até Lhe aumente o sofrimento, mas Ela sabe que é necessário, e é isso que Ela pede aos fiéis: que fiquem junto à Cruz. A Virgem Maria não gozou da companhia do Seu Divino Filho na Sexta-Feira da Paixão: ao invés disso, acompanhou-O ao Gólgata. De modo análogo, hoje, os fiéis não têm a consolação da Santa Missa: ao contrário, são convidados ao Calvário.

É, no entanto, no dia em que se celebra a Paixão do Senhor que a Igreja faz as Grandes Orações: pela Igreja, sem dúvidas, mas também pelos que não fazem parte da Igreja: pelos catecúmenos, pelos hereges e cismáticos, pelos judeus, pelos infiéis, pelos ateus, enfim, por todos. Reza-se, no Calvário, pela conversão de todos. É como se a Igreja Se lembrasse daquelas palavras de Nosso Senhor: “quando eu for levantado da terra, atrairei todos os homens a mim” (Jo 12, 32). E, de joelhos diante do Crucificado, pedisse Àquele que está levantado da terra que – como Ele disse que faria – atraia todos os homens a Si.

Segue a cerimônia com adoração da Santa Cruz, Comunhão, procissão. Cada uma das partes com um simbolismo riquíssimo. O altar permanece desnudado, os fiéis voltam para casa sem a bênção final. O Senhor está morto, e esta é a verdade que deve servir de meditação para os católicos no dia de hoje, é esta a verdade para a qual apontam a Via-Sacra, o jejum, a ausência da Santa Missa, as leituras da Paixão, a adoração da Santa Cruz, a procissão do Senhor Morto, tudo nesta Sexta-Feira Santa. Tudo lembra o Consummatum Est do Gólgota: se este Sacrifício de Amor passa-nos despercebido na Santa Missa quotidiana, na correria do dia-a-dia, a Igreja exige ao menos que hoje ele seja lembrado. Um Deus morreu por nós, foi levantado no Madeiro e, deste Lenho da Cruz, pendeu a salvação do mundo: Venite, Adoremus, é o convite que nos é feito. Atendamos a Ele: que a Salvação nascida da Cruz possa alcançar também a nós, miseráveis pecadores. Senhor, tende piedade de nós.

Cenáculo, Getsêmani, Horto das Oliveiras

Última Ceia. Getsêmani. Traição de Judas. São muitos os acontecimentos que meditamos nesta Quinta-Feira Santa. São todos antecipações da Sexta-Feira Santa, do Calvário: no Cenáculo, antecipação sacramental; no Getsêmani, uma antecipação “volitiva”; e, no beijo de Judas, uma antecipação “simbólica”.

Na Última Ceia, Jesus reúne os Doze Apóstolos – inclusive aquele que O vai trair poucas horas depois – para instituir a Eucaristia, instituir a Santa Missa, antecipar, de modo Sacramental, o Sacrifício do Calvário que seria consumado no dia seguinte. A Ceia não é – como nos é representada muitas vezes – uma festa entre amigos. É um ritual religioso. É um banquete sacrifical. Nosso Senhor sabe-o muito bem. É nesta ocasião que Ele profere as palavras que irão atravessar os séculos e nutrir os filhos da Igreja ao longo de toda a Sua história: ISTO É O MEU CORPO. ESTE É O CÁLICE DO MEU SANGUE.

Corpo e Sangue separados: Nosso Senhor em “estado de vítima”. A separação do Corpo e do Sangue da Vítima imolada, que ocorrerá no dia seguinte quando o Santíssimo Sangue do Salvador escorrer do Santíssimo Corpo pendente do Madeiro da Cruz, já se faz presente na Última Ceia. Nosso Senhor o sabe. Sabe que os Apóstolos – e, depois deles, os cristãos de todos os tempos – precisarão participar do Sacrifício Redentor, do Calvário: pois nem mesmo os Apóstolos estarão lá amanhã, junto à Cruz… Nosso Senhor os ensina como agir. E, após deixar as instruções que serão repetidas pelos séculos e milênios vindouros, retira-se ao Horto das Oliveiras.

Vai sozinho: “Assentai-vos aqui, enquanto eu vou ali orar” (Mt 26, 36). Como sozinho haveria de subir o Calvário no dia seguinte. Vai rezar. Entristece-se, angustia-se: a natureza humana, vergada sob o peso dos pecados do mundo inteiro, chega quase a vacilar: “Meu Pai, se é possível, afasta de mim este cálice” (v. 39)! Mas a férrea vontade divina é mais forte do que a fraqueza humana: “Todavia não se faça o que eu quero, mas sim o que tu queres” (id. ibid.). O “sim” dado a Deus por Nosso Senhor supera o “não” primitivo dos nossos primeiros pais: em Jesus, a natureza humana, finalmente, dá a Deus a obediência que Lhe convém.

“Meu Pai, se não é possível que este cálice passe sem que eu o beba, faça-se a tua vontade” (v. 42)! E Jesus já começa a saborear o amargo cálice da nossa Redenção, a partir do momento em que o aceita. Diz ao Pai: faça-se a tua vontade. Dobra, portanto, a vontade humana, submete-a à divina. Aceita o Calvário, e já o antecipa neste querer: o solo do Getsêmani – antes mesmo do Gólgota – foi o primeiro a receber o Divino Sangue do Salvador.

“Aquele que me trai está perto daqui” (v. 46). Já se aproxima o Traidor; perto estava Judas porque estava nos arredores do Horto, mas também não estaria ele “perto” por ser um dos Doze? Por ser um Apóstolo, do restrito grupo de confiança de Nosso Senhor? Judas estava perto e, com um beijo, entregou a Deus “nas mãos dos pecadores”.

Um Apóstolo traindo a Nosso Senhor! Devemos nos escandalizar, portanto, se, hoje, Judas tem sucessores? Devemos porventura nos escandalizar ao vermos bispos traindo a Esposa de Cristo? Na Quinta-Feira Santa, sob a luz da lua cheia, Jesus foi traído por um beijo. E este gesto de carinho que, para Ele, era sentença de condenação, vindo de alguém que, com Ele, havia ceado pouco tempo antes e, no entanto, agora fazia o papel do carrasco… não terá sido um sofrimento inimaginável? Jesus é preso. A Traição é já o início do Calvário; ela O antecipa neste beijo que é sentença de morte proferida por alguém que Nosso Senhor veio para salvar – como, amanhã, Jesus vai morrer pelas mãos dos pecadores, em favor destes mesmos pecadores.

No Cenáculo, portanto, e no Getsêmani, e no Horto onde Jesus foi preso, tudo nesta quinta-feira aponta para a Sexta da Paixão. Tudo nela rescinde a morte: propter peccata nostra. Acompanhemos Nosso Senhor na Sua paixão, hoje três vezes antecipada. Unamo-nos a Ele. Que Ele tenha de nós misericórdia.

40 anos

Hoje, a Missale Romanum completa exatos quarenta anos. Eu nem sabia, quando publiquei ontem à noite um texto sobre a Santa Missa… Foram quarenta anos difíceis. É impossível negar…

Quarenta é um bom número. Lembra-me os quarenta anos do deserto ao fim dos quais os judeus entraram na Terra Prometida, os quarenta dias no deserto ao fim dos quais Nosso Senhor começou a Sua vida pública, os quarenta anos da Quaresma ao fim dos quais, todos anos, nós celebramos a Santa Páscoa. E dá-me esperanças…

Quem me conhece, sabe da minha predileção pelas coisas antigas. Já falei por diversas vezes. E, quem me conhece, sabe também que eu não me alinho com as posições dos que negam a autoridade do Papa – e da Igreja – de legislar; quem me conhece, sabe que eu não julgo aceitável pôr em questão a Suprema Autoridade de Governo da Igreja Católica. O que está promulgado, promulgado está. “Non fit disputatio”, como quer que se escreva isso.

O que não me impede de ter as minhas predileções, e minhas esperanças. Não me impede de me alegrar ao ver-me, no final da Quaresma, aos quarenta anos da Missale Romanum. Quarenta anos…! Oremus pro Ecclesia Sancta Dei.

Introibo ad altare Dei

missa-pos-guerra
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Não sei exatamente onde e quando foi tirada esta foto; talvez seja até muito famosa e eu não a conheça. O amigo que me enviou, disse-me que foi uma missa celebrada em uma igreja destruída na Segunda Guerra Mundial, logo após o fim da guerra. Gosto sobremaneira dela: dá pra ver os escombros e, mesmo assim, quase dá para sentir o quanto as pessoas estão compenetradas no serviço litúrgico. O templo está em ruínas; mas a Santa Missa é celebrada com toda a dignidade, como se estivesse sendo celebrada na mais imponente igreja da Europa. O templo está destruído, mas a Fé está viva: a Fé sobreviveu à Guerra, sobreviveu aos bombardeios, sobreviveu à destruição. Após o fim da Guerra, volta-se a celebrar a Santa Missa; o sacerdote mais uma vez se paramenta, os assistentes mais uma vez se preparam, os degraus do altar são mais uma vez subidos, o Sacrifício de Cristo mais uma vez se faz presente.

E gosto de olhar para esta foto e pensar que… Deus não nos abandona jamais. O templo físico pode estar destruído, mas basta um sacerdote para que, lá, aconteça o maior milagre da Graça, para que Deus Se faça real e substancialmente presente. Mesmo em meio aos escombros. Mesmo quando tudo está destruído, é possível subir ao altar de Deus, que é a nossa alegria – introibo ad altare Dei / ad Deum qui laetificat iuventutem meam. Mesmo em meio ao pó e às ruínas, é possível cantar os louvores do Altíssimo – confitebor tibi in cithara, Deus, Deus meus. Mesmo quando não temos mais nada, é-nos possível esperar em Deus – spera in Deo, quoniam adhuc confitebor illi.

E, ao mesmo tempo, é triste olhar para esta foto e imaginar que, se fosse nos dias de hoje… quem iria oferecer a Santa Missa nestas condições? Em uma igreja em ruínas, após a guerra, sem luz elétrica, [aparentemente] sem povo… em quantas almas católicas encontraríamos hoje o zelo pelas coisas de Deus demonstrado por estes cinco homens numa fotografia em branco e preto? E, no entanto, isto é tão importante, pois é para isso que os sacerdotes são ordenados…!

Nos escombros de uma igreja, sozinho, o sacerdote se mantém firme porque sabe que está diante de Deus. Sabe que é à Trindade Santa que ele está ofertando o Sacrifício do Corpo e Sangue do Senhor. Sabe que o ritual por ele desempenhado tem valor infinito, e Deus é digno de ser infinitamente adorado. Sabe que toda a Igreja está com ele; que a Santa Missa transcende o tempo e o espaço e o coloca diante do Trono Eterno do Altíssimo. Sabe tudo isso e, por isso, porta-se como convém. Mesmo numa igreja em ruínas.

Será pedir muito encontrar este zelo nos sacerdotes dos nossos dias? Será sonhar muito alto querer que os ministros do Deus Altíssimo sejam ciosos das coisas sagradas, inflamados de um santo desejo da glória de Deus e da salvação das almas? Rezemos ao Senhor da Messe, para que nos mande bons trabalhadores. E elevemos os olhos para os Céus, de onde nos virá o nosso socorro. Esperemos em Deus. Nunca nos esqueçamos dessa verdade tantas vezes repetidas na Liturgia da Santa Igreja: adjutorium nostrum in nomine Domini / qui fecit coelum et terram.

OFF – Cigarros mais caros

Leio no blog do Jamildo:

Segundo o ministro Guido Mantega (Fazenda), a renúncia fiscal das medidas anunciadas hoje –como a desoneração do IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados) por três meses para uma série de materiais de construção e a prorrogação da redução do mesmo imposto para veículos– será de R$ 1,5 bilhão.

Para compensar essa perda de arrecadação tributária, o governo vai elevar as alíquotas do IPI e do PIS/Cofins sobre os cigarros, que terá validade a partir de 1º de maio. A perspectiva do governo é que o preço final do produto suba até 25% com a decisão.

[…]

Segundo ele, a decisão de elevar a carga tributária sobre os cigarros tem efeito positivo duplo. “É bom para a saúde daqueles que fumam porque vão sentir no bolso, mas é melhor que eles sintam no bolso do que no pulmão”, disse Mantega.

Pergunta óbvia que não quer calar: caso o “efeito positivo” de “desestimular o consumo de cigarros” seja realmente alcançado, quem vai pagar a conta do R$ 1.5 bi, já que os ex-fumantes desestimulados pelos altos preços dos cigarros não vão mais pagar os impostos que a medida mesma de aumentar o preço dos cigarros se propunha a arrecadar? Como pode uma medida qualquer ter “dois efeitos”, cada um dos quais anula o outro?

Se os duplos efeitos positivos do Ministro da Fazenda são obviamente excludentes [já que para arrecadar impostos é necessário que as pessoas não deixem de fumar e, caso elas deixem de fumar, o resultado vai ser a não-arrecadação dos impostos], que sentido – à exceção de uma demagogia barata – faz o discurso do sr. Guido Mantega?

A não ser que seja o sr. presidente a tomar sobre seus ombros o encargo de arcar com a conta

Separando a Luz das trevas

Uma boa forma de começar o dia: recebendo os emails de uma certa senhora, que se diz católica, mas que só divulga mensagens contrárias à Igreja. Desta vez, a pérola foi uma matéria publicada no El País e traduzida para o português pela UOL Notícias. E é uma boa forma de se começar o dia porque dá gosto ver os inimigos da Igreja estrebuchando, é reconfortante ver os lobos colocando as garras de fora, é motivo de júbilo ver que as coisas passam a se definir e o claro-escuro começa a dar lugar à separação entre luz e trevas.

“Decisões anacrônicas mostram incapacidade de Ratzinger em guiar o Vaticano”, é o título da reportagem. Basta o Papa ser católico para essa corja reclamar; é suficiente que Bento XVI tome atitudes que redundem no bem da Igreja, na Glória de Deus, na salvação das almas, para que – por menores que sejam elas! – os inimigos de Deus venham a público rasgar as vestes. Excelente. [E]t divisit [Deus] lucem ac tenebras (Gn 1, 4); hoje, à semelhança daquele Primeiro Dia, Bento XVI esforça-se para separar a luz das trevas, a verdade dos erros, a Fé Católica das heresias, a Igreja de Cristo das falsas religiões.

O ódio ao Santo Padre escorre pelas linhas da matéria, desde a “incapacidade de Ratzinger em guiar o Vaticano” do título até o “[p]or isso há muitos bispos em guerra” do último parágrafo. Perpassando todo o texto, a vontade de criar uma Igreja diferente d’Aquela deixada por Nosso Senhor. Para ficar num só exemplo do ridículo desta gente, segundo o jornalista Filippo di Giacomo, a crise da Igreja “reflete uma doença crônica de sete séculos: seu sistema de governo não funciona nem é colegiado”. Como a Igreja nunca foi “colegiada” no sentido que esta trupe dá ao termo, segue-se que a “doença crônica” diagnosticada não tem sete séculos, tem vinte séculos, e é congênita. Causa espanto uma tão longa sobrevida!

Enfim, não há muita coisa na matéria que mereça comentários. Mas, repito, é reconfortante e motivo de alegria ver as coisas se delinearem, e os inimigos da Igreja apresentarem-se como inimigos da Igreja que são, prescindindo da pele de cordeiro. Alegremo-nos, porque as atitudes do Papa separam a Luz das trevas!

[E]t divisit lucem ac tenebras (Gn 1, 4); antes de derem separadas a luz das trevas, foi necessário que Deus dissesse FAÇA-SE: fiat lux. Desde então, ecoando na História, este “faça-se” a vontade de Deus esteve associado a esta separação; há dois mil anos, em Nazaré (inclusive comemoramos recentemente), uma Virgem disse FIAT e separou Luz de Trevas: fiat mihi secundum verbum tuum (Lc 1, 38), et lux in tenebris lucet et tenebræ eam non comprehenderunt (Jo 1, 5). Non comprehenderunt! Esta oração do Angelus, o Papa a repete todos os dias. E gosto de imaginar que isso explica os acontecimentos recentes, explica as matérias raivosas do El País et caterva, explica a revolta dos maus católicos contra o Papa, explica tudo: quando o Doce Cristo na Terra diz fiat mihi secundum verbum tuum, e quando Deus ouve este FIAT, repete-se o Primeiro Dia e a Luz resplandece nas Trevas: e os inimigos de Deus não compreendem o Santo Padre. Rezemos pelo Papa.

Debate sobre o aborto – Facvldade de Direito

Ontem à noite, estive presente em um debate sobre o aborto realizado na centenária Facvldade de Direito do Recife. Um amigo ia defender a posição de absoluto repúdio ao aborto, contra “uns abortistas”, conforme ele me havia dito. Fui ver o espetáculo.

Na mesa, quatro pessoas: uma moderadora e três debatedores. O Thiago Moraes, meu amigo, defendendo a posição “da Igreja”; uma mulher da ONG abortista SOS Corpo, chamada Sílvia Regina, e um advogado criminalista, chamado Paulo César. No início, uma exposição preliminar de cada um deles: primeiro o católico, depois a senhora da ONG, e por fim o criminalista.

A platéia era ofensiva à posição da Igreja; Thiago optou por um estilo agressivo, falando alto, com indignação, pondo ênfase nas palavras, elevando o tom de voz; até o final do debate, iriam dizer que ele estava “esbravejando”, “expondo as coisas de uma forma raivosa”, “impondo e não debatendo”, etc. Embora não saiba até onde foi proveitosa, acredito que tenha sido uma estratégia; ele queria indignar as pessoas, e conseguiu. Falou em Lei Natural e na importância de se defender a vida humana, pois a omissão nesta defesa solapa toda a ordem jurídica; falou que a posição contrária ao aborto é “racionalmente defensável”, e esforçou-se para desvinculá-la da “posição da Igreja” – termo que carrega uma conotação religiosa; falou na “mistificação” do aborto, nos ossos carcomidos de Comte, e falou que, no Brasil, não iria acontecer a mesma coisa que na Colômbia, porque esta aqui “é a Terra de Santa Cruz” e os abortistas iam encontrar resistência. Falou bem, e o estilo agressivo irritou a platéia.

Depois, veio a mulher da SOS Corpo. Cara feia, fala mansa: falou que o aborto “sempre foi praticado” desde que o mundo é mundo, que só passou a ser crime no Brasil “na década de 40”, que a culpa era das “sociedades patriarcais”, que “as nossas mães também abortam”, que “as freiras abortam”, que um “embrião de ser humano” não era um ser humano porque, para ser “um ser humano”, era necessário ter “um projeto de vida”, falou na luta das mulheres, nas conquistas do feminismo, que as mulheres têm direito a abortar porque têm o direito de escolher o seu futuro, porque os métodos contraceptivos falham, porque quando uma “porcaria de gravidez” vem na hora errada e a mulher está cheia de problemas, a vida “é o que menos importa”, e falou que uma sociedade que liberasse o aborto seria “mais humana”, e blá-blá-blá-blá-blá… como muito argutamente comentou uma amiga à saída, o tom de voz manso dela “escondia” as barbaridades faladas. Se a gente fosse prestar atenção à quantidade de besteiras proferidas no meio da fala suave, iria ficar impressionado.

Depois, o advogado. Possuía um tique no olho esquerdo, mas falava bem, e prendia a atenção: o cerne do seu discurso era o fato de que “nós não poderíamos responder a uma mulher que aborta com o Direito Penal”, porque o drama por ela vivido já lhe era sofrimento o bastante. No meio das besteiras [o sujeito era relativista e pragmático até a medula], pelo menos duas informações trazidas por ele são relevantes:

– a maior parte dos doutrinadores ensina que o art. 128 do Código Penal consiste em uma exclusão de ilicitude [? ou “de tipicidade”? Não conheço os termos jurídicos…], e não de punibilidade (trocando em miúdos, que o aborto provocado em caso de estupro e quando não há outra forma de salvar a vida da mãe não simplesmente “não é punido”, mas sim “não é crime” mesmo – sobre este assunto, talvez valha a pena a leitura deste documento que encontrei – não li ainda – no site do padre Lodi).

– a porcentagem de absolvição para mulheres que cometem aborto e são levadas a julgamento, pelo menos nas capitais, é próxima dos 100%, de modo que, segundo ele, se o Legislativo não tiver a coragem de retirar o aborto do Código Penal, a própria sociedade vai se encarregar de fazer com que a lei vire “letra morta” por simples desuso.

Pronto. Após a primeira fala de cada um dos debatedores (e – na minha opinião erroneamente – sem tempo para as réplicas e tréplicas), seguiram-se blocos de perguntas, com três em cada bloco (só houve tempo para dois blocos). Obviamente, os debatedores aproveitaram-se deste tempo concedido para fazerem as réplicas que cabiam (principalmente o Thiago, que havia sido o primeiro a falar). Como o tempo era curto, ele foi lacônico: “o assassinato [como o aborto] também sempre existiu e a gente não vai legalizá-lo por causa disso”; “se você é católico, se você é hinduísta, budista, ateu ou o que seja, você deve ser contra o aborto”; “um embrião é um ser humano, e não ‘um projeto’ de ser humano”; e outras sentenças proferidas com a concisão exigida pelo tempo e a agressividade adotada como estratégia. Do fundo do auditório ensaiaram algumas vaias. Ele conseguiu realmente incomodar.

Daqui em diante, pouco ou quase nada é digno de menção, porque a palhaçada atingiu o apogeu. A sra. Sílvia falou do patriarcalismo da Igreja, o sr. Paulo falou no respeito às opiniões dos outros, ambos iluminaram o auditório com incontáveis alusões às fogueiras da Inquisição, rejubilaram-se com o fim da Idade Média que já passou e não volta mais, enforcaram o último rei nas tripas do último padre com as loas ao Iluminismo, falaram mal de Dom José com a atitude “que envergonhou Recife” diante do mundo, e foram completamente vãos todos os esforços do Thiago para arrancar o debate da esfera do preconceito e trazê-lo para a da argumentação racional. Não adiantou.

No fim, o povo já não ouvia o que Thiago falava, pois o burburinho crescia, os pedidos de silêncio aumentavam, as perguntas começaram a ficar [ainda mais] estúpidas [“se sua mulher fosse estuprada, o que você faria?”], e quase ninguém percebeu a leitura de um texto sobre Moloch no final – texto muito bom, diga-se de passagem. Fim de noite, saí do debate com duas sensações: frustrado, porque são pessoas como aquelas que estavam no auditório que serão os futuros formadores de opiniões e fazedores de leis; e atônito, porque os abortistas não são capazes de apresentar um único argumento e, contudo, defendem as suas barbaridades assim mesmo e encontram quem lhes dê ouvidos! Mas um outro amigo que lá estudava disse-me que foi muito bom: afinal, as pessoas estariam nos próximos dias comentando sobre o assunto, criando assim um território fértil para se fazer apostolado.

Tomara que elas discutam, sim, e discutam com sinceridade, sem paixões, sem preconceitos, sem irracionalismos; tomara que os pró-vida daquela faculdade – entre os quais conto alguns bons amigos – tenham as oportunidades de que precisam para defender as crianças por nascer. E que a Virgem da Conceição Aparecida, Padroeira do Brasil, seja em seu favor; e  que Ela livre o Brasil da maldição do aborto.

Dominica Quarta in Quadragesima

Lætáre, Jerúsalem: et convéntum fácite, omnes qui dilígitis eam: gaudéte cum lætítia, qui in tristítia fuístis: ut exsultétis, et satiémini ab ubéribus consolatiónis vestræ. Ps. 121, 1. Lætátus sum in his, quæ dicta sunt mihi: in domum Dómini íbimus. V/. Glória Patri. Lætáre.
[Introito da missa de hoje]

Assim começa a Santa Missa de hoje, quarto domingo da Quaresma, no qual o Roxo penitencial que permeia todo este tempo litúrgico é substituído pelo Rosa; é um grito de júbilo, antecipando a Páscoa que está às portas. Laetare, quer dizer, alegra-te. Alegra-te, Jerusalém – alegra-te, ó Igreja, porque o Senhor é Deus. Uma alegria contida, é verdade: usamos rosa, e não o branco dos dias de festa. Penso num misto de alegria com penitência, como se o rosa fosse resultado da mistura do branco festivo ao roxo quaresmal: ainda é Quaresma, mas a Igreja nos chama à alegria.

Qual o motivo da alegria? Podemos meditar em pelo menos três motivos pelos quais a Igreja nos convida ao júbilo no meio da Quaresma: pelo que somos, pelo que está por vir e – last, but not least – pela própria penitência. Devemos nos alegrar pelo que somos, como a própria Liturgia nos mostra na primeira leitura, da Epístola de São Paulo aos Gálatas, capítulo 4, versículos do 22 ao 31: nós somos filhos da promessa, e não filhos da escrava! Somos amados por Deus. “Abraão teve dois filhos”; e o filho de Sara, da esposa legítima, é figura dos filhos de Deus, dos filhos da Igreja, de nós. Alegremo-nos, diz a Igreja, “porque o filho da escrava não será herdeiro com o filho da livre” (v. 30).

Alegremo-nos também pelo que está por vir: em sentido imediato pela Páscoa, que celebraremos em breve, mas também pela Páscoa definitiva, que celebraremos na Glória dos Céus e que podemos esperar exatamente porque somos filhos da mulher livre, somos filhos da promessa, somos filhos da Igreja! A Páscoa que celebramos ao fim da Quaresma é também figura da Páscoa que – esperamos! – iremos celebrar ao fim da quaresma da nossa vida, ao fim da nossa peregrinação neste Vale de Lágrimas. Alegremo-nos, porque o Sábado Santo sucede à Quaresma; alegremo-nos, porque a Vida Eterna sucede à vida passageira, e a Glória dos Céus sucede aos sofrimentos terrenos. Esta é a nossa esperança, expressa de maneira magnífica no Rito do Batismo quando, indagados sobre o que nos concede a Fé, respondemos prontamente: a Vida Eterna. “[Q]uem não conhece Deus – diz o Papa Bento XVI -, mesmo podendo ter muitas esperanças, no fundo está sem esperança, sem a grande esperança que sustenta toda a vida” (Spe Salvi, 27). Nós conhecemos a Deus, e nós portanto podemos ter esperança verdadeira. Por isso, devemos nos alegrar.

E, por fim, devemos nos alegrar pela própria penitência, a quaresmal em primeiro lugar e a nossa penitência quotidiana – não é, afinal, a Quaresma figura da nossa vida? – que fazemos durante todos os nossos dias. O sofrimento não é vazio de significado; nós não fazemos penitência pelo simples fato de gostarmos de sofrer, mas sim porque sabemos que somos pecadores e sabemos que necessitamos da Misericórdia de Deus. O “alegrai-vos” em meio à penitência tem também o sentido de ecoar aquela máxima evangélica: Bem-aventurados sereis quando vos caluniarem, quando vos perseguirem e disserem falsamente todo o mal contra vós por causa de mim. Alegrai-vos e exultai, porque será grande a vossa recompensa nos céus, pois assim perseguiram os profetas que vieram antes de vós (Mt 5, 11-12). À luz da Fé Cristã, os nossos sofrimentos não são vazios, nem são frutos de um masoquismo humano ou sadismo divino – não! Os sofrimentos oferecidos a Deus em união aos de Nosso Senhor na Cruz do Calvário serão recompensados. Alegrai-vos, diz-nos a Igreja em meio à penitência quaresmal – aos sofrimentos quotidianos -, porque grande será a vossa recompensa nos Céus.

Em particular nestes dias em que a Igreja sofre tão violenta investida de Seus inimigos e nós, católicos, sofremos tanto ataques por causa de nossa Fé, são consoladoras as palavras de São Paulo na leitura de hoje: “Como naquele tempo o filho da natureza perseguia o filho da promessa, o mesmo se dá hoje” (v. 29). E, por isso, o Laetare deste quarto domingo vem para nos dar forças e consolação. Apesar de tudo, devemos nos alegrar. Apesar dos sofrimentos, e até por causa desses mesmos sofrimentos, pois eles são o fogo no qual o ouro é provado. Não nos esqueçamos de que somos amados por Deus; recordemos a nossa Esperança de celebrarmos um dia a Páscoa Definitiva; e lembremo-nos sempre de que são bem-aventurados aqueles que padecem sofrimentos por causa de Nosso Senhor. Ouçamos o Laetare, Jerusalem que a Igreja nos dirige hoje e, à luz da Fé, respondamos com confiança: Laetatus sum, sim, nós nos alegramos verdadeiramente! Que a Virgem Santíssima nos conceda a todos uma Santa Quaresma.

Mais sobre as Campanhas da Fraternidade

Já há quase um mês, comentei aqui sobre a Campanha da Fraternidade. Volto ao assunto agora, que estamos em meados da Quaresma; vou tentar (reconhecendo de antemão a dificuldade da empreitada) ser o mais sincero possível e o mais condescendente possível.

Primeiro, uma retrospectiva: no site da CNBB tem os cartazes de todas as Campanhas da Fraternidade de todos os anos desde 1964. Clicando nas figuras, é possível ver o “objetivo geral” de cada um dos anos. Peguemos uma campanha ao acaso; digamos, 1984, que foi o ano em que eu nasci.

Lema: Comunicação para a verdade e a paz.

Objetivo Geral: Despertar a consciência crítica do receptor no uso da mídia, como atitude interior necessária para a comunicação da verdade e da paz. Quer também conscientizar os receptores sobre seu papel de agentes de influência na orientação de programas nos meios de comunicação.

Um ano é uma amostragem muito pequena. Peguemos ao acaso outro ano; à frente. Digamos, 1999, quinze anos depois.

Lema: Sem trabalho… Por quê?

Objetivo Geral:  Contribuir para que a comunidade eclesial e a sociedade se sensibilizem com a grave situação dos desempregados, conheçam as causas e as articulações que a geram e as conseqüências que dela decorrem;

Denunciar, conseqüentemente, modelos sócio-político-econômicos, tais como certas formas de neoliberalismo sem freios éticos, que causam desemprego quer estrutural quer não estrutural e, igualmente, impõem padrões de consumo insaciável e exacerbem a competição e o individualismo;

Anunciar uma sociedade baseada em novos paradigmas, onde a pessoa humana seja o centro, a vida não se subordine à lógica econômica idolátrica e o trabalho não se reduza à mera sobrevivência, mas promova a vida, em todas as suas dimensões;

Abrir, assim, perspectivas sobre novas relações e novas formas de trabalho prenunciadas para o Novo Milênio;

Incentivar amplo movimento de solidariedade para manter viva a esperança dos que enfrentam diretamente o problema do desemprego, promovendo iniciativas concretas de geração de trabalho e renda, no paradigma da solidariedade cristã;

Mobilizar a própria Igreja para se colocar mais ainda profeticamente a favor da justiça e da solidariedade, principalmente em relação aos desempregados e às desempregadas.

Ainda mais um exemplo; para trás, agora, do ano do meu nascimento. Fomos quinze anos para frente, vamos um pouco menos para trás: dez anos. 1974.

Lema: Onde está teu irmão?

Objetivo Geral:  A vida é o dom que mais fortemente ambicionamos e mais desesperadamente defendemos, a partir do próprio instinto de sobrevivência. A vida é o dom que mais devemos respeitar e promover em nossos irmãos.

Toma-se aqui a vida nos mais diversos níveis e circunstâncias: a vida da graça, a vida moral, a vida da honra, a vida do nascituro, a vida do enfermo e do velho, a vida do pobre e do faminto, a vida vítima de violência e injustiças… É este o dom que devemos construir, e em muitos casos, reconstruir como modernos samaritanos.

Está de bom tamanho. Agora, perguntemo-nos o que é a Quaresma. De acordo com o Catecismo Maior de São Pio X:

499) Para que fim foi instituída a Quaresma?
A Quaresma foi instituída a fim de imitarmos, de algum modo, o rigoroso jejum de quarenta dias que Jesus Cristo observou no deserto, e a fim de nos prepararmos, por meio da penitência, para celebrar santamente a festa da Páscoa.

Pois bem. Eu posso até conceder – embora particularmente seja de opinião frontalmente contrária – que haja alguma relevância n’alguns dos temas escolhidos pela CNBB para serem tratados na Campanha da Fraternidade (embora parte considerável deles seja simplesmente uma porcaria). No entanto, qualquer um há de convir que mesmo o melhor dos temas (da nossa amostragem acima, é de longe o de 1974, único a falar em “vida da graça”…) não nos ajuda (ao contrário, atrapalha) a “imitarmos, de algum modo, o rigoroso jejum de quarenta dias que Jesus Cristo observou no deserto, e (…) nos prepararmos, por meio da penitência, para celebrar santamente a festa da Páscoa”, que, afinal, são os motivos pelos quais foi instituída a Quaresma!

Isto é uma evidência impossível de ser negada: a Campanha da Fraternidade não ajuda nada, absolutamente nada, os católicos a viverem melhor a Quaresma. O problema não está somente nos temas (horríveis) algumas vezes escolhidos; afinal de contas, dêem uma olhada nos cartazes de todas as Campanhas da Fraternidade desde 1964 até o ano presente: qual a relação que existe entre qualquer uma delas e a Quaresma? No meio do lixo, há sem dúvidas temas que pode[ria]m ser bem explorados (como “A Família”, 1994; ou a própria “Fraternidade e Defesa da Vida”, do ano passado). No entanto, nenhum, nenhum deles, nem mesmo os melhores, tem relação direta com a Quaresma.

Onde está o tema “Jejum e Oração: únicos remédios para alguns pecados”? Ou o tema “Oração: alimento para alma”? Ou o tema “Penitência, penitência, penitência”? Ou o tema “Esmola, ato concreto de caridade cristã”? Não existe nada nem parecido com isso nos últimos [mais de] quarenta anos de Campanhas da Fraternidade! Portanto, mesmo quando os temas escolhidos pela CNBB são católicos (o que já é uma coisa rara) ou são catolicamente abordados (o que é tão raro que pode chegar a ser considerado um milagre), eles não são conexos com a Quaresma e, por conseguinte, não ajudam os católicos a viver bem este tempo litúrgico. Ao contrário, estas Campanhas da Fraternidade até atrapalham – por melhores que sejam elas, repito (coisa que, repito também, é muitíssimo rara) -, na medida em que dispersam os católicos, fazendo-os prestarem atenção em temas que não guardam relação direta com o tempo litúrgico no qual as campanhas estão inseridas. É preciso, portanto, afirmar claramente e com muita sinceridade: a Campanha da Fraternidade, atualmente, presta-se a impedir os católicos de viverem realmente a Quaresma. Esta é a verdade nua e crua.

Eu disse no início do artigo que ia ser condescendente; qual a única condescendência possível? Antes de qualquer coisa, parece-me óbvio que a Campanha da Fraternidade precisa urgentemente ser retirada da Quaresma. No entanto, eu concedo [como já disse, discordo, mas concedo] que, nas atuais conjunturas, alguns temas sociais possam ser objeto de alguma campanha da Igreja, contanto que (a) esta campanha não fale besteiras (como sói acontecer na Campanha da Fraternidade – à guisa de exemplo, veja-se este artigo sobre a atual campanha) e (b) ela seja colocada em algum outro período do ano que não a Quaresma (p. ex., como já ouvi sugestões de sacerdotes, um “mês temático” organizado em algum momento (distinto da Quaresma) do ano). Isso sim é possível: o que não dá para fazer é deixar as coisas como estão, porque está realmente insuportável.

Atualmente, estas Campanhas não passam de coisas das quais os verdadeiros católicos têm vergonha, que não servem à glória de Deus e nem tampouco à salvação das almas, que impedem os católicos de viverem a Quaresma. Isso precisa mudar. É pedir muito que as autoridades eclesiásticas do Brasil preocupem-se com as coisas de Deus? É pedir muito que possamos viver o tempo quaresmal de acordo com os motivos pelos quais a Igreja o instituiu? É pedir muito que não precisemos nos envergonhar das campanhas idealizadas por nossos bispos? É pedir muito que possamos ser católicos em paz… ?

O desabafo de Bento XVI

O Santo Padre vai tornar pública amanhã uma carta na qual esclarece os motivos pelos quais decidiu revogar as excomunhões que pesavam sobre os quatro bispos da Fraternidade Sacerdotal São Pio X – leio no Último Segundo. Como não poderia deixar de ser, o Fratres in Unum traz informações melhores, e traduz os trechos da carta que já foram publicados por fontes de notícias italianas. Leiam.

Apesar da carta reproduzir o óbvio – que nós estamos cansados de defender aqui contra os que julgam ser capazes de ensinar Teologia ao Sagrado Magistério da Igreja Católica (por exemplo, que os sacerdotes da FSSPX ainda “não exercem de modo legítimo qualquer ministério na Igreja”, e que “[n]ão se pode congelar a autoridade magisterial da Igreja no ano de 1962 – isso deve ser bem claro para a Fraternidade”) -, não é exatamente sobre este ponto que eu desejo me deter agora, nessas linhas. Quero falar um pouco sobre o Santo Padre.

O Vigário de Cristo trava uma batalha descomunal e absurdamente ingrata nos nossos dias; trava-a sozinho, consciente de seu papel como Sucessor de Pedro, consciente de que precisa consumir-se em defesa da unidade da Igreja de Nosso Senhor e da integridade da Sã Doutrina da Salvação. É atacado por todos os lados e, mesmo assim, avança resolutamente. Sofre e não desanima; é contrariado e não desiste.

Mas é humano e, como ser humano que é, às vezes desabafa – e esta carta me pareceu um desabafo do Santo Padre, como que as queixas de um Pai amoroso que quase não recebe senão ingratidão dos filhos pelos quais se consome. Sabe o Papa – sabe-o, porque é católico, porque tem graça de estado para bem exercer o governo da Igreja, porque é o Vigário de Nosso Senhor – o que deve fazer para o bem dos fiéis católicos; percebe no entanto o Papa que estes mesmos fiéis – por cujo bem ele trabalha sem descanso – não raro voltam-se contra ele.

A crise da Igreja chegou a um tal ponto que, hoje, podemos infelizmente constatar – e creio ser exatamente esta a percepção do Santo Padre, que motivou a sua carta – que muitos fiéis católicos, provavelmente a maioria deles, estão distantes do Vigário de Cristo. Grande parte deles, arrasados pela crise de Fé que se alastrou como praga pela Igreja, não faz a mínima idéia de quem seja o Papa. Outra parte bem considerável [que até sabe relativamente quem ele é] gostaria que ele fosse diferente (quer em uma direção, quer na outra direção oposta). O Papa permanece assim praticamente sozinho, abandonado pelos que não o conhecem, abandonado pelos que, conhecendo-o, não o aceitam: e, no entanto, é precisamente destes que ele é Pai, e são precisamente estas ovelhas que ele precisa pastorear – esta é a sua missão – e levar aos prados verdejantes da Eternidade, onde o Bom Pastor as aguarda.

O Papa é chefe da Igreja, não de uma “igreja” imaginária, não da “igreja espiritual” que querem os modernistas nem da “igreja obscurecida pela Outra” que querem alguns “tradicionalistas”, mas sim da Igreja que existe, da Igreja Católica e Apostólica, fundada por Nosso Senhor e que existirá neste mundo – sempre a mesma! – até a consumação dos séculos; e é também Pastor dos cordeiros e das ovelhas que Jesus Cristo mandou que ele apascentasse. Mas os homens que fazem parte da Igreja não são sempre os mesmos; o grau de fidelidade deles à Igreja à qual pertencem pode sempre ser maior ou menor – mistérios da liberdade humana! – e, no entanto, são estes os homens, imperfeitos e pecadores, que a Igreja precisa salvar, são estas as ovelhas, preguiçosas e sarnentas, que o Papa precisa conduzir.

E, no entanto, elas não querem ser conduzidas…! Queixa-se o Santo Padre; a Cruz talvez afigura-se-lhe pesada demais, o cálice quiçá descortina-se-lhe amargo em demasia, mas ao humano queixume segue-se a divina resolução – como outrora no Jardim das Oliveiras – e, a despeito do quanto seja difícil, é como se desse para ouvir o Santo Padre dizer ao Todo-Poderoso: non sicut ego volo sed sicut tu. O Cálice é amargo, a Cruz é terrível, mas o Papa está disposto a entorná-lo até o fim, a sangrar dependurado até a morte, para ser fiel ao ministério petrino que o Senhor lhe mandou exercer.

Non sicut ego volo sed sicut tu – bem que as ovelhas poderiam fazer esta mesma oração, dirigidas ao Sucessor de Pedro, ao Doce Cristo na Terra: Santo Padre, que seja feito não como nós queremos, mas como Tu queres! Bem que as ovelhas poderiam tornar menos penosos os sofrimentos de Bento XVI. Bem que elas poderiam deixar-se conduzir com maior docilidade. Acaso sonho alto demais…? Não creio. Que os desabafos do Vigário de Cristo possam tocar os fiéis católicos; e que estes se esforcem, cada um naquilo que lhe compete, para que possam realmente cerrar fileiras em torno do Papa, para que, sob o Seu cajado, possam ser enfim conduzidos à Bem-Aventurança Eterna onde são aguardados. Oremus pro Pontifice nostro Benedicto; Dominus conservet eum, et vivificet eum, et beatum faciat eum in terra, et non tradat eum in animam inimicorum eius. Amen.